Um conto de duas cidades - Charles Dickens
CHARLES DICKENS
UM CONTO DE DUAS CIDADES
Tradução
Sandra Luzia Couto
Créditos
FUNDADOR
Victor Civita
(1907-1990)
© Copyright desta edição Editora Nova Cultural Ltda., 2011
Todos os direitos reservados
Título original: A Tale of Two Cities
ISBN: 978-85-13-01456-1
Diagramação para ebook: Xeriph
© 2011 Editora Nova Cultural Ltda.
Rua Texas, 111 – sala 20ª – Jd. Rancho Alegre – Santana do Parnaíba
São Paulo – SP — CEP 06515-200
2011 Nota Explicativa
NOTA EXPLICATIVA
As notas de rodapé estão identificadas no texto por números entre colchetes
[1]. Para acessá-las, basta clicar sobre o número e ler a nota. Ao clicar
novamente sobre o número, você voltará para o texto. Uma Nota Sobre o Texto
UMA NOTA SOBRE O TEXTO
Um Conto de Duas Cidades foi publicado pela primeira vez em fascículos, no All
the Year Round, de 30 de abril a 26 de novembro de 1859, e em oito partes
mensais de junho a dezembro do mesmo ano. O romance apareceu sob a forma
de volume em novembro de 1859. Prefácio
PREFÁCIO
Foi quando atuava, com meus filhos e amigos, no drama The Frozen Deep, do
senhor Wilkie Collins[1], que concebi, pela primeira vez, a idéia central desta
história. Havia, de início, uma forte disposição de corporificá-la em minha
própria pessoa; e eu esbocei em minha imaginação o estado de espírito do qual
um observador atento e particularmente interessado necessitaria para narrá-la.
À medida que a idéia foi se tornando familiar para mim, gradualmente foi
assumindo, por si própria, a presente configuração. Durante sua execução, ela
exerceu completo domínio sobre mim; e agora constato que tudo o que foi
realizado e sofrido nestas páginas, estou seguro de ter feito e sofrido eu mesmo.
Sempre que alguma referência (mesmo que superficial) é feita aqui à
condição do povo francês antes da Revolução ou durante, ela é produzida de boa-
fé, com base em testemunhos fidedignos. É uma de minhas esperanças
acrescentar alguma coisa à forma popular e pitoresca de compreender esse
período terrível, embora ninguém possa ter a pretensão de acrescentar qualquer
coisa à filosofia do livro extraordinário do senhor Carlyle[2].
C. D.UM CONTO DE DUAS CIDADES
EM TRÊS PARTESPRIMEIRA PARTE — DE VOLTA À VIDA
PRIMEIRA PARTE
DE VOLTA À VIDA I. O Período
CAPÍTULO I
O PERÍODO
Aquele foi o melhor dos tempos[3], foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da
sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da
descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança,
o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós,
íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário — em
suma, o período era em tal medida semelhante ao presente que algumas de suas
mais ruidosas autoridades insistiram em seu recebimento, para o bem ou para o
mal, apenas no grau superlativo de comparação.
Havia um rei com uma grande mandíbula e uma rainha com um rosto
inexpressivo no trono da Inglaterra; havia um rei com uma grande mandíbula e
uma rainha com um belo rosto no trono da França[4]. Em ambos os países, era
mais claro que cristal que as reservas de pães e peixes dos lordes do Estado, que
os bens em geral, estavam assegurados para todo o sempre.
Era o ano de Nosso Senhor de 1775. Revelações espirituais eram concedidas
à Inglaterra nesse período privilegiado da mesma forma que hoje em dia. A
senhora Southcott[5] havia recentemente atingido seu abençoado vigésimo quinto
aniversário, e nessa época um profético soldado raso da Guarda Real[6] fazia-se
arauto de sublime figura, ao proclamar que arranjos já haviam sido feitos para
que Londres e Westminster fossem tragadas pelo abismo. No mesmo pas-so, o
fantasma de Cock-Lane[7] fora exorcizado havia apenas uma dúzia de anos,
depois de martelar suas mensagens, assim como fizeram os espíritos nestes anos
mais recentes[8] (com sobrenatural deficiência de originalidade). Todavia,
meras mensagens na ordem terrena dos eventos, que haviam chegado à Coroa
Britânica e ao seu povo, provenientes de um congresso de súditos britânicos na
América[9], por estranho que pareça, provaram-se mais importantes para a raça
humana do que qualquer comunicação já recebida através das galinhas da
ninhada de Cock-Lane.
A França, em geral menos favorecida em questões espirituais do que sua
irmã do escudo e tridente[10], resvalava morro abaixo com extrema suavidade,
fabricando e esbanjando papel-moeda[11]. Sob a liderança de seus pastores
cristãos, ela se entreteve, também, com realizações humanitárias, tais como
sentenciar um jovem a ter as mãos decepadas[12], a língua arrancada por
torquês e o corpo queimado vivo, pelo crime de não se ter ajoelhado na chuva
para reverenciar uma enlameada procissão de monges que desfilava diante de
seus olhos a uma distância de cerca de quarenta ou cinqüenta metros. É bastanteprovável que, quando aquele sofredor foi levado à morte, já crescessem nas
florestas da França e da Noruega árvores marcadas pelo Lenhador, o Destino,
para serem derrubadas e serradas em tábuas e servirem à construção de uma
certa estrutura móvel, com um saco e uma lâmina[13], da qual a História
guardaria terrível memória. É bastante provável que, naquele exato dia, os
rústicos telheiros de alguns lavradores das terras barrentas nas adjacências de
Paris abrigassem toscas carroças respingadas de lodo, fuçadas por porcos e
servindo de poleiro para galinhas, as quais o Fazendeiro, a Morte, já havia
separado para o transporte sinistro da Revolução[14]. Mas o Lenhador e o
Fazendeiro, embora trabalhassem sem descanso, faziam-no em silêncio e
ninguém os ouviu quando se esgueiraram com passos abafados: ao contrário,
faziam questão de ignorá-los, visto que alimentar qualquer suspeita de que
haviam despertado representava ateísmo e traição.
Na Inglaterra, quase não havia ordem e proteção que pudessem justificar
excessiva vanglória nacional[15].
Audaciosos arrombamentos praticados por homens armados e assaltos nas
ruas ocorriam na própria capital todas as noites. As famílias eram
ostensivamente prevenidas para não saírem da cidade sem antes removerem sua
mobília para os guarda-móveis por medida de segurança. O salteador de estradas
na escuridão era um respeitável comerciante do centro financeiro à luz do dia, e,
ao ser reconhecido e desafiado por seu companheiro de ofício a quem detivera
sob o disfarce de “o Capitão”, impavidamente varou-lhe a cabeça com uma bala
e afastou-se a galope. O correio foi emboscado por sete ladrões, e o guarda
abateu três deles e foi morto pelos outros quatro, “porque sua munição havia
acabado”, depois do que o correio foi saqueado com tranqüilidade. Aquele
magnificente potentado, o Lorde Prefeito de Londres, foi rendido em Turnham
Green por um salteador de estradas, que despojou a ilustre criatura sob as vistas
de toda a sua escolta. Os prisioneiros das masmorras de Londres travavam
batalhas com seus carcereiros, e a lei, em toda a sua majestade, abria fogo de
bacamartes no meio deles, carregados com salvas de grãos de chumbo e balas.
Gatunos arrancavam crucifixos de diamantes dos pescoços dos nobres nos salões
da Corte. Os mosqueteiros entraram em Saint Giles, em busca de bens
contrabandeados, e a turba recebeu-os a tiros, e os mosqueteiros fizeram fogo
contra a turba. Ninguém jamais considerou qualquer dessas ocorrências como
fora do comum.
Em meio a tudo isso, o carrasco, sempre ocupado e sempre ineficaz, era
constantemente requisitado. Ora enforcando longas filas de criminosos diversos,
ora executando no sábado um arrombador aprisionado na terça-feira, ora
marcando com ferro em brasa, às dúzias, as mãos de pessoas em Newgate, ora
queimando panfletos à porta de Westminster Hall; hoje, tirando a vida de um
cruel assassino, e amanhã, a de um gatuno miserável que roubara uma pequena
moeda de um camponês.
Todas essas coisas, e mil outras do gênero, passavamse naquele querido e
velho ano de 1775. Cercados por elas, enquanto o Lenhador e o Fazendeiro
trabalhavam despercebidos, aqueles dois com grandes mandíbulas, e aquelas
outras duas, a do rosto comum e a do belo rosto, caminhavam com estrépito,ostentando na mão erguida seus direitos divinos. Foi assim que o ano de mil
setecentos e setenta e cinco conduziu suas Grandezas e miríades de pequenas
criaturas — dentre elas as criaturas desta crônica — ao longo dos caminhos que
se estendiam à sua frente. II. A Mala-Postal
CAPÍTULO II
A MALA-POSTAL
A estrada de Dover se estendia, numa noite de sexta-feira no final de novembro,
à frente da primeira das pessoas com as quais esta história se ocupa. A estrada de
Dover estendia-se, igualmente, diante da mala-posta, que subia penosamente a
colina de Shooter[16]. Nosso homem caminhava morro acima na lama, ao lado
da diligência, como faziam os demais passageiros, não porque tivessem a menor
disposição para esse gênero de exercício, consideradas as circunstâncias, mas
porque a colina, os arreios, a lama, a malaposta, tudo era tão pesado que os
cavalos já haviam chegado a estacar por três vezes, além de uma vez terem
atravessado a diligência na estrada, com a amotinada intenção de levála de volta
a Blackheath. Rédeas e chicote e cocheiro e guarda, combinados, todavia,
estavam cientes do artigo do regulamento militar que se opunha a tal desígnio —
o qual, sob outro aspecto, demonstrava que alguns animais brutos são dotados de
racionalidade — e os cavalos acabaram por se render, retornando aos seus
deveres.
Com as cabeças curvadas e agitando as caudas, eles seguiam em frente
amassando a lama espessa, debatendose e tropeçando a cada momento, como se
suas juntas estivessem prestes a se desarticular. Sempre que o condutor, após lhes
permitir um breve descanso, retomava a marcha, bradando um preocupado
“Uo-ho! Andando... ho!”, o líder balançava violentamente a cabeça e tudo o
mais sobre ela, como se quisesse negar com toda a ênfase que o coche pudesse
chegar ao alto do morro. E sempre que assim procedia, nosso passageiro se
sobressaltava, demonstrando nervosismo e perturbação.
Uma névoa úmida vagava, desamparada, dos vales para o cimo da
montanha, parecendo um espírito atormentado buscando inutilmente o repouso.
Uma pegajosa e fria névoa, que se propagava com lentidão pelo ar em ondas
sucessivas como as de um mar insalubre. Era densa o bastante para ocultar tudo
da luz das lanternas do coche, com exceção de seu próprio movimento
fantasmagórico, e de uns poucos metros de estrada. E o vapor que escapava dos
corpos suarentos dos laboriosos cavalos misturava-se à neblina como se dela
fizesse parte.
Dois outros passageiros, além do já mencionado, arrastavam-se morro
acima ao lado da mala-posta. Todos os três estavam embuçados até os malares e
com as orelhas protegidas, e usavam botas de cano alto. Nenhum deles podia
distinguir, do pouco que via, as feições dos demais; e cada qual estava tão oculto
dos olhos da mente quanto dos olhos do corpo, de seus dois companheiros.Naqueles dias, os viajantes evitavam confiar em qualquer pessoa que
encontrassem pelos caminhos, já que havia grande possibilidade de se tratar de
um ladrão ou de alguém associado a um bando de malfeitores. Quando cada
posto de correio ou estalagem poderia abrigar alguém a soldo de um capitão de
bandoleiros, podendo ser tanto o senhorio quanto o moço dos estábulos, essa era a
melhor atitude a tomar. Assim pensava com seus botões o guarda da mala-posta
de Dover naquela noite de sexta-feira de novembro de 1775, subindo
pesadamente a colina de Shooter, no seu posto na retaguarda da carruagem,
cadenciando seu passo e mantendo um olho e uma das mãos no baú de armas
diante dele, onde um bacamarte carregado jazia no topo de uma pilha de sete ou
oito pistolas grandes também carregadas, depositadas por sua vez sobre uma
camada de punhais e adagas.
A mala-posta de Dover estava, como de hábito, na estimulante situação em
que o guarda suspeitava dos passageiros, estes desconfiavam uns dos outros e do
guarda, o grupo inteiro suspeitava de todos os demais, e o cocheiro só confiava
nos cavalos, apesar de ser capaz de jurar sobre o Novo e o Velho Testamento que
aqueles animais não chegariam ao final da jornada.
— Uo-ho! — o cocheiro bradou. — Calma! Só mais um pouco e alcançarão
o cume e depois podem ir para o inferno, que já tive problemas demais para
conduzi-los até aqui!
— Joe!
— Olá! — o guarda respondeu.
— Que horas tem aí, Joe?
— Uns bons dez minutos depois das onze.
— Com os diabos! — imprecou o cocheiro. — E ainda nem chegamos ao
alto do Shooter! Tsk! Iááá! Andem, seus preguiçosos!
O enfático cavalo, surpreendido pelo chicote no meio de uma de suas mais
decididas negativas, produziu um decidido avanço em resposta, no que foi
imitado pelos outros três cavalos. Uma vez mais, a mala-posta de Dover foi
sacolejada, com as botas de cano alto dos seus passageiros chapinhando ao lado.
Eles haviam parado juntamente com a carruagem, mantendo-se bem perto dela.
Se algum dos três houvesse tido a audácia de propor a outro que caminhassem
um pouco à frente em meio à névoa e à escuridão, teria se arriscado a ser
tomado por um assaltante e levar um tiro na mesma hora.
Uma última arrancada levou a mala-posta para o alto da colina. Os cavalos
se detiveram para recuperar o fôlego, e o guarda apeou para calçar a roda[17]
para a descida e abrir a portinhola para os passageiros entrarem.
— Tsk! Joe! — o cocheiro gritou em tom de alarme, olhando para baixo de
sua boléia. — Você ouviu isso?
— O que você acha que é, Tom? Ambos aguçaram a audição.
— Acho que um cavalo vem subindo a meio galope, Joe.
— Pois eu acho que o cavalo vem a galope inteiro, Tom
— retrucou o guarda, largando a porta e retornando a seu posto. —
Cavalheiros! Em nome do rei, todos vocês! — gritou, pedindo auxílio.
Com essa apressada convocação, ele engatilhou o bacamarte e assumiu
uma postura ofensiva.O passageiro personagem de nossa história já havia pousado o pé no estribo
para entrar no coche, com os outros dois vindo logo atrás. Parou no degrau, meio
no coche e meio fora, enquanto os demais permaneciam na estrada, abaixo dele.
Todos olharam do cocheiro para o guarda e do guarda para o cocheiro
novamente, escutando. O cocheiro e o guarda olharam para trás, e até o cavalo
obstinado levantou as orelhas e voltou a cabeça, desta vez sem discordar.
O silêncio resultante do cessar dos ruídos da mala-posta, acrescido do
silêncio da noite, fazia tudo parecer demasiado quieto. O resfolegar dos cavalos
estremecia a carruagem, como se ela própria estivesse tomada de agitação. Os
corações dos passageiros batiam tão alto que talvez se pudesse ouvi-los. De
alguma forma, a silenciosa pausa era audivelmente expressiva para aquelas
pessoas cuja expectativa lhes havia suspendido a respiração e acelerado o pulso.
O som de um cavalo a galope aproximava-se rápida e furiosamente.
— Uo-ho! — berrou o guarda, o mais alto que pôde. — Quem vem lá? Alto!
Pare ou eu atiro!
O galope parou de súbito e, em meio ao ruído de cascos golpeando o solo
lamacento, uma voz masculina soou na névoa:
— Essa é a mala-posta de Dover?
— Isso não é da sua conta! — o guarda retorquiu com maus modos. —
Quem diabos é você?
É a mala-posta de Dover?
— Por que quer saber?
— Estou procurando um passageiro, se essa for a mala-posta...
— Que passageiro?
— O senhor Jarvis Lorry.
O nosso passageiro logo revelou que era aquele o seu nome. O guarda, o
cocheiro e os outros dois passageiros fitaram-no com desconfiança.
— Fique onde está! — o guarda ordenou à voz na neblina. — Porque, se eu
cometer algum engano, isso pode não ser muito bom para a sua saúde. O
cavalheiro de nome Lorry queira responder-lhe.
— Qual é o problema? — perguntou o passageiro, então, com a voz
ligeiramente trêmula. — Quem me procura? É você, Jerry?
(“Não gosto da voz desse Jerry, se for mesmo esse tal de Jerry”, resmungou
o guarda para si mesmo. “É rouca demais...”)
— Sim, senhor Lorry.
— Qual é o assunto?
— Uma mensagem que lhe foi enviada de muito longe, T. & Cia.
— Eu conheço esse mensageiro, guarda — disse o senhor Lorry, descendo
para a estrada. Observando-o com indiscrição, os outros dois passageiros
imediatamente entraram na carruagem, fecharam a porta e aproximaram-se da
janela. — Deixe que se aproxime, está tudo bem.
— Espero que esteja, mas não ponho minha mão no fogo por isso — o
guarda falou, num áspero solilóquio. — Ei, você!
— Bem! Olá! — Jerry respondeu, mais rouco do que antes.
— Venha para cá bem devagar! Está me ouvindo? E se você tem armas na
cela, não quero ver suas mãos chegarem perto delas. Como eu disse, sou danadopara cometer enganos, e quando eles ocorrem, tomam a forma de chumbo.
Agora, deixe-me olhar para você.
As figuras de um cavalo e seu cavaleiro, enlameados desde os cascos de um
até o topo do chapéu do outro, emergiram lentamente do turbilhão das brumas e
se dirigiram para o lado da mala-posta onde estava o passageiro.
O cavaleiro curvou-se sobre o cavalo ofegante e, mantendo os olhos no
guarda, estendeu ao passageiro um pequeno papel dobrado.
— Guarda! — chamou o passageiro num tom que transmitia segurança.
A atenta sentinela, com a mão direita na coronha do bacamarte erguido, a
esquerda no cano e o olho no cavaleiro, respondeu com laconismo:
— Senhor.
— Não há motivo para apreensão. Eu pertenço ao Banco Tellson[18]. Você
já deve ter ouvido falar no Banco Tellson, de Londres. Estou indo a Paris a
negócios. Aqui está uma coroa para você beber alguma coisa. Posso ler o
bilhete?
— Se não demorar, senhor.
Ele desdobrou o papel sob a luz da lanterna do coche e leu — primeiro para
si mesmo e depois em voz alta:
— “Aguarde Mam’selle em Dover”. É uma mensagem curta, como pode
ver. Jerry, diga que minha resposta é: “De volta à vida”. Jerry espantou-se.
— É uma resposta infernalmente estranha — ele comentou, com a voz
ainda mais rouca.
— Leve esta mensagem de volta e saberão que a recebi com tanta certeza
quanto se eu tivesse redigido um recibo. Vá o mais rápido que puder. Boa noite.
Com essas palavras, o passageiro abriu a porta da carruagem e entrou, não
mais observado pelos companheiros, que, prudentemente, haviam tratado de
esconder seus relógios e porta-níqueis dentro das botas e agora fingiam todos
dormir. Sem outro propósito que o de evitarem o risco de ensejar alguma outra
espécie de ação.
A carruagem voltou a sacolejar em frente, deixando-se tragar pelas espirais
de névoa enquanto descia a colina. O guarda logo recolocou o bacamarte no baú
e, tendo examinado o restante de seu conteúdo e as pistolas que trazia no cinturão,
cuidou ainda de uma arca menor debaixo do assento, na qual havia algumas
ferramentas de ferreiro, um par de archotes e um estojo de isca e pederneira.
Viera munido de tal forma que, no caso de as lanternas da carruagem se
apagarem num vendaval, o que acontecia eventualmente, ele teria apenas de
fechar-se lá dentro, bater a pederneira no aço e manter a faísca bem perto da
palha para obter uma luz com razoável segurança e facilidade (se tivesse sorte!)
em cinco minutos.
— Tom — sussurrou por sobre o teto da carruagem.
— Sim, Joe.
— Você ouviu a mensagem?
— Ouvi, Joe.
— O que você entendeu?
— Não entendi nada daquilo, Joe.
— Que coincidência — o guarda murmurou —, nem eu.Enquanto isso, Jerry, deixado sozinho na névoa e na escuridão, resolveu
desmontar não só para que o animal descansasse mas para remover a lama de
seu rosto e livrar-se da água acumulada nas abas do seu chapéu, que bem
poderiam conter um meio galão. Ficou ali de pé, com as rédeas presas sob o
braço enlameado, até que o ruído das rodas da mala-posta se tornasse inaudível e
o sossego voltasse a apossar-se da noite. Então, virou-se e começou a descer o
morro a pé.
— Depois daquele galope desde o Temple Bar[19], velha senhora, eu não
confiarei em suas pernas enquanto não alcançarmos um terreno plano — disse o
rouco mensageiro, lançando um olhar a sua égua. — “De volta à vida”. É uma
mensagem danada de estranha! Quer saber de uma coisa, Jerry? Isso não lhe
faria nenhum bem. Você estaria num apuro infernal se ressuscitar virasse moda,
Jerry. III. As Sombras da Noite
CAPÍTULO III
AS SOMBRAS DA NOITE
Um fato extraordinário a merecer reflexão é o de que cada ser humano se
constitui num profundo e indecifrável enigma para todos os demais. Sempre que
entro numa grande cidade à noite, considero com solene gravidade que todas
aquelas casas fechadas e escuras encerram seu próprio segredo, que cada
aposento em cada uma delas oculta um mistério, que cada coração pulsando
nessas centenas de milhares de peitos esconde algum segredo para o coração que
está a seu lado! Alguma coisa do horror, até mesmo da Morte, tem a ver com
esse fato. Não mais posso virar as folhas daquele querido livro que amei e em
vão pretendi ler. Não mais posso contemplar as profundezas dessas águas
insondáveis nas quais, à luz fugaz dos relâmpagos, vislumbrava tesouros
enterrados e outras preciosidades submersas. Estava escrito que o livro deveria
fechar-se para todo o sempre, quando eu lera apenas uma página. Estava escrito
que as águas se imobilizariam sob um gelo eterno, enquanto a luz brincava em
sua superfície e eu me detinha, ignorante, às suas margens. Meu amigo está
morto, meu vizinho está morto, meu amor, a eleita de minha alma, está morta; e
essa é a inexorável consolidação e perpetuação do segredo que sempre existiu
nessa individualidade, e que eu próprio também carregarei comigo até o fim da
minha vida. Dormirá, nos cemitérios desta cidade por onde agora passo, alguém
mais inescrutável do que é para mim qualquer de seus habitantes vivos e ativos,
ou do que sou eu próprio para eles?
Em relação a essa natural e inalienável herança, o mensageiro a cavalo,
como qualquer ser humano, tinha exatamente os mesmos direitos que o rei, o
primeiro-ministro, ou o mais rico mercador de Londres. Do mesmo modo, os
três passageiros fechados no exíguo compartimento da velha e sacolejante mala-
posta representavam uns para os outros mistérios tão completos, como se cada
qual seguisse em sua própria carruagem, separados pela distância de um
condado.
O mensageiro voltou num trote leve, parando com demasiada freqüência
nas tabernas ao longo do caminho para beber, embora demonstrasse a propensão
de manter-se reservado, com o chapéu abaixado sobre os olhos. Olhos que se
harmonizavam com essa postura soturna, exibindo uma superfície negra, sem
profundidade na cor ou na forma, e demasiado próximos um do outro, como se
temessem focalizar coisas diferentes, caso estivessem mais separados.
Mostravam uma expressão sinistra sob a aba do velho chapéu de três pontas em
formato de escarradeira e acima do comprido cachecol que lhe protegia oqueixo e a garganta, e ainda descia até quase os joelhos. Quando parava para um
trago, abaixava um pouco o cachecol com a mão esquerda, enquanto emborcava
a bebida com a outra. Assim que terminava a dose, voltava a ocultar o rosto.
— Não, Jerry, não! — dizia a si mesmo o mensageiro, repisando o tema
enquanto cavalgava. — Isso não será bom para você, Jerry. Você é um honesto
comerciante, e isso não combina com a sua linha de negócios! De volta à vida!
Que um raio caia sobre mim se ele não estava embriagado!
A mensagem que levava assombrava-lhe a mente a tal ponto que, por
diversas vezes, tirara o chapéu para coçar a cabeça. Com exceção da parte
superior, que se mostrava quase calva, tinha cabelos negros pontudos, que se
distribuíam pelo crânio e desciam pela testa até o nariz grande e achatado. Eles
pareciam tanto o trabalho de um ferreiro, tanto mais as espículas que guarnecem
certos muros, que o melhor dos puladores de carniça tê-lo-ia recusado, por
considerá-lo obstáculo por demais ameaçador.
Enquanto Jerry trotava de volta com a mensagem que deveria entregar ao
vigia noturno em sua guarita no Banco Tellson, perto de Templo Bar, o qual, por
seu turno, a entregaria aos seus superiores no banco, as sombras da noite
assumiam para ele formas que pareciam relacionar-se com a mensagem,
enquanto a égua as associava a seus próprios temores secretos. Que por certo
eram muitos, pois ela refugava diante de cada sombra da estrada.
Enquanto isso, a mala-posta movia-se pesadamente, aos solavancos,
chocalhando e batendo ao longo de seu tedioso caminho, levando em seu interior
aqueles três passageiros, unidos e separados pelo mesmo mistério. Para eles,
igualmente, as sombras da noite se revelavam nas formas que seus olhos
sonolentos e seus devaneios sugeriam.
Também a sombra do Banco Tellson adejava sobre a mala-posta. Quando o
passageiro, seu representante, com um braço passado através da correia de
couro, que o impedia de cair sobre o companheiro ao lado, e que o mantinha em
seu canto durante os solavancos bruscos da carruagem, cabeceou em seu lugar,
com os olhos semicerrados, à pequena janela, com o clarão indistinto da lanterna
do coche coando-se através dela e da figura volumosa do passageiro à frente;
tudo se transformou no banco, num movimento febril de negócios. O chocalhar
dos arreios era o tilintar das moedas, e foram honrados mais saques em cinco
minutos do que mesmo o Tellson, a despeito de suas vastas conexões nacionais e
estrangeiras, jamais pagou no triplo do tempo. Então, a casa-forte, nos
subterrâneos do Tellson, com todos aqueles seus bens valiosos e segredos que o
passageiro conhecia (e não era pouco o que sabia a esse respeito), abriuse à sua
frente, e ele, munido do grande molho de chaves e da fraca chama de uma vela,
inspecionou-os uma vez mais, constatando que continuavam a salvo, sólidos e
seguros, da mesma forma que os deixara da última vez.
Contudo, embora o banco estivesse sempre diante dele, e se apercebesse (de
um modo difuso, como a dor sob o efeito do ópio) dos solavancos da carruagem,
havia uma outra corrente de impressões que não o abandonara em um só
momento no decorrer da noite. Ele estava a caminho de desencavar alguém de
seu sepulcro.
Dentre a multidão de rostos que desfilavam à sua frente, as sombras da noitenão indicavam qual a verdadeira face da pessoa encerrada em seu túmulo; mas
todas eram as faces de um homem de quarenta e cinco anos e diferiam
principalmente nas paixões que expressavam e na aparência mais ou menos
medonha de seu desgastado e consumido estado. Arrogância, desdém, desafio,
obstinação, submissão e pesar sucediam-se, bem como as variedades de faces
encovadas, cores cadavéricas, mãos e vultos emaciados. Era, entretanto, sempre
a mesma fisionomia na face que se destacava a cada vez, e todas elas
apresentavam a cabeça prematuramente encanecida. Uma centena de vezes o
sonolento passageiro inquiriu ao espectro:
— Sepultado há quanto tempo? A resposta era sempre a mesma:
— Quase dezoito anos.
— Já abandonou toda esperança de ser desenterrado?
— Há muito tempo.
— Sabe que foi chamado de volta à vida?
— Eles me disseram.
— Tem vontade de viver?
— Não sei mais.
— Devo trazê-la até você? Concordaria em vê-la?
As respostas a essa indagação eram diversas e contraditórias. Algumas
vezes, a réplica denotava desalento:
— Espere! Vê-la tão cedo por certo me mataria! Outras vezes, chegava em
meio a um pranto enternecido:
— Leve-me até ela. Ou então, com o olhar fixo e aturdido:
— Eu não a conheço. Não entendo.
Depois desse diálogo imaginário, o passageiro, em sua fantasia, começava a
cavar, e cavar, ora com uma pá, ora com uma grande chave, ora com as
próprias mãos, a desencovar a miserável criatura. Finalmente fora do túmulo,
com terra grudada nas faces e nos cabelos, ela de súbito se desintegrava,
reduzindo-se a pó. O passageiro então despertava com um estremecimento, e
abria a janela, para sentir a realidade da chuva e da névoa fustigando o seu rosto.
Todavia, mesmo com os olhos abertos para a névoa e para a chuva, para o
rastro de luz das lanternas, e a mar-gem da estrada recuando aos saltos, as
sombras da noite lá fora penetravam na carruagem e se misturavam com as
sombras da noite em seu interior. A casa bancária real, perto de Temple Bar, os
negócios reais do dia anterior, a casa-forte real, o mensageiro real que fora
enviado em seu encalço e a mensagem real que despachara, tudo jazia ali nas
sombras. E dessas brumas sombrias emergia a face fantasmagórica, a quem ele
novamente perguntava:
— Sepultado há quanto tempo?
— Quase dezoito anos.
— Tem vontade de viver?
— Não sei mais.
Cavar, cavar, cavar, até que um movimento impaciente de um dos dois
passageiros o advertia a fechar a janela, passar o braço com firmeza pela
correia de couro e especular sobre aquelas duas figuras adormecidas, não
demorando que seus contornos se esmaecessem e sua mente se distanciasse,deslizando novamente para o banco e o sepulcro.
— Sepultado há quanto tempo?
— Quase dezoito anos.
— Já perdeu toda esperança de ser desenterrado?
— Há muito tempo.
As palavras ainda ressoavam em seus ouvidos como se recém-
pronunciadas, tão distintas como jamais tinham sido as outras proferidas em sua
vida, quando o exausto passageiro despertou para a lucidez do dia e percebeu que
as sombras da noite se haviam dissipado.
Abriu a janela e olhou para o sol que nascia. Avistou um cômoro de terra
lavrada, com um arado no lugar onde fora deixado na noite anterior, quando
tiraram o jugo dos cavalos. Além, um pequeno bosque, no qual muitas folhas em
tons de vermelho-vivo e amarelo-dourado ainda permaneciam nas árvores.
Embora a terra estivesse fria e úmida, o céu mostrava-se claro e o sol levantava-
se brilhante, plácido e belo.
— Dezoito anos! — murmurou o passageiro, contemplando o sol. —
Louvado Criador do dia! Ficar enterrado vivo por dezoito anos! IV. A Preparação
CAPÍTULO IV
A PREPARAÇÃO
Quando a mala-posta chegou finalmente a Dover, já adiantada a manhã, o chefe
da recepção do Hotel Royal George[20] abriu a porta da carruagem, como era
seu costume. Fê-lo com alguma cerimônia, uma vez que a jornada numa
malaposta de Londres a Dover no inverno era proeza digna de congratulações
para o intrépido viajante.
Àquela altura, só sobrara um viajante aventureiro para ser parabenizado, já
que os outros dois haviam descido na estrada, em seus respectivos destinos. O
bolorento interior da carruagem, com a palha úmida e suja, seu odor
desagradável e imerso na obscuridade, tinha a aparência de um grande canil, e o
passageiro, senhor Lorry, sacudindo-se para livrar-se da palha grudada, numa
mistura confusa de abrigo peludo, chapéu desabando nas orelhas e pernas
enlameadas, parecia alguma espécie de grande mastim.
— Haverá um paquete para Calais amanhã? — perguntou ao empregado do
hotel.
— Sim, senhor, se o tempo se mantiver firme e o vento não atrapalhar. A
maré estará bastante propícia por volta das duas da tarde, senhor. Pretende
repousar agora?
— Não, só à noite. Mas gostaria de um quarto e de um barbeiro.
— E depois, o almoço, senhor? Sim, senhor. Por aqui, senhor, por favor.
Conduzam este cavalheiro até o Concord![21]Levem sua valise e providenciem
água quente. Tirem-lhe as botas. (Encontrará um bom fogo ardendo na lareira,
senhor.) Vão buscar o barbeiro e mandem-no para o Concord. Andem, mexam-
se!
O Concord era habitualmente reservado para os passageiros da mala-posta,
e como estes chegavam sempre envoltos dos pés à cabeça em roupas pesadas, o
quarto apresentava um interesse especial para o pessoal do Royal George, pois
embora fossem vistas nele entrando sempre pessoas com as mesmas
características, dele saíam os tipos mais diversos e variados. Conseqüentemente,
outro criado da recepção e dois carregadores, além de várias camareiras e da
governanta, estavam todos demorando-se de forma casual em diversos pontos do
percurso entre o Concord e a sala de refeições quando um cavalheiro de sessenta
anos, formalmente vestido num traje marrom, um tanto usado, mas muito bem
conservado, com grandes punhos quadrados e abas largas nos bolsos, passou a
caminho do almoço.
Não havia nenhum outro freguês no refeitório, naquela manhã, além docavalheiro de marrom. Sua mesa estava posta em frente à lareira, e ele sentou-
se, aguardando a refeição, com a luz das chamas refletindo-se em seu
semblante, tão imóvel que parecia ali estar para posar para um retrato.
Afigurava-se muito ordeiro e metódico, com as mãos nos joelhos e um
ruidoso relógio tiquetaqueando um sermão sonoro sob o colete, como se opusesse
sua gravidade e longevidade à leveza e fugacidade do fogo crepitante. Ele
possuía pernas bem feitas, e parecia orgulhar-se um pouco disso, por suas meias
castanhas, macias e justas, de fina textura. Seus sapatos e fivelas, apesar de
simples, revelavam o mesmo esmero. Usava uma vistosa peruca da cor do linho,
lustrosa e ondulada, pequena e bem ajustada na cabeça, que pretendia imitar
cabelos verdadeiros, mas parecia tecida de filamentos de seda ou de cristal. A
camisa de linho, embora de qualidade inferior à das meias, mostrava-se branca
como a crista das ondas que quebravam na praia vizinha, ou as velas que
refulgiam no mar ao longe, sob o sol. O rosto, habitualmente sereno e contido,
era iluminado, sob a delicada peruca, por um par de olhos vivos e brilhantes, que
por certo tinham custado a seu dono, em tempo idos, um grande esforço para
reduzi-los à expressão impessoal e reservada do Banco Tellson. Suas bochechas
exibiam um colorido saudável e a face, a despeito das rugas, apresentava poucas
marcas de ansiedade. Mas talvez os discretos solteirões do Banco Tellson se
ocupassem principalmente das inquietações alheias e, possivelmente, das
preocupações de segunda mão, como as roupas de segunda mão, que se
desgastam com mais facilidade.
Completando a semelhança com alguém posando para um retrato, o senhor
Lorry acabou por adormecer. A chegada do almoço despertou-o, e ele disse ao
criado, puxando mais a cadeira na direção da mesa:
— Gostaria que fossem preparadas acomodações para uma jovem senhora
que deve chegar a qualquer momento. Ela perguntará pelo senhor Jarvis Lorry,
ou apenas por um cavalheiro do Banco Tellson. Por favor, avise-me quando isso
acontecer.
— Sim, senhor. O Banco Tellson de Londres, senhor?
— Exatamente.
— Sim, senhor. Nós temos com freqüência a honra de hospedar os
cavalheiros do Tellson em suas jornadas entre Londres e Paris. Viaja-se bastante,
senhor, no Banco e na Companhia Tellson.
— É verdade. Somos uma companhia quase tão francesa quanto inglesa.
— Sim, senhor. Mas parece-me que não costuma viajar muito, senhor.
— Não ultimamente. Faz quinze anos que nós... que eu... estive na França.
— É mesmo, senhor? Foi antes do meu tempo aqui. Antes de todo o pessoal
do hotel, senhor. O George pertencia a outro dono naquela época, senhor.
— Creio que sim.
— Mas sou capaz de apostar que uma casa como a Tellson e Companhia já
devia florescer há cinqüenta anos, quanto mais há quinze, senhor.
— Pois pode triplicar esse tempo e apostar em cento e cinqüenta que não
estaria longe da realidade.
— Realmente, senhor?
Arregalando a boca e os olhos, enquanto se afastava alguns passos da mesa,o garçom mudou o guardanapo do braço direito para o esquerdo, assumiu uma
postura confortável e permaneceu ali, inspecionando o hóspede enquanto ele
comia e bebia, como se estivesse no alto de um observatório ou de uma torre de
vigia. Seguia o costume imemorial dos garçons de todas as eras.
Depois de terminada a refeição, o senhor Lorry saiu para uma caminhada
pela praia. A pequena, estreita e recurvada cidade de Dover escondia-se da orla
e enterrava a cabeça nos penhascos de calcário como uma espécie marinha de
avestruz. A praia era um deserto transbordante de ondas e pedras que se
entrechocavam selvagemente, e o mar fazia o que desejava, e o que desejava
era destruição. Estrondeava aos pés da cidade e bramia contra os rochedos,
arremetendo de encontro à costa, de uma forma insana. O ar que circulava entre
as casas possuía um cheiro tão forte de maresia que se poderia supor que peixes
doentes haviam subido para nele mergulhar, assim como as pessoas enfermas
desciam para os banhos de mar. Praticava-se a pesca em pequena escala no
porto e passeava-se muito à noite, para admirar as águas do canal, especialmente
quando a maré estava alta, quase transbordante. Viam-se ali pequenos
comerciantes que não faziam negócios de espécie alguma, mas que, por vezes, e
de forma inexplicável, acumulavam grandes fortunas; e era digno de nota que
ninguém nas cercanias visse com bons olhos os acendedores de lampiões.
À medida que o dia declinava pela tarde a dentro e o tempo, que se
mostrara a intervalos claro o suficiente para que se pudesse avistar a costa
francesa, voltava a tornar-se nevoento, os pensamentos do senhor Lorry também
tomavam um rumo umbroso. Quando escureceu finalmente, e estava sentado
em sua mesa defronte da lareira, aguardando o jantar, na mesma imobilidade
com que aguardara o almoço, sua mente ocupava-se em cavar, cavar e cavar
entre as brasas de um vermelho-vivo.
Uma garrafa de bom clarete após o jantar não pode fazer mal a um
escavador nos carvões incandescentes, mas tem o condão de afastá-lo de sua
estranha tarefa. O senhor Lorry quedou-se, por um longo tempo, preso de
agradável lassidão e, mal terminara de encher o último copo, exibindo aquela
expressão de satisfação completa que é sempre encontrada num idoso mas
saudável cavalheiro que chega ao final de uma garrafa, quando o estrépito das
rodas de uma carruagem invadiu a rua estreita e estrondeou no pátio da
hospedaria.
Ele pousou o copo intocado sobre a mesa.
— Deve ser Mam’selle! — murmurou.
Poucos minutos depois, o garçom veio anunciar que a senhorita Manette
havia chegado de Londres e apreciaria encontrar-se com o cavalheiro do Tellson.
— Tão cedo?
A senhorita Manette repousara um pouco na estrada, portanto não
necessitava de descanso, e estava extremamente ansiosa para ver o cavalheiro
do Tellson de imediato, se isso não o incomodasse.
O cavalheiro do Tellson pôde apenas esvaziar o copo com um ar de
exasperada resignação e ajustar a peruca loura sobre as orelhas antes de seguir o
garçom ao aposento da senhorita Manette. Este era um quarto grande e sombrio,
mobiliado em estilo funéreo com guarnições de crina preta e carregado compesadas mesas escuras, que haviam sido untadas e esfregadas até a grande mesa
no centro refletir a luminosidade mortiça dos dois candelabros pousados sobre
seu tampo. Era como se estivessem enterrados em profundos jazigos revestidos
de mogno negro e nenhuma outra luz se pudesse esperar deles até que fossem
exumados.
A obscuridade era tão difícil de penetrar que o senhor Lorry, tateando o
caminho através do surrado tapete persa, supôs que a senhorita Manette estivesse
em algum quarto vizinho, até que, tendo passado pelos dois candelabros, avistou-a
de pé para recebê-lo, entre a mesa e a lareira, uma jovem de não mais de
dezessete anos[22], num traje de via-gem, ainda tendo nas mãos, seguro pelas
fitas, o chapéu de palha que acabara de tirar. Quando seus olhos focalizaram a
pequena, esguia e graciosa figura, uma nuvem de cabelos dourados, um par de
olhos azuis que se cruzaram com os dele numa interrogação muda, e uma testa
dotada da singular capacidade (fazendo lembrar quão jovem e suave era) de
erguer-se e tecer expressões que não se limitavam à perplexidade, curiosidade
ou receio, nem mesmo a uma atenção fixa, mas constituíam uma mescla das
quatro emoções, quando seus olhos focalizaram todos esses detalhes, invadiu-lhe
a mente a súbita e vívida imagem de uma criança que ele tomara nos braços
durante a travessia do mesmo canal num dia muito frio, com o granizo caindo
sobre o mar encapelado. A percepção da semelhança durou apenas um segundo,
como um sopro na superfície do lúgubre espelho atrás dela, em cuja moldura
desfilava uma louca procissão de cupidos negros, muitos sem cabeça e todos
estropiados, que ofereciam cestas negras de frutos do Mar Morto a negras
divindades femininas. Ele curvou-se numa reverência perante a senhorita
Manette.
— Sente-se, por favor, senhor — Numa voz límpida, jovem e agradável.
Um ligeiro, ligeiríssimo, sotaque estrangeiro.
— Beijo-lhe a mão, senhorita — replicou o senhor Lorry, com os modos de
um cortejador antiquado, ao proceder a uma nova e formal reverência antes de
sentar-se.
— Recebi ontem uma carta do Banco comunicando que uma informação ou
descoberta...
— A denominação não importa, senhorita, ambas as palavras são
adequadas.
— ...a respeito de uma pequena propriedade de meu pobre pai, que não
conheci, morto há tanto tempo...
O senhor Lorry remexeu-se na cadeira, lançando um olhar perturbado à
extravagante procissão de cupidos negros. Como se eles pudessem ajudar quem
quer que fosse com aquelas cestas absurdas! — ...entenderam ser necessário que
eu fosse a Paris e entrasse em contato com um cavalheiro do Banco, que
gentilmente se dispôs a viajar para lá com esse único propósito.
— Eu mesmo.
— Era o que esperava ouvir, senhor.
A senhorita Manette inclinou a cabeça numa mesura (as jovens faziam
mesuras, naqueles dias), no afã de transmitir-lhe o quanto o reputava mais velho
e sábio do que ela. Ele ofereceu-lhe mais uma reverência.Eu respondi ao Banco, senhor, que, uma vez que pessoas experientes
entenderam necessária minha ida à França, e tiveram a bondade de advertir-me
disso, e como sou uma órfã sem nenhum amigo que possa acompanharme,
apreciaria muito se concordassem em que eu me colocasse sob a proteção desse
amável cavalheiro. Soube que ele já havia deixado Londres, mas creio que lhe
enviaram uma mensagem para que me aguardasse aqui.
— Fiquei feliz por ser encarregado da missão. Ficarei mais feliz ainda em
executá-la.
— Senhor, eu lhe agradeço realmente. Agradeço-lhe profunda e
sinceramente. O Banco me avisou que o senhor me explicaria todos os detalhes
do negócio e preveniu-me que os consideraria surpreendentes. Preparei-me o
melhor que pude e, sem dúvida, estou fortemente interessada e ansiosa por saber
que detalhes são esses.
— É claro — concordou o senhor Lorry. — Sim... eu...
Após uma pausa, acrescentou, ajustando outra vez a peruca frisada sobre as
orelhas.
— É muito difícil começar.
Ele não começou, mas, em sua indecisão, encontroulhe o olhar. A testa da
jovem ergueu-se naquela expressão singular — que também era encantadora e
característica — e ela suspendeu a mão, como se, com aquele gesto involuntário,
pudesse capturar ou deter alguma sombra fugidia.
— O senhor é realmente um desconhecido para mim?
— E não sou? — O senhor Lorry abriu as mãos, estendendo-as para a frente
com um sorriso sugestivo.
Entre as sobrancelhas e um pouco acima do pequeno nariz feminino, da
linha mais fina e delicada, a expressão aprofundou-se. Ela, que até então estivera
de pé, acomodou-se pensativamente na cadeira. Ele observou-a refletir e, no
instante em que a moça tornou a levantar os olhos, prosseguiu:
— Senhorita Manette, presumo que, em seu país adotivo, o melhor a fazer é
dispensar-lhe o tratamento adequado a uma jovem inglesa?
— Se preferir, senhor.
— Senhorita Manette, sou um homem de negócios e tenho um para resolver
com a senhorita. Ao ouvir-me, peçolhe que não me dê mais atenção do que daria
a uma máquina que fala, na verdade, não sou muito mais do que isso. Com sua
permissão, eu lhe relatarei a história de um de nossos clientes.
— História!
O senhor Lorry intencionalmente pareceu ter confundido a palavra que ela
repetiu, quando prosseguiu, apressado:
— Sim, cliente. Nos negócios financeiros, usualmente chamamos de
“clientes” as pessoas com quem mantemos conexões. Esse de quem falo era um
cavalheiro francês. Cientista, homem de grande erudição... um doutor.
— Não era de Beauvais, pois não?
— Ora, sim, de Beauvais. Como o monsieur Manette, seu pai, o cavalheiro
era de Beauvais. E a exemplo de seu pai, monsieur Manette, ele gozava de
grande reputação em Paris. Eu tive a honra de conhecê-lo lá. Nossas relações
eram de natureza comercial, mas confidenciais. Eu estava naquela época emnossa casa francesa, e já faz... oh! vinte anos.
— Naquela época, se me é dado perguntar, que época, senhor?
— Refiro-me, senhorita, a vinte anos passados. Ele se casou com uma dama
inglesa, e eu fui um dos curadores. Os negócios dele, bem como os de muitos
outros cavalheiros franceses e de suas famílias, estavam inteiramente nas mãos
do Tellson. Do mesmo modo, eu próprio sou, ou tenho sido, curador de um tipo ou
outro de negócio de nossos clientes. São apenas relações comerciais, senhorita,
que não envolvem amizade, interesses particulares nem quaisquer outros
sentimentos. No curso de minha vida profissional, eu ia de um caso a outro da
mesma maneira que ia de um cliente a outro ao longo de um dia de trabalho. Em
resumo, não sou afetado em termos emocionais. Não passo de uma simples
máquina. Continuando...
— Mas esta é a história de meu pai, senhor, e começo a pensar que... — a
testa curiosamente enrugada concentrava-se nele com mais intensidade — que,
quando minha mãe morreu, dois anos depois de papai, e me tornei órfã, foi o
senhor quem me levou para a Inglaterra. Tenho quase certeza de que foi o
senhor.
O senhor Lorry segurou a pequena e hesitante mão que confiantemente
avançou na direção da dele e levou-a aos lábios com certa cerimônia. Então,
reconduziu a jovem senhorita a seu assento e, apoiando a mão esquerda no
espaldar da cadeira ao mesmo tempo que, com a direita, alternadamente coçou
o queixo, ajustou a peruca sobre as orelhas e gesticulou para enfatizar o que dizia,
olhou para baixo, fitando-lhe o rosto que se erguia para contemplá-lo.
— Senhorita Manette, fui eu. E a senhorita verá o quanto fui franco a meu
respeito ao afirmar que não era guiado por qualquer sentimento e que todas as
relações que mantive com meus clientes eram estritamente profissionais, se
considerar que nunca mais a vi desde então. Não, a senhorita esteve sob a tutela
do Tellson todos esses anos e eu me mantive demasiado ocupado com outros
assuntos dessa casa. Sentimentos! Não tenho tempo nem oportunidade para eles.
Passei toda a minha vida, senhorita, ajudando a movimentar as engrenagens de
uma imensa máquina financeira.
Após essa original descrição de sua rotina diária de trabalho, o senhor Lorry
alisou o alto da peruca loura com ambas as mãos (o que era desnecessário, pois
não havia nada mais liso do que o topo da peruca loura) e retornou à sua atitude
anterior:
— Até aqui, senhorita, como bem observou, esta é a história de seu
pranteado pai. Agora vem a diferença. Se seu pai não tivesse morrido naquela
ocasião, não se alarme! Como parece assustada! Ela estava, de fato, assustada, e
agarrou-lhe o pulso.
— Rogo-lhe — disse o senhor Lorry, em tom tranqüilizador, retirando a mão
esquerda da cadeira para pousá-la sobre os dedos suplicantes e trêmulos que o
apertavam —, rogo-lhe que domine a agitação. Estamos tratando de negócios,
apenas isso. Como eu ia dizendo...
O aspecto dela era tão descomposto que ele parou, meditou e retomou o
discurso:
— Como eu ia dizendo, se monsieur Manette não houvesse morrido e sim...desaparecido súbita e silenciosamente, se lhe tivessem dado sumiço e ninguém
pudesse descobrir-lhe o paradeiro... se ele possuísse como inimigo algum
compatriota que pudesse exercer prerrogativas tais que, em meu tempo, vi muita
gente destemida receosa de sequer comentá-las em voz baixa. Prerrogativas
como, por exemplo, a de preencher formulários em branco[23], a fim de
condenar qualquer um ao esquecimento e ao confinamento por período
indeterminado. Se a esposa dele houvesse implorado em vão ao rei, à rainha, à
corte e ao clero que lhe dessem notícias do marido... então a história de seu pai
seria a mesma desse desafortunado cavalheiro, o doutor de Beauvais.
— Peço-lhe encarecidamente que me conte mais, senhor.
— Contarei. Tem certeza de que pode suportar?
— Posso suportar tudo, menos a incerteza em que acabou de me deixar.
— Fala com tanto controle, e a senhorita... está controlada. Muito bom! —
aplaudiu, embora seus gestos lhe desmentissem as palavras. — Uma questão de
negócios. Encare-a como uma questão de negócios... que precisam ser
resolvidos. Ora, se a esposa do doutor, a despeito de sua grande coragem e
determinação, sofresse tanto com o desaparecimento do marido antes do
nascimento de sua pequena criança...
— Sua pequena criança era uma filha, senhor.
— Uma filha. Uma... questão de... negócios, não se aflija. Senhorita, se a
pobre dama tivesse sofrido tão intensamente antes do nascimento da criança que
ela tomou a decisão, para poupá-la de uma herança de agonia e desespero, de
fazê-la acreditar que o pai havia morrido. Não, não se ajoelhe! Em nome do céu,
por que se ajoelha diante de mim?
— Para que me revele a verdade. Oh, estimado, gentil e compassivo senhor,
revele-me toda a verdade!
— Estamos tratando de negócios, não esqueça. Apenas... negócios. A
senhorita me confunde... como poderei cuidar de negócios se me deixar confuso?
Raciocinemos com calma. Se tivesse a bondade de me dizer, por exemplo, qual o
resultado da multiplicação de nove pences por nove, ou a quantos xelins
equivalem vinte guinéus, seria encorajador. Eu me sentiria mais tranqüilo quanto
a seu estado emocional.
Sem responder diretamente àquele apelo, ela sentouse, empertigada e
imóvel, depois que ele a ergueu com delicadeza, e as mãos que não haviam
cessado de apertar-lhe os pulsos pousaram, suaves e firmes, sobre o regaço. Isso
bastou para devolver a confiança ao senhor Jarvis Lorry.
— Assim está bem, está bem. Coragem! Negócios! Tem negócios a
solucionar, senhorita, negócios importantes. Senhorita Manette, sua mãe tomou
essa decisão a seu respeito. E quando ela faleceu, com o coração partido,
suponho, sem jamais ter desistido de sua busca inútil, deixou-a, com dois anos de
idade, para crescer, florescer, tornar-se linda e feliz, sem que nuvens negras
pairassem sobre a sua cabeça e sem incertezas quanto ao seu pai, se logo sairia
da prisão ou se ali permaneceria, desperdiçando a vida trancafiado por longos
anos mais.
Ao pronunciar aquelas palavras, ele olhou para baixo com um admirável ar
de piedade, fitando-lhe os sedosos cabelos dourados, como receando que jáestivessem prematuramente encanecidos.
— A senhorita sabe que seus pais não tinham grandes posses, e que o pouco
que possuíam ficou segurado no nome de sua mãe e no seu. Não se descobriu
nenhum outro bem, quer fosse em dinheiro, quer fosse em propriedades.
Contudo... Sentiu que os dedos da jovem lhe apertavam o pulso e parou. A
expressão na testa, que tanto o atraíra e que agora apresentava-se fixa, havia-se
aprofundado em sofrimento e horror.
— Contudo ele... foi encontrado. Está vivo. Muito mudado, é provável; quase
destroçado, é possível, mas esperaremos pelo melhor. Ainda vivo, e isso é o que
conta. Seu pai foi levado à casa de um velho criado em Paris, para onde nos
dirigiremos em seguida. Eu, para identificá-lo, se o conseguir. E a senhorita, para
devolvê-lo à vida, ao amor, às suas atividades, à tranqüilidade e ao conforto.
Um tremor percorreu-a e transmitiu-se ao senhor Lorry. Ela disse, numa
voz baixa, pausada, uma voz de horror e estupefação, como se falasse num
sonho:
— Verei seu espectro! Será seu espectro... não ele!
O senhor Lorry afagou com suavidade as mãos que lhe prendiam o braço.
— Não, não, não. Veja, compreenda. Já agora conhece tudo, o melhor e o
pior. A senhorita está a caminho de encontrar o pobre e injustiçado cavalheiro. E,
após uma travessia tranqüila do canal e uma jornada tranqüila por terra, irá para
junto de seu ente querido.
Ela repetiu no mesmo tom, reduzido a um mero sussurro:
— Eu era livre, era feliz, pois seu espectro jamais me assombrou!
— Só mais uma coisa — acrescentou o senhor Lorry, enfatizando as
palavras, no esforço de reconquistar-lhe a atenção. — Encontraram-no sob outro
nome. O dele foi há muito esquecido ou ocultado. Seria inútil tentar averiguar
qual das duas hipóteses é a correta, bem como seria inútil tentar apurar se ele foi
simplesmente por anos esquecido ou se estava destinado ao cárcere permanente.
Não devemos fazer perguntas de qualquer espécie, seria muito perigoso. E é
melhor nos abstermos de tocar no assunto, não importa onde nem de que modo, e
removê-lo da França o mais cedo possível. Mesmo eu, protegido por minha
cidadania inglesa, e agente do Tellson, tão importante para as finanças francesas,
evito qualquer alusão ao caso. Trago tudo na mente. Não disponho de um único
papel que se refira abertamente ao tema. Afinal, não deixa de ser uma missão
secreta. Minhas credenciais, ordens e memorandos, tudo se limita a uma frase,
“De volta à vida”, que pode significar qualquer coisa. Mas, o que é isso?! Ela não
ouviu uma palavra! Senhorita Manette!
Totalmente quieta e silenciosa, sem sequer encostarse no espaldar da
cadeira, ela quedava-se sob suas mãos, completamente insensível, com os olhos
abertos e fixos nele, e com aquela última expressão parecendo ter sido gravada
ou marcada a fogo em seu semblante. Apertava com tanta força o seu braço que
o senhor Lorry receou machucá-la, caso tentasse se libertar. Assim, gritou por
ajuda sem se mover.
Uma mulher de aspecto feroz, que o senhor Lorry, mesmo em sua
perturbação, não pôde deixar de observar ser toda de uma cor avermelhada, até
na tonalidade dos cabelos ruivos, vestir-se num estilo de roupasextraordinariamente justas e ter sobre sua cabeça um formidável chapéu que
mais parecia um recipiente de madeira de um granadeiro[24], e de bom
tamanho, ou um grande queijo Stilton, entrou correndo no quarto, à frente dos
criados do hotel, e prontamente solucionou o problema de sua separação da
pobre senhorita, colocando a mão musculosa em seu peito e fazendo-o voar de
encontro à parede vizinha.
“Que força! Essa mulher bem podia ter sido um homem!”, o senhor Lorry
pensou, arquejando ao bater as costas na parede.
— Ora, olhem só para vocês! — berrou a estranha figura para os criados do
hotel. — Por que não vão buscar alguma coisa, em vez de ficarem aí parados
olhando para mim? Não sou nenhuma beldade para vocês me encararem desse
modo! Vão procurar sais, água fria, vinagre, qualquer coisa para socorrer a
senhorita, e rápido, ou terão de haver-se comigo!
Houve uma dispersão imediata, em busca desses tonificantes. Ela deitou
gentilmente a paciente num sofá, enquanto a assistia com grande habilidade e
solicitude, chamando-a de “minha preciosa!” e de “meu passarinho!” e
ajeitando-lhe os cabelos dourados sobre os ombros com cuidado e visível
orgulho.
— E o senhor, de marrom! — ela bradou, voltando-se indignada para o
senhor Lorry. — Não podia contar-lhe o que precisava sem assustá-la até a
morte? Olhe para ela, com seu lindo rosto tão pálido e suas mãos frias. Chama
isso de trabalho próprio de um banqueiro?
O senhor Lorry sentiu-se desconcertado a tal ponto diante de questão tão
difícil de responder que somente pôde observar a distância, com pesarosa
simpatia e humildade, enquanto a forte mulher, tendo expulsado os criados sob a
misteriosa ameaça de “haverem-se com ela”, cujas reais implicações não
foram esclarecidas, conseguiu trazer aos poucos sua protegida de volta a si, e
sentou-a de modo que apoiasse a cabeça em seu ombro.
— Espero que ela agora se recupere — disse o senhor Lorry.
— Não graças ao senhor. Minha pobre menina...
— Eu espero — o senhor Lorry prosseguiu, após outra pausa de humilde e
pesarosa simpatia — que a senhora acompanhe a senhorita Manette até a
França?...
— É bem provável! — a forte mulher replicou. — Se estava escrito que eu
cruzaria a água salgada, o senhor acha que a decisão da Providência seria
manter-me numa ilha?
Sendo outra pergunta difícil de responder, o senhor Lorry retirou-se, para
melhor considerá-la. V. A Taberna
CAPÍTULO V
A TABERNA
Um grande tonel de vinho tombou na rua e se quebrou. O acidente aconteceu no
momento em que o retiravam de uma carroça. O tonel despencou rapidamente,
os arcos se romperam e ele rolou sobre as pedras bem na porta de uma taberna,
espatifando-se como uma casca de noz.
Todas as pessoas das cercanias interromperam seus afazeres, ou seu ócio, e
correram ao local para beber o vinho.
As pedras ásperas e irregulares da rua, cheias de pontas aguçadas, podendo-
se pensar que teriam sido especialmente projetadas para aleijar a todos os seres
viventes que sobre elas passassem, haviam represado o vinho em pequenas
poças, cada qual rodeada, de acordo com seu tamanho, por grupos maiores ou
menores de pessoas que se acotovelavam. Alguns homens se ajoelharam,
juntaram as mãos em concha e beberam, ou tentaram ajudar as mulheres, que
se curvavam sobre seus ombros e procuravam engolir o vinho antes que este lhes
escapasse por entre os dedos. Outros, homens e mulheres, cavoucaram as poças
com canecas de barro lascadas ou mesmo com os lenços de cabeça das
mulheres, que eram torcidos para derramar gotas do líquido precioso na boca das
crianças. Outros construíram diminutos aterros para deter o vinho que se
espalhava. Outros, guiados pelos espectadores aboletados nas altas janelas,
atiravam-se de um lado para o outro, interceptando os pequenos riachos de vinho
que se afastavam em novas direções. Outros, ainda, dedicavam seus esforços aos
pedaços encharcados e tingidos do barril, lambendo e até mastigando
ruidosamente os fragmentos molhados de vinho com avidez. Não havia
escoadouros para o vinho, e não só todo ele foi levado pelas pessoas como
também carregou-se junto toda a lama, ficando a rua tão limpa que parecia que
um varredor de ruas havia passado por ali, se é que alguém familiarizado com as
redondezas pudesse acreditar em tão miraculosa presença.
O som agudo de riso e de vozes animadas, de homens, mulheres e crianças,
ressoou na rua enquanto perdurou o jogo da “caça ao vinho”. Foi um jogo
divertido e um tanto rude, caracterizado por uma camaradagem especial, por
uma inclinação notável entre as pessoas para se unirem umas às outras, a qual
conduziu, principalmente para os mais afortunados ou eufóricos, a abraços
folgazões, brindes pela saúde, apertos de mão e a danças de roda com as mãos
dadas. Quando o vinho se acabou, e os lugares onde a bebida se empoçara com
abundância reduziram-se a marcas de dedos formando um curioso padrão de
grades, essas demonstrações cessaram de modo tão repentino como quandocomeçaram. O homem que abandonara a serra cravada na lenha que cortava
tornou a colocá-la em movimento. A mulher que deixara no umbral da porta um
pequeno braseiro com cinzas quentes, com as quais tencionava aquecer as mãos
e os pés, dela e do filho, retornou ao braseiro. Homens com os braços nus,
cabeleiras hirsutas e faces cadavéricas, que haviam emergido dos porões para a
luz invernal, regressaram a seus subterrâneos. A melancolia apossou-se do
cenário, combinando-se com este de modo mais natural do que o brilho do sol.
O vinho era tinto e manchou de rubro o chão da rua estreita no subúrbio de
Santo Antônio[25], em Paris, por onde se espalhara. Também tingiu muitas mãos,
e muitos rostos, e muitos pés descalços e muitos sapatos de madeira. As mãos do
homem que serrava lenha deixou marcas vermelhas nas toras. E a testa da
mulher que embalava seu bebê foi manchada pelo trapo velho que tornara a
amarrar na cabeça. Aqueles que se haviam atirado com avidez às aduelas do
barril adquiriram nódoas vermelhas como sangue ao redor da boca. E um rapaz
alto, brincalhão e muito manchado, de cuja cabeça quase caía um comprido
barrete, mergulhou o dedo na lama tingida de vinho e garatujou num muro
“SANGUE”. Aproximava-se o tempo em que também essa espécie de vinho se
derramaria pelas pedras da rua, e seu corante tingiria de vermelho muitos dos
que ali se encontravam.
E agora que a nuvem encobria Santo Antônio, cujo sagrado semblante fora
momentaneamente iluminado por um raio de sol, e as trevas que sobre ele
pesavam voltavam a se adensar — frio, sujeira, doença, ignorância e fome —,
eram os senhores que se perfilavam perante a santificada presença, nobres de
grande poder todos eles, mas especialmente o último. Espécimes de um povo
que, de uma forma terrível, vinha sendo moído e remoído, e certamente não no
moinho fabuloso que transformava velhos em jovens[26], experimentavam
calafrios em cada esquina, entravam e saíam de cada porta, olhavam através de
cada janela, tremulavam em cada farrapo que o vento agitava. O moinho que os
havia triturado era aquele que transformava jovens em velhos. As crianças
exibiam rostos envelhecidos e vozes graves; e sobre elas, e sobre seus rostos
adultos, lavrado em cada sulco da idade e renovando-se a cada momento, estava
o mesmo sinal, a Fome. Esta prevalecia por toda a parte. A Fome projetavase das
casas estreitas nas roupas esfarrapadas que pendiam de varas e cordas. A Fome
era remendada no interior delas com retalhos de palha, trapos, madeira e papel.
A Fome repetia o seu nome em cada fragmento da lenha miúda e escassa que os
homens cortavam. A Fome os contemplava do alto das chaminés sem fumaça e
do rés das vias imundas, sem nenhum resíduo, no meio de seu lixo, de algo que se
pudesse comer. Fome era a inscrição nas prateleiras do padeiro, gravada em
cada pãozinho de seu exíguo estoque de pão ruim; na salsicharia, em cada
produto de carne de cachorro que era posto à venda. A Fome chacoalhava seus
ossos secos entre as castanhas, no cilindro giratório em que eram postas a assar
no braseiro. A Fome se estilhaçava em átomos em cada ínfima tigela de
palhentas rodelas finas de batata[27], fritas com algumas relutantes gotas de
azeite.
Sua residência permanente lhe era de todo conveniente. Uma rua estreita e
batida pelo vento, cheia de imundícies e mau cheiro, desembocando em outrasruas estreitas e batidas pelo vento, todas povoadas por figuras andrajosas e
bêbadas, cheirando a andrajos e bebida, e por todas as coisas que exibiam seu
aspecto enfermiço ao olhar atento. Sob o ar acuado das pessoas existia, contudo,
a idéia feroz quanto à possibilidade de se transformarem de caça em caçador.
Embora deprimidos e furtivos, não faltavam no meio deles os olhos de fogo, nem
lábios crispados, esbranquiçados por tudo quanto calavam, nem frontes cujas
rugas se entreteciam como a corda dos patíbulos que pensavam um dia vir a
suportar ou infligir. Os sinais de comércio (e os havia em cada uma das lojas)
eram todos sombrias ilustrações da Fome. O açougueiro e o homem que vendia
carne de porco pintavam em suas tabuletas apenas as carnes de pescoço mais
esqueléticas. O padeiro, os mais grosseiros e minguados pães. As pessoas
toscamente retratadas bebendo nas tabernas resmungavam sobre as diminutas
canecas de vinho e cerveja, trocando olhares dissimulados e ameaçadores. Nada
era representado em condições de prosperidade, com exceção de ferramentas e
armas. As facas e os machados do cuteleiro eram aguçados e brilhantes, o
martelo do ferreiro era pesado e o estoque do fabricante de armas era mortífero.
As pedras irregulares e afiadas do chão, com seus pequenos e numerosos
reservatórios de lama e água parada, não ofereciam passeio para pedestres,
parando abruptamente diante das portas. O esgoto, em compensação, corria pelo
meio da rua, quando corria, já que isso só acontecia depois de chuvas fortes.
Então, precipitava-se por muitos excêntricos caminhos para dentro das casas. Ao
longo das ruas, em largos intervalos, havia toscos lampiões suspensos por roldana
e corda[28]. À noite, quando o acendedor de lampiões os abaixava para acendê-
los e tornava a erguê-los, as luzes turvas oscilavam sobre as cabeças de modo
nauseante, como se estivessem no interior de um navio. De fato estavam no mar,
e tanto o navio quanto sua tripulação encontravam-se sob a iminência de uma
tempestade, pois aproximava-se o tempo em que os lúgubres espantalhos que
povoavam aquela região, entregues à sua inatividade e sua fome, observariam o
acendedor de lampiões o suficiente para conceberem a idéia de aperfeiçoar o
método, içando homens com aquelas cordas e roldanas, como uma forma de
iluminar as trevas da condição em que viviam. Mas o tempo ainda não chegara.
E cada vento que sacudia a França em vão agitava os farrapos do espantalho pois
os pássaros, donos de um canto mavioso e de linda plumagem, não percebiam
neles qualquer advertência.
A taberna era uma loja de esquina, melhor que a maioria das outras em
aparência e categoria. Seu proprietário permanecera do lado de fora, de colete
amarelo e calções verdes, contemplando a disputa pelo vinho derramado.
— O problema não é meu — comentou ele, com um sacudir de ombros
conclusivo. — A responsabilidade é dos homens do mercado. Eles que tragam
outro.
Nesse instante, seu olhar casualmente pousou no rapaz alto e brincalhão que
escrevinhava sua brincadeira no muro. Chamou-o do outro lado da rua:
— Diga, então, meu Gaspar, o que faz aí?[29]
O sujeito apontou-lhe o resultado de sua travessura com o ar grandemente
significativo, freqüente entre os de sua gente. Como também sucede com
freqüência entre eles, o gesto perdeu o significado e falhou completamente emseu propósito.
— O que é isso agora? Resolveu candidatar-se a uma vaga no hospital de
loucos? — objetou o taberneiro, atravessando a rua e acabando com a
brincadeira ao lambuzar o muro com um punhado de lama apanhada do chão
com esse propósito. — Por que escreve nas ruas públicas? Será que não existe,
responda, não existe nenhum outro lugar para escrever palavras como essa?
Ao repreendê-lo, deixou cair a mão esquerda (talvez por acaso, talvez não)
sobre o coração do rapaz. Este bateulhe de leve na mão, deu um salto ágil no ar,
desceu numa fantástica coreografia, segurando o sapato manchado que atirara
para cima ao pular, e equilibrou-se na ponta dos pés. Um brincalhão que parecia
possuir, naquelas circunstâncias, um caráter de extrema, se não feroz,
jocosidade.
— Calce o sapato, calce-o logo — o outro mandou. — Aconselho-o a
chamar o vinho de “vinho” e parar por aí.
Com tal advertência, limpou a mão enlameada na roupa do rapaz de modo
deliberado, como se a houvesse sujado com esse único e exclusivo intento, e
tornou a atravessar a rua, entrando na taberna.
Esse taberneiro era um homem de trinta anos, pescoço taurino e aspecto
marcial. Devia ser dotado de uma compleição sangüínea, pois, apesar do dia frio,
não vestira o paletó, trazendo-o dependurado sobre o ombro. Também dobrara as
mangas da camisa, de forma que seus braços estavam despidos até os cotovelos.
Tampouco usava qualquer coisa na cabeça além dos escuros cabelos crespos e
curtos. Era um tipo totalmente trigueiro, com olhos separados por uma boa e
atrevida distância. No fundo, um sujeito bem humorado, mas de ar implacável.
Evidentemente, um homem determinado; e seria melhor não encontrá-lo num
atalho estreito com um abismo de cada lado, pois nada no mundo o desviaria do
seu caminho.
Madame Defarge[30], sua esposa, estava sentada atrás do balcão, na
taberna, quando ele entrou. Era uma mulher robusta, aproximadamente da
mesma idade do marido, com olhos argutos que jamais pareciam olhar
diretamente para o que quer que fosse, mãos grandes cheias de anéis, um rosto
resoluto, feições bem pronunciadas e grande compostura. Gozava da reputação
de quase nunca cometer erros contra si mesma em qualquer das contas que
fazia. Muito sensível ao frio, madame Defarge enrolara-se em peles e cingira a
cabeça com vários xales de cores claras, tomando o cuidado para não esconder
os grandes brincos. Tinha à frente um trabalho de tricô, que largara para
esgaravatar os dentes com um palito. Assim ocupada, com o cotovelo direito
apoiado na mão esquerda, nada disse quando seu marido entrou, mas tossiu de
leve. Isso, e mais o leve arquear de suas ne-gras sobrancelhas, sugeriu ao marido
que ele deveria olhar em torno e observar, entre os fregueses na taberna, um que
entrara enquanto ele estava fora.
O taberneiro, assentindo, passeou com os olhos até repousá-los num
cavalheiro de idade acompanhado de uma jovem dama, sentado a uma mesa de
canto. Havia ali outros grupos: dois homens jogando cartas, dois jogando dominó,
três no balcão dividindo um pouco de vinho. Ao passar por trás do balcão, ouviu o
cavalheiro comentar com a moça:— Eis aí nosso homem.
— O que diabos fazem estes senhores nesta galé?[31] — monsieur Defarge
perguntou a si mesmo. — Eu não os conheço.
Contudo, fingiu não notar os dois estrangeiros e começou a conversar com o
triunvirato que bebia junto ao balcão.
— Como foi, Jacques?[32] — cumprimentou um dos três.
— Beberam todo o vinho derramado?
— Cada gota, Jacques — respondeu monsieur Defarge.
Quando essa troca de nomes foi efetuada, madame Defarge, esgaravatando
os dentes com o palito, tornou a tossir e a erguer as sobrancelhas.
— Não é sempre — observou o segundo dos três, dirigindo-se a monsieur
Defarge — que a maioria desses miseráveis saboreia o gosto do vinho, ou de
qualquer coisa além de pão preto e morte. Não concorda, Jacques?
— Concordo, Jacques — monsieur Defarge replicou.
Diante dessa segunda troca de nomes, madame Defarge, ainda manejando
o palito com profunda compostura, de novo tossiu e ergueu as sobrancelhas.
O último dos três proferiu a sua fala, depois de pousar o copo vazio e estalar
os lábios:
— Ah! Tanto pior! Um gosto amargo é o que essa pobre ralé traz na boca,
com a vida árdua que leva, Jacques. Estou certo, Jacques?
— Você está certo, Jacques — foi a resposta de monsieur Defarge. A
terceira troca de nomes completou-se no momento em que madame Defarge
colocou o palito de lado, mantendo as sobrancelhas erguidas, e remexeu-se na
cadeira com um ligeiro farfalhar.
— Ora, bem... — resmungou o marido. — Cavalheiros, esta é minha esposa.
Os três fregueses tiraram os respectivos chapéus com três floreios diante de
madame Defarge. Retribuindo o cumprimento, ela inclinou a cabeça e envolveu-
os num rápido olhar. Então, sempre com ar casual, volveu a atenção para a
taberna e retomou o tricô com aparente calma, absorvendose no trabalho.
— Cavalheiros — disse o marido, que mantivera seus grandes olhos atentos
sobre ela —, bom dia. O quarto de solteiro que desejavam ver, e sobre o qual
perguntavam antes de eu sair, fica no quinto andar. A porta da escada dá para um
pequeno jardim à esquerda — ele apontou —, perto da janela do meu
estabelecimento. Mas, agora me lembro, um dos senhores já esteve lá e pode
mostrar o caminho. Cavalheiros, adieu.
Eles pagaram pelo vinho e deixaram a taberna. Os olhos de monsieur
Defarge estudavam a esposa e suas agulhas de tricô, quando o cavalheiro de
idade avançou em sua direção e pediu-lhe o favor de trocar algumas palavras.
— Com muito gosto, senhor — replicou monsieur Defarge, acompanhando-
o disfarçadamente até a porta.
A conferência entre ambos foi muito curta, mas bastante incisiva. Quase na
primeira palavra, monsieur Defarge assustou-se e ouviu-o com grande atenção.
Cerca de um minuto mais tarde, balançou a cabeça em assentimento e saiu. O
cavalheiro, então, acenou para a jovem e ambos saíram também. Madame
Defarge, que tricotava com dedos ágeis e olhar concentrado, pareceu nada ver.
O senhor Jarvis Lorry e a senhorita Manette emergiram da taberna ejuntaram-se a monsieur Defarge na porta que ele acabara de indicar aos três
outros fregueses, e que se abria para um pequeno e malcheiroso jardim de
fundos, servindo de entrada para um cortiço habitado por inúmeras pessoas. Na
sombria entrada com chão ladrilhado que conduzia à escadaria de chão também
ladrilhado, monsieur Defarge curvou-se sobre um joelho diante da filha de seu
velho senhor e beijou-lhe a mão. Era um gesto cortês, destituído, porém, de
afabilidade. Uma transformação notável se operara nele em poucos segundos. Já
não havia traço de bom humor em seu rosto, nem restara qualquer vestígio de
lhaneza em seu semblante. Ele se tornara um homem de ar grave, taciturno e
ameaçador.
— Fica lá no alto, a subida é um pouco difícil. É melhor irmos devagar —
monsieur Defarge preveniu o senhor Lorry com voz grave, quando atacaram os
degraus iniciais.
— Ele está sozinho? — o senhor Lorry cochichou.
— Sozinho! Que Deus se apiede dele, quem lhe faria companhia? —
retrucou o outro no mesmo tom baixo.
— Então, ele está sempre sozinho?
— Sim.
— Por vontade dele?
— Por necessidade. Como ele estava, quando o vi pela primeira vez, depois
que me encontraram e me perguntaram se cuidaria dele com discrição, sob risco
de vida. Como ele estava então é como se encontra hoje.
— Ele está muito mudado?
— Mudado!
O taberneiro parou para esmurrar a parede, murmurando uma terrível
imprecação. Nenhuma resposta direta teria possuído metade da força daquele
ato.
O estado de espírito do senhor Lorry tornava-se mais e mais sombrio à
medida que, junto com os dois companheiros, subia cada lance de escada.
Uma escadaria assim, com suas dependências, nas velhas e mais populosas
regiões de Paris, já seria muito ruim nos dias de hoje. Mas, naquela época, era
por demais repugnante para os que não estavam habituados a isso e não tivessem
os sentidos embotados. Cada diminuto apartamento daquele alto e imundo
pardieiro, ou seja, o quarto ou quartos atrás de cada porta que se abria para a
escada, deixava seu monte de detritos no próprio patamar, além de atirar outros
refugos pelas janelas. A incontrolável e inevitável massa em decomposição
assim engendrada teria poluído o ar, mesmo que a pobreza e as privações já não
o saturassem com suas impurezas intangíveis; as duas fontes de insalubridade
combinadas tornavam-no irrespirável. O caminho prosseguia nessa atmosfera,
como íngreme espiral de imundície e veneno. Rendendo-se à perturbação de sua
mente e à agitação crescente de sua jovem companheira, o senhor Jarvis Lorry
parou duas vezes para descansar. Cada uma dessas paradas foi feita junto a uma
grade de aspecto deprimente, que parecia deixar escapar aos poucos o ar menos
contaminado, enquanto todos os miasmas nocivos e infectos rastejavam para o
interior. Através de suas barras enferrujadas, mais do que vislumbres,
apreendiam-se sabores daquele bairro confuso. E nada, dentro de seus limites,mais perto ou mais baixo que as duas grandes torres de Notre-Dame, oferecia
qualquer promessa de vida saudável ou de aspirações salutares. Atingiram por
fim o topo da escadaria e pararam pela terceira vez. Havia ainda que subir outra
escada, de degraus extremamente íngremes e estreitos, antes de alcançarem a
água-furtada. O taberneiro, seguindo sempre um pouco à frente, e sempre do
lado escolhido pelo senhor Lorry, como se temesse ser interpelado pela dama,
voltou-se e, vasculhando os bolsos do paletó que trazia pendurado no ombro,
encontrou uma chave.
— A porta, então, fica trancada, meu amigo? — surpreendeu-se o senhor
Lorry.
— Fica, sim — foi a resposta seca de monsieur Defarge.
— Acha mesmo necessário manter o pobre homem tão recluso?
— Acho necessário trancá-lo a chave — monsieur Defarge murmurou em
seu ouvido, franzindo a testa.
— Por quê?
— Por quê? Porque ele viveu tanto tempo trancado que se amedrontaria,
deliraria, decerto se despedaçaria, morreria, sabe-se lá o que faria se eu deixasse
a porta aberta.
— Seria possível? — indagou o senhor Lorry.
— Seria possível! — repetiu Defarge com amargura. — Sim. Em que
mundo maravilhoso vivemos, onde esta e muitas outras coisas são possíveis, e
não apenas possíveis, mas efetivamente ocorrem, veja o senhor!, debaixo desse
céu, todos os dias. Com todos os demônios! Continuemos.
O diálogo se travou num murmúrio baixo o suficiente para que nada
chegasse aos ouvidos da jovem dama. Mas, a essa altura, ela estava tomada de
uma emoção tão forte, e seu rosto expressava tão profunda ansiedade, e,
sobretudo, tamanho espanto e terror, que o senhor Lorry sentiu-se impelido a
dirigir-lhe uma ou duas palavras de encorajamento.
— Ânimo, prezada senhorita! Ânimo! Negócios, lembra-se? O pior
momento em breve passará. Basta cruzarmos a porta do quarto e estará
terminado. Então, todo o bem que a senhorita lhe trará, todo o alívio, toda a
felicidade, tudo começará. Deixemos nosso bom amigo aqui amparála desse
lado. Está ótimo, amigo Defarge. Agora, venha. Negócios, negócios!
Eles subiram devagar e silenciosamente. A escadaria era curta e logo
alcançaram o topo. Lá, onde havia uma curva brusca, depararam-se com três
homens, que estavam com as cabeças baixas, bem próximas umas das outras, ao
lado da porta, observando com atenção o interior do quarto através de alguns
buracos ou frestas na parede. Ao ouvirem passos na escada, eles se viraram e
empertigaram, e se pôde neles reconhecer aqueles três fregueses que antes
estavam bebendo na taberna.
— Com a surpresa da visita dos senhores, eu os esqueci — explicou
monsieur Defarge. — Deixem-nos, amigos. Temos negócios a tratar aqui.
Os três deslizaram para longe da porta e desceram silenciosamente.
Não havendo aparentemente outra porta naquele pavimento, e como o
taberneiro dirigiu-se direto a ela quando foram deixados a sós, o senhor Lorry
indagou-lhe num murmúrio, um tanto irritado:— Está promovendo um espetáculo à custa de monsieur Manette?
— Eu o mostro, como presenciou, a alguns poucos escolhidos.
— Acha correto esse procedimento?
— Eu acho, sim.
— Quem são esses “poucos”? Como os escolhe?
— Escolho homens dignos, todos com o meu nome, meu nome é Jacques,
para quem essa visão pode trazer algum benefício. Já chega. O senhor é inglês, o
caso é diferente. Fiquem aqui um momento, por favor.
Com um gesto admonitório para que ficassem atrás, ele parou e espiou
através de uma rachadura na parede. Erguendo em seguida a cabeça, deu duas
batidas na porta, evidentemente sem outra intenção que a de fazer algum ruído.
Com igual propósito, raspou a chave na porta várias vezes antes de introduzi-la na
fechadura e girou-a o mais ruidosamente que pôde.
Abriu a porta devagar, mantendo-a presa nas mãos, pôs a cabeça para
dentro e disse alguma coisa. Uma voz débil respondeu qualquer coisa. Pouco
mais do que uma sílaba foi pronunciada dos dois lados.
Ele olhou sobre seus ombros e acenou-lhes para que entrassem. O senhor
Lorry enlaçou a cintura da moça com firmeza e amparou-a, pois ela parecia
prestes a cair.
— Ahn... negócios, negócios! — ele lembrou-a, com gotas de suor nada
comerciais brilhando em seu rosto. — Entre, entre!
— Tenho medo — ela confessou, estremecendo.
— De quê? Como assim?
— Dele. De meu pai.
Reagindo com desespero à perturbação dela e aos ace-nos insistentes do
taberneiro, ele puxou para o pescoço o braço da moça que repousava em seu
ombro, suspendeu-a ligeiramente e entrou depressa no quarto. Pousou-a no chão
assim que cruzou o umbral, mantendo-a junto de si.
Defarge tirou a chave da fechadura, fechou a porta, trancou-a por dentro,
tornou a tirar a chave da fechadura e segurou-a na mão. Fez tudo de maneira
metódica e barulhenta. Por fim, atravessou o aposento com passos determinados
até a janela, onde parou e olhou em torno.
O sótão, construído para servir de depósito de lenha e coisas do gênero, era
sombrio e escuro, pois a janela em forma de trapeira era na verdade uma
passagem para o telhado, com uma pequena grua para içar os suprimentos da
rua. Assim, não tinha vidraça e se dividia em duas partes no centro, como
qualquer outra porta nas construções francesas. Para proteger do frio, metade
dessa porta estava bem fechada, enquanto a outra estava apenas ligeiramente
entreaberta. Era tão escassa a luminosidade que entrava que tornava-se difícil,
num primeiro momento, enxergar o que quer que fosse. E somente o hábito
adquirido ao longo de muito tempo poderia ter lentamente desenvolvido em
alguém a habilidade de realizar, em tal escuridão, algum trabalho que exigisse
delicadeza. Pois um trabalho dessa natureza estava sendo realizado naquele sótão.
Com as costas voltadas para a porta e o rosto virado para a janela onde o
taberneiro se postara para fitá-lo, um homem de cabelos brancos, sentado num
banco baixo, curvado para a frente e muito atarefado, fazia sapatos. VI. O Sapateiro
CAPÍTULO VI
O SAPATEIRO
— Bom dia! — cumprimentou monsieur Defarge, contemplando a cabeça
branca inclinada sobre a tarefa.
A cabeça branca ergueu-se por um momento e uma voz fraca, como um
eco longínquo, respondeu à saudação:
— Bom dia!
— O senhor continua firme no trabalho, pelo que vejo.
Após uma longa pausa, a cabeça ergueu-se de novo por outro instante e a
voz replicou:
— Sim... estou trabalhando. Dessa vez, um par de olhos abatidos fitou o autor
das perguntas antes que a cabeça tornasse a curvar-se.
A debilidade da voz era lastimável e assustadora. Não se tratava da
debilidade decorrente de fraqueza física, embora o confinamento e os
sofrimentos passados sem dúvida tivessem contribuído para isso. Sua deplorável
peculiaridade devia-se à solidão e à falta de uso das cordas vocais. Soava como a
última reverberação de um som produzido anos e anos antes. De tal modo
perdera a ressonância da voz humana que ela afetava os sentidos como uma cor
viva que desbotara até reduzir-se a uma pálida mancha; tão cava e abafada era
que parecia brotar de algum subterrâneo, e tão bem expressava a desesperança
de uma criatura perdida que um viajante faminto, exausto de perambular sozinho
pelo deserto, recordaria nesse tom o lar e os amigos antes de sucumbir.
Alguns minutos de trabalho silencioso se passaram, e os olhos abatidos
tornaram a erguer-se, não com interesse ou curiosidade, mas com a sombria e
mecânica percepção de que o lugar onde estivera o único visitante que havia
percebido ainda continuava ocupado.
— Eu gostaria — disse Defarge, que não desviara o olhar do sapateiro — de
deixar entrar um pouco mais de luz aqui. Isso o incomodaria?
O sapateiro interrompeu o trabalho e olhou com um ar vago de quem
procurava a origem do som no chão à sua direita e, em seguida, à esquerda. Por
fim, fitou Defarge.
— O que disse?
— Perguntei se um pouco mais de luz o incomodaria.
— Acho que posso suportar — replicou, acentuando de leve a terceira
palavra.
A meia-porta foi aberta um pouco mais e presa nesse ângulo. Um vivo raio
de luz invadiu o sótão e mostrou o trabalhador com um sapato inacabado sobre ocolo, fazendo uma pausa no trabalho. As poucas ferramentas do ofício, bem
como vários pedaços de couro, jaziam a seus pés. Ele possuía uma barba branca
que, embora hirsuta, não era muito comprida, faces encovadas e olhos
excessivamente brilhantes. A magreza de seu rosto os teria feito parecerem
maiores, sob as sobrancelhas ainda escuras e o cabelo branco desgrenhado,
mesmo se fossem pequenos. Contudo, já eram naturalmente grandes e, nas
circunstâncias, assumiam uma aparência desproporcional. A esfarrapada camisa
amarela estava aberta na garganta, revelando seu corpo murcho e desgastado.
Ele próprio e sua velha túnica de tecido ordinário, as meias de pares diferentes e
todos os pobres trapos que vestia, depois de um longo isolamento da luz e do ar
puro, haviam empalidecido de tal forma, adquirindo uma tonalidade
uniformemente amarelecida, que era quase impossível distinguir o homem de
seus andrajos.
Ele erguera uma das mãos para proteger os olhos do raio de luz, e os seus
ossos descarnados pareciam transparentes. Lá estava ele sentado, com o olhar
imutavelmente vago, fazendo uma pausa em seu trabalho. Nunca erguia os olhos
para a figura diante de si sem, primeiro, fitar o chão dos dois lados, como se
tivesse perdido o hábito de discernir o lugar de onde vinha o som. Jamais falava
sem primeiro perder-se em seus vagos devaneios. Então, esquecia-se de falar.
— Pretende terminar esse par de sapatos hoje? — perguntou Defarge,
acenando para que o senhor Lorry se aproximasse.
— O que disse?
— Pretende terminar esse par de sapatos hoje?
— Não posso dizer que pretendo. Eu acho que sim. Não sei. A indagação,
entretanto, fez que se lembrasse da tare-fa e ele voltou a curvar-se.
O senhor Lorry avançou silenciosamente, deixando a jovem à espera na
porta. Quando se deteve, por um minuto ou dois, ao lado de Defarge, o sapateiro
levantou a cabeça. Não demonstrou surpresa por ver mais uma pessoa, mas
levou os dedos trêmulos de uma das mãos aos lábios (que, assim como seu nariz,
apresentava o mesmo tom esmaecido de amarelo) e retornou ao trabalho,
novamente inclinando-se sobre o sapato. O olhar e o gesto não duraram mais que
um instante.
— O senhor tem visitas, como vê — anunciou monsieur Defarge.
— O que disse?
— Visitas. O sapateiro fitou-os sem largar o trabalho.
— Ora, vamos! — exclamou Defarge. — Aqui está um cavalheiro que
reconhece um par de sapatos bem-feito quando encontra um. Mostre-lhe o
sapato que está fazendo. Apanhe-o, monsieur. O senhor Lorry segurou-o.
— Conte a monsieur que tipo de sapato é e qual o nome do artesão.
Houve uma pausa maior do que a usual antes que o sapateiro replicasse:
— Esqueci a pergunta. O que disse?
— Eu disse para o senhor descrever o sapato para monsieur.
— É feminino, para passeio. Está na moda. Não conheço a moda, mas tenho
os modelos na minha mão — ele explicou, contemplando o sapato com um leve
lampejo de orgulho.
— Qual o nome do artesão? — Defarge insistiu.Agora que não tinha nas mãos um trabalho com que se ocupar, ele as
esfregou e cofiou a barba, numa sucessão regular de movimentos. A tarefa de
chamá-lo de volta do devaneio em que sempre mergulhava quando o
interpelavam era como fazer alguém voltar a si após um desmaio, ou como um
tremendo esforço para descobrir um meio de reter o espírito de um moribundo.
— O senhor perguntou o meu nome?
— Perguntei, sim.
— Cento e cinco, Torre Norte[33].
— É esse o seu nome?
— Cento e cinco, Torre Norte.
Produzindo um estranho ruído que não era nem suspiro nem gemido, ele
curvou-se para trabalhar, até o silêncio ser novamente rompido.
— O senhor não é sapateiro por ofício? — inquiriu o senhor Lorry, fitando-o
de modo resoluto.
Seus olhos abatidos voltaram-se para Defarge, como se transferisse a
questão para ele. Contudo, como nenhuma ajuda viesse dali, viraram-se para a
pessoa que o questionara anteriormente.
— Se eu não sou sapateiro por ofício? Não, eu não era. Eu... eu aprendi o
ofício aqui. Ensinei a mim mesmo. Pedi permissão para...
Sua mente pareceu ausentar-se por alguns minutos, enquanto as mãos
repetiam a sucessão regular de movimentos. Os olhos se ergueram lentamente,
por fim, para o rosto do qual se haviam evadido. Quando o encontraram, ele se
assustou e prosseguiu, como alguém que acabara de despertar retomando um
assunto da noite anterior.
— Pedi permissão para ensinar a mim mesmo e consegui, com muita
dificuldade, depois de muito tempo. Desde então, faço sapatos.
Ao vê-lo estender as mãos para o sapato que lhe fora tirado, o senhor Lorry
indagou, ainda contemplando-o com determinação:
— Monsieur Manette, não se lembra de mim?
O sapato caiu no chão. Ele olhava fixamente seu interlocutor.
— Monsieur Manette — o senhor Lorry pousou a mão sobre o braço de
Defarge —, lembra-se deste homem? Olhe bem para ele. Agora, olhe bem para
mim. Será que em sua memória não despertam as recordações de um antigo
banqueiro e antigos negócios, dos antigos servos e dos velhos tempos, monsieur
Manette?
Enquanto aquele cativo de tantos anos olhava com fixidez, ora para o senhor
Lorry, ora para Defarge, algumas marcas desde muito obliteradas de uma
inteligência arguta e ativa gradualmente formaram-se no centro da testa,
ressurgidas da umbrosa névoa que a havia tragado. Elas estavam turvas de novo,
estavam débeis e ausentes. Mas estiveram ali, por um momento, em sua testa. E
tão exatamente a expressão se reproduzia no belo e jovem rosto da moça, que se
encolhera, apavorada, junto da parede, de onde podia avistálo e de onde, agora,
contemplava-o, com as mãos (que, a princípio, se haviam erguido em horror e
compaixão, se não para mantê-lo afastado e escondê-lo de suas vistas) estendidas
em sua direção, trêmulas de ansiedade para acolher o rosto espectral em seu seio
jovem, e amá-lo e trazê-lo de volta à vida e à esperança, tão exatamente aexpressão se reproduzia, embora muito mais nítida, em seu semblante, que
parecia ter passado de pai para filha como um facho de luz.
As trevas o envolveram mais uma vez. Ele fitou os dois com atenção
decrescente, os olhos perdidos em sombria abstração pousados no chão como
antes. Por fim, com um longo e profundo suspiro, ele apanhou o sapato e
prosseguiu o trabalho.
— O senhor o reconheceu, monsieur? — Defarge perguntou ao senhor
Lorry num murmúrio.
— Sim, por um instante. Primeiro, julguei-o sem esperanças, mas depois vi,
sem nenhuma dúvida, por um único momento, a face que outrora conheci tão
bem. Silêncio! Recuemos um pouco.
A moça afastara-se da parede do sótão e aproximarase do banquinho do
sapateiro. Havia algo de tenebroso em sua inconsciência da presença da jovem,
que estava tão perto que poderia tocá-lo.
Nem uma palavra foi pronunciada, nem um som foi produzido. Ela quedou-
se, como um espírito, ao lado do homem curvado sobre o trabalho.
Ocorreu, porém, que ele resolveu trocar a ferramenta que manuseava por
uma faca de sapateiro. Esta jazia no lado oposto ao ocupado pela moça. Ele
abaixou-se, efetuou a troca e voltou à posição anterior. Estava inclinado sobre o
sapato quando vislumbrou a barra de sua saia. Lentamente, ergueu a cabeça e
contemplou-lhe o rosto. Os dois espectadores deram um passo à frente, mas ela
os deteve com um gesto. Não temia, como ambos, que ele a atacasse com a
faca.
Ele a contemplava com apreensão e, após um instante, seus lábios
começaram a formar algumas palavras inaudíveis. Aos poucos, nos intervalos de
sua respiração acelerada e ofegante, ouviram-no dizer:
— O que é isto?
Com lágrimas deslizando pelas faces, ela levou as mãos à boca e beijou-as,
enviando-lhe o beijo. Então, cruzou os braços sobre os ombros, como se o
embalasse.
— Você é a filha do carcereiro? Ela suspirou:
— Não.
— Quem é você?
Não confiando ainda na firmeza da própria voz, ela sentou-se no banquinho
ao lado dele. O sapateiro encolheu-se, mas ela colocou a mão em seu braço.
Uma estranha emoção envolveu-o ao sentir aquele toque delicado e refletiu-se
em seu semblante. Ele pousou a faca no chão e fitou-a.
Seu cabelo dourado, que ela penteava em cachos compridos, havia sido
puxado às pressas para trás e pendia sobre a nuca. Avançando a mão pouco a
pouco, ele o segurou e examinou. No meio do movimento, tornou a ausentar-se
e, com outro suspiro profundo, retomou o trabalho.
Não por muito tempo, entretanto. Ela largou-lhe o braço e tocou-lhe o
ombro. Depois de lançar dois ou três olhares hesitantes para a mão em seu
ombro, como para assegurarse de que ela realmente estava ali, depositou o
trabalho no chão, levou a mão ao pescoço, onde havia um cordão enegrecido que
prendia um pedaço de trapo dobrado. O sapateiro desdobrou-o cuidadosamentesobre os joelhos e estudou seu conteúdo, uma pequena mecha, não mais do que
alguns poucos fios dourados que ele havia, em algum dia perdido no tempo,
enrolado entre os dedos.
Ele tornou a segurar o cabelo dela e encostou-o na mecha, comparando-os.
— Iguais. Como pode ser isso? Quando foi?! Como?
À medida que a expressão de concentração retornava a sua testa, ele
parecia tornar-se cônscio de que a mesma expressão assomava no semblante
dela. Virou-a na direção da luz e perscrutou-a.
— Ela deitou a cabeça no meu ombro naquela noite em que fui intimado,
minha partida a enchia de desespero, mas não a mim. Quando fui levado à Torre
Norte encontraram esses fios de cabelo na manga de minha camisa. Pedi-lhes
que os deixassem comigo. “Eles podem impedir meu corpo de escapar, mas não
meu espírito.” Foram essas as palavras que eu disse. Lembro-as muito bem.
Ele ensaiou esse monólogo com os lábios muitas vezes antes de conseguir
proferi-lo. Quando, porém, encontrou as palavras certas, elas lhe vieram de
modo coerente, embora lento.
— Como foi? Foi você?
Novamente, os dois espectadores se alarmaram ao vêlo virar-se para a filha
com assustadora rapidez. Ela, todavia, permaneceu sentada com serenidade e
murmurou:
— Eu lhes suplico, bondosos cavalheiros, não se aproximem de nós, não
falem nem se movam!
— Ouça! — ele exclamou. — De quem era essa voz?
O sapateiro soltou-lhe as mãos e agarrou os próprios cabelos brancos,
puxando-os com desespero. O desvario, contudo, desvaneceu-se como tudo nele,
menos o trabalho de sapateiro, que parecia a única coisa persistente em sua
consciência. Tornou a dobrar seu diminuto pacote e tentou segurá-lo junto ao
peito. Sem deixar de fitá-la, sacudiu a cabeça com desalento.
— Não, não, não... você é demasiado jovem, está apenas desabrochando.
Não pode ser. Veja no que se transformou o prisioneiro. Estas não são as mãos
que ela conhecia, nem este é o rosto que ela contemplava, tampouco é esta a voz
que ela escutava. Não, não. Ela foi, e ele foi, antes dos longos anos na Torre
Norte, muitas eras atrás. Como se chama, meu suave anjo?
Retribuindo a suavidade de tom e de gestos, a filha ajoelhou-se diante do pai,
com as mãos implorantes espalmadas no peito dele.
— Oh, senhor, no momento certo conhecerá o meu nome e também quem
foram minha mãe e meu pai, bem como o motivo pelo qual eu jamais soube de
sua triste história. Não posso, porém, revelar-lhe tudo agora, não aqui. Só o que
lhe posso dizer neste instante é que lhe suplico que me toque e me abençoe.
Beije-me, meu querido! Oh, meu querido!
Sua cabeça branca e fria aninhou-se nos cabelos radiantes da filha, que a
aqueceu e iluminou como se fosse a luz da Liberdade resplandecendo sobre ele.
— Se percebe em minha voz, não sei se percebe, mas espero que sim,
alguma semelhança com uma voz que outrora lhe soava doce e melodiosa, chore
por ela! Se, ao tocar meus cabelos, o toque o fizer recordar a cabeça amada que
deitou em seu ombro quando eram ambos jovens e livres, chore por ela! Se,quando lhe sugiro um Lar à nossa espera, onde me colocarei, com toda a
dedicação e fervor, a seu serviço, eu lhe reavivo lembranças de um Lar há muito
perdido na desolação, enquanto seu coração sangrava, chore por ele... Ela
enlaçou-lhe o pescoço e acolheu-o no peito como a uma criança.
— Se, quando lhe digo, meu adorado, que sua agonia terminou e que vim
para tirá-lo deste horror e levá-lo para a Inglaterra, onde encontrará repouso e
paz, eu o faço pensar no desperdício de sua vida, que poderia ter sido tão útil, e na
nossa terra francesa que o tratou com tanta crueldade, chore por ela. E se,
quando eu lhe revelar meu nome, o de meu pai, que ainda vive, e o de minha
mãe já morta, o senhor descobrir que me ajoelho perante meu honrado pai e lhe
suplico perdão por jamais ter intercedido em seu favor, por jamais ter
derramado uma lágrima por seu sofrimento, visto que o amor de minha pobre
mãe obrigou-a a esconder de mim a tortura que lhe infligiam, chore por ela!
Chore por ela e por mim! Bondosos cavalheiros, graças a Deus! Sinto suas
sagradas lágrimas molharem minhas faces e seus soluços agitarem-me o peito.
Oh, vejam! Graças a Deus, graças a Deus!
Ele havia mergulhado nos braços dela, abrigando o rosto em seu colo. Era
uma visão tão comovente, embora tão terrível pelo tremendo erro e pela dor que
significavam, que os dois espectadores cobriram os olhos.
Quando, na quietude do sótão, o seu peito arfante e o seu corpo agitado
cederam à calma que deve suceder à tempestade, símbolo para a humanidade
do descanso e do silêncio a que deve, por fim, reduzir-se a tormenta chamada
Vida, eles se aproximaram para levantar pai e filha do chão. Ele havia
gradualmente escorregado para o piso, onde jazia, exausto, num estado letárgico.
Ela se aninhara junto dele, de forma a continuar abrigando-lhe a cabeça entre os
braços, os cabelos protegendo-lhe os olhos da luz como uma cortina dourada.
— Se, sem perturbá-lo — ela sussurrou, erguendo a mão para o senhor
Lorry, que se inclinara diante deles —, pudermos fazer todos os arranjos para
deixarmos Paris imediatamente, se o pudermos levar agora e...
— Mas, pense um pouco. Será que ele está em condições de enfrentar a
jornada? — indagou o senhor Lorry.
— Mais em condições de enfrentar a jornada do que de permanecer nesta
cidade tão terrível para ele.
— É verdade — concordou Defarge, que se agachara para participar da
conversa. — Mais do que isso, há razões de sobra para monsieur Manette deixar a
França o quanto antes. Diga, devo alugar uma carruagem e cavalos?
— Trata-se de negócios — disse o senhor Lorry, recuperando, da forma
mais repentina, seus modos metódicos —, e, quando existem negócios a resolver,
é melhor que eu os resolva.
— Então, por favor — rogou a senhorita Manette —, deixe-me aqui. Vê
como ele se recompôs? Não há por que temer deixá-lo comigo agora. Por que
recearia? Se trancar a porta para evitar que nos incomodem, estou certa de que o
encontrará, ao voltar, tão tranqüilo quanto neste momento. De qualquer forma,
eu tomarei conta dele até o seu regresso, quando o removeremos.
Tanto o senhor Lorry quanto Defarge sentiam-se pouco inclinados a
seguirem aquela sugestão, ambos preferindo que um dos dois ficasse. Contudo,como precisavam não só providenciar carruagem e cavalos mas também cuidar
dos documentos para a viagem, e como o tempo urgia, pois o dia encaminhava-
se para o fim, foram obrigados a dividir as tarefas e saíram apressados para
cumpri-las.
Então, enquanto a penumbra aprofundava-se ao redor, a filha deitou a
cabeça no chão duro ao lado do pai, observando-o. A escuridão se adensava mais
e mais. Os dois permaneceram deitados e quietos até que uma luz tremulou
através das rachaduras na parede.
O senhor Lorry e monsieur Defarge haviam concluído os preparativos para
a jornada e traziam, além de mantos e agasalhos para a viagem, pão com carne,
vinho e café quente. Monsieur Defarge colocou as provisões, bem como a
lamparina que carregava, sobre o banco do sapateiro (não havia nada no sótão
com exceção de um catre) e, junto com o senhor Lorry, ergueu o cativo e
ajudou-o a manter-se de pé.
Nenhuma inteligência humana poderia decifrar os mistérios da mente dele,
ocultos sob a palidez amedrontada de seu semblante. Se sabia o que ocorrera, se
lembrava o que lhe haviam dito, se tinha consciência de estar livre, eram
questões que ninguém, por mais sagaz, conseguiria responder. Tentaram falar-
lhe, mas mostrou-se tão confuso, tão lento para replicar, que se assustaram com
seu atordoamento e concordaram que seria melhor não pressioná-lo.
De vez em quando apertava a cabeça com as mãos, num gesto de confusa
rebeldia, que antes não se havia percebido nele. Contudo, era evidente que a
simples sonoridade da voz da filha lhe dava prazer, e ele invariavelmente virava
a cabeça em sua direção sempre que a escutava.
Com a submissão de alguém acostumado a obedecer ordens sob coerção,
ele comeu e bebeu tudo o que lhe deram para comer e beber e vestiu os
agasalhos e o manto que lhe deram para usar. Reagiu prontamente quando a filha
segurou-lhe o braço, enlaçando-lhe a mão e mantendo-a presa entre as dele.
Começaram a descer. Monsieur Defarge na frente, levando a lamparina, e o
senhor Lorry encerrando o pequeno cortejo. Não haviam descido muitos degraus
da longa escadaria quando ele parou e contemplou o teto e as paredes.
— O senhor se lembra deste lugar, meu pai? Lembrase de subir esta escada?
— O que disse?
Antes, porém, que ela repetisse a pergunta, ele murmurou a resposta.
— Se me lembro? Não, não me lembro de nada. Foi há muito tempo.
Que ele não recordava coisa alguma de sua transferência da prisão para
aquela casa ficou claro para todos. Ouviram-no resmungar:
— Cento e cinco, Torre Norte.
E quando olhou em torno, era patente que enxergava as grossas paredes da
fortaleza que o aprisionaram por tantos anos.
Ao chegarem ao jardim, ele instintivamente alterou o passo, como que na
expectativa de uma ponte levadiça[34]. Como não encontrou nenhuma e viu a
carruagem esperando na rua, largou a mão da filha e apertou a cabeça de novo.
Não havia ninguém na porta, tampouco nas janelas. Nem um único
transeunte passava pela rua. Um silêncio anormal reinava ali. Uma só alma
apareceu, madame Defarge, que tricotava recostada no batente da porta e comosempre nada viu.
O prisioneiro havia entrado na carruagem, seguido pela filha, quando as
passadas do senhor Lorry foram interrompidas pelas súplicas dele para que
trouxessem suas ferramentas de sapateiro e os sapatos inacabados. Madame
Defarge imediatamente avisou o marido que iria buscá-los e, tricotando, afastou-
se da lamparina e atravessou o jardim. Com ligeireza, retornou com as
ferramentas e os sapatos e entregou-os a ele. Ato contínuo, recostou-se de novo
no umbral, continuou tricotando e nada viu.
Defarge subiu na boléia e ordenou:
— Para a Barreira![35] O boleeiro estalou o chicote e partiram sob a débil
luz dos lampiões.
Sob a débil luz dos lampiões, mais forte nas ruas mais abastadas, e pelas
lojas iluminadas, pelas multidões alegres, pelos cafés e teatros, rumo a um dos
portões da cidade. Soldados com lanternas, na casa da guarda, detiveram-nos:
— Seus passaportes, senhores.
— Aqui estão, monsieur Oficial — disse Defarge, descendo e levando-o
para um canto. — Estes são os documentos do cavalheiro de cabelos brancos.
Foram-me confiados, junto com ele, na...
Defarge baixou o tom de voz, houve alguma agitação nas lanternas
militares, uma das quais foi levada até a carruagem para que o oficial
examinasse, profunda e demoradamente, o passageiro em questão.
— Está tudo bem. Avante!
— Adieu! — gritou Defarge. E assim, trocaram a luz bruxuleante das
lanternas militares pelo brilho das estrelas.
Viajaram sob aquela abóbada de luzes eternas e imutáveis; algumas tão
distantes de nossa pequena terra que os mestres nos afirmam que os seus raios
podem ainda não ter descoberto este minúsculo ponto do espaço[36], onde tudo é
sofrimento e luta. As sombras da noite se adensavam. Ao longo daquele frio e
inquieto intervalo antes do alvorecer, elas mais uma vez cochichavam no ouvido
do senhor Jarvis Lorry, que, sentado em frente ao homem enterrado que fora
desencovado, perguntava-se quais poderes sutis estariam para sempre perdidos
para ele, e quais seriam passíveis de restauração, a mesma velha pergunta:
— Você gostou de ser chamado de volta à vida? E a mesma velha resposta:
— Não sei.SEGUNDA PARTE — O FIO DOURADO
SEGUNDA PARTE
O FIO DOURADO I.Cinco Anos Depois
CAPÍTULO I
CINCO ANOS MAIS TARDE
O Banco Tellson, em Temple Bar, era um lugar antiquado mesmo para o ano de
1780. Além de muito pequeno, escuro e feio, era também desconfortável. E era
antiquado, acima de tudo, no caráter moralmente positivo que os sócios da casa
orgulhosamente atribuíam à sua pequenez, sua escuridão, sua feiúra e
desconforto. Eles se ufanavam de sua superioridade nesses aspectos, baseados na
convicção explícita de que, se fosse um lugar menos questionável, seria
igualmente menos respeitável. Não se tratava de uma crença passiva, mas de
uma arma ativamente empunhada nas praças de comércio e nos momentos mais
convenientes. O Tellson, eles afirmavam, não queria mais espaço, não queria
mais luz, não queria embelezamento. Noakes & Cia.[37] e Snooks Brothers talvez
quisessem, mas o Tellson, pelos céus!
Qualquer dos sócios teria deserdado o filho se este propusesse a reforma do
Tellson. Sob esse ângulo, a Casa se igualava ao país, que muitas vezes deserda os
filhos por sugerirem melhoramentos nas leis e costumes, que desde muito vêm
sendo altamente questionados, mas por isso mesmo são os únicos de maior
respeitabilidade. Desse modo, o Tellson era o triunfo perfeito da falta de
comodidade.
Após arrombar uma porta de estúpida obstinação com um débil gemido de
sua garganta ferruginosa, você rolaria dois degraus para o interior do Tellson e
recobraria os sentidos num pequeno e miserável escritório, com dois minúsculos
balcões onde os mais velhos dos homens fariam seu cheque tremular como se o
vento o açoitasse, enquanto examinavam a assinatura sob a escassa luz
proveniente da mais sombria das janelas, que se localizava sempre debaixo de
uma torrente de lama da rua Fleet e que se tornava ainda mais umbrosa em
razão das suas apropriadas barras de ferro e das sombras densas de Temple Bar.
Se seus negócios exigissem uma visita “à Casa”, você seria levado a uma espécie
de “câmara dos condenados”, nos fundos, onde o deixariam meditando sobre o
desperdício da vida até que “a Casa” viesse atendê-lo, com as mãos nos bolsos, e
você mal poderia expressar seu desagrado nessa triste penumbra. Seu dinheiro
sairia de, ou entraria em gavetas de madeira velha e carcomida pelos cupins,
cujo pó voaria para seu nariz e se alojaria em sua garganta, cada vez que se
abrissem ou fechassem. Suas notas de banco teriam um odor de mofo, como se
estivessem em pleno processo de decomposição. Sua prataria seria guardada em
meio ao esgoto da vizinhança, e o contato com detritos arruinaria seu brilho em
dois ou três dias. Seus documentos iriam para casas-fortes improvisadas emcozinhas e copas, e seus pergaminhos se ressecariam no ar da casa bancária.
Suas caixas mais delicadas contendo papéis da família seriam levadas escada
acima para a sala Barmecide[38], que sempre teve uma grande mesa de jantar
em que jamais se serviu qualquer refeição e onde, mesmo no ano de 1780, as
primeiras cartas de seu antigo amor, ou de seus filhos, escapariam por pouco do
horror de serem tragadas, através da janela, pelas cabeças expostas em Temple
Bar[39] com uma insensata brutalidade e uma ferocidade digna dos abissínios ou
dos achantis[40].
Mas, de fato, matar era uma receita muito em voga naquela época em todos
os ramos do comércio e entre todas as profissões, e não menos no Tellson. Se a
morte é o remédio da natureza para todos os males, por que não o seria para a
legislação? De acordo com tal princípio, o falsário era condenado à morte, o que
emitia uma nota promissória e não a honrava era condenado à morte, assim
como o violador de correspondência; o larápio que roubasse quarenta xelins e
seis pence; o rapaz que tomava conta dos cavalos na porta do Tellson, se fugisse
com um deles; o moedeiro que cunhasse um xelim falso; todos aqueles, enfim,
que entoassem três quartas partes das notas da escala do crime eram condenados
à morte. Não que isso surtisse o menor efeito preventivo, talvez seja importante
ressaltar que ocorria exatamente o contrário, mas removia (assim como deste
mundo) o problema de cada caso em particular, sem deixar nada por resolver
mais tarde. Assim, o Tellson, em seu tempo, a exemplo das maiores casas de
negócios de então, tirou tantas vidas que, se as cabeças não fossem discretamente
descartadas, mas enfileiradas em Temple Bar, obscureceriam a rua por
completo, extinguindo a pouca luminosidade que ainda entrava pelas janelas da
Casa.
Presos aos mais variados tipos de sombrios armários e caixas que havia no
Tellson, os mais velhos dos homens tratavam dos negócios com gravidade.
Quando a casa de Londres do Tellson contratava um jovem, por certo o escondia
em algum lugar até envelhecer. Provavelmente guardavamno num lugar escuro,
como fariam com um queijo, até ele adquirir uma tonalidade esverdeada de
bolor. Só então o autorizariam a aparecer em público, formidavelmente
absorvido nos imensos livros, acrescentando suas vestimentas antiquadas ao peso
geral do estabelecimento.
Do lado de fora do Tellson, em hipótese alguma em seu interior, a menos
que fosse chamado, ficava um biscateiro, um carregador e mensageiro
ocasional, que servia como um letreiro vivo do banco. Ele jamais se ausentava
no horário de expediente, a não ser para levar recados, quando era substituído
pelo filho, um moleque horrendo de doze anos que era a imagem do pai. As
pessoas entendiam que o Tellson, com uma condescendência pomposa, tolerava
o biscateiro. A Casa sempre tolerara a presença de alguém nessas condições em
sua porta, e o tempo e a sorte conduziram esse homem em particular ao posto.
Seu sobrenome era Cruncher, e quando, muito jovem, renunciou por procuração
às tentações das trevas[41], na igreja da paróquia leste de Houndsditch[42],
recebeu o nome de Jerry.
Mudemos agora de cenário e transportemo-nos até a moradia particular do
senhor Cruncher em Hanging-swordalley, Whitefriars[43]. A hora, sete e meiade uma tempestuosa manhã de março, Anno Domini de 1780 (o senhor Cruncher
sempre recitava o ano de “nosso Senhor” como sendo de “Anna Dominoes”,
aparentemente imaginando que a era cristã datava da invenção de certo jogo
popular, criado por uma senhora, que lhe emprestara o nome).
Os cômodos do senhor Cruncher não se localizavam num bairro agradável,
e compunham-se de apenas dois, se é que se poderia contar como um cômodo
um cubículo cuja janela não tinha mais que uma chapa de vidro. Eram, contudo,
mantidos com esmero. Àquela hora da manhã tempestuosa de março, embora
tão cedo, o aposento que servia de quarto já estava limpo e esfregado, e entre a
mesa tosca e as xícaras e pratos arrumados para o desjejum estendia-se uma
toalha imaculadamente branca.
O senhor Cruncher repousava debaixo de uma colcha de retalhos, como um
arlequim em seu traje colorido. A princípio, dormia pesadamente, mas, aos
poucos, começou a remexer-se, inquieto, no leito até despertar de vez e erguer-
se com os cabelos desgrenhados e cheios de pontas ameaçando rasgar os lençóis,
reduzindo-os a tiras de pano. Ele exclamou em tom exasperado:
— Macacos me mordam se não é ela de novo!
Uma mulher de aspecto ordeiro e laborioso levantouse do canto onde
estivera ajoelhada, num movimento apressado e apreensivo que revelava ser ela
a pessoa a quem ele se referia.
— Mas, como?! — resmungou o senhor Cruncher, procurando as botas no
chão. — Outra vez?
Depois de homenagear a manhã com essa segunda saudação, o senhor
Cruncher dirigiu-lhe uma terceira ao arremessar uma das botas sobre sua
mulher. Era uma bota muito enlameada, e indicava as estranhas circunstâncias
ligadas à economia doméstica do senhor Cruncher, o qual, embora chegasse
sempre do trabalho do lado de fora do banco com as botas limpas, encontrava-as
invariavelmente sujas de lama na manhã seguinte.
— O que está fazendo aí, mulher? — interpelou o senhor Cruncher, que
errara o alvo.
— Estava só dizendo minhas orações.
— Dizendo suas orações! Que boa mulher! O que pretendia ajoelhando e
rezando contra mim?
— Não estava rezando contra você, mas por você.
— Não estava, não. E, se estivesse, eu não lhe dei essa liberdade. Veja só!
Sua mãe é uma boa mulher, pequeno Jerry, rezando contra a prosperidade de seu
pai. Você tem mesmo uma mãe piedosa, meu filho. Uma mãe religiosa, ora se
tem. Ajoelhando e orando para tirar o pão de cada dia da boca de seu único filho.
O pequeno Cruncher (que estava de camisolão) tomou o partido do pai e,
virando-se para a mãe, lançou-lhe uma série de imprecações por rezar pela sua
miséria.
E que valor você acha, mulher presunçosa — inquiriu o senhor Cruncher,
com uma incongruência despercebida —, que valor você acha que suas orações
têm? Quanto valem, hein? Dê um preço, vamos!
São apenas orações que me vêm do fundo do coração, Jerry. É esse o seu
valor.— É esse o seu valor — repetiu o senhor Cruncher. — Então, não valem
nada. Em todo o caso, não quero que rezem contra mim, fique sabendo. Não
posso correr o risco de tornar-me um azarado por sua causa. Se gosta de se
ajoelhar pelos cantos, então ajoelhe-se em favor de seu marido e de seu filho,
não em oposição. Se eu não tivesse uma esposa tão desnaturada, se esse pobre
menino não tivesse uma mãe tão desnaturada, eu poderia ter conseguido algum
dinheiro na semana passada, em vez de ser atingido pela má sorte de suas
orações. Macacos me mordam — praguejou o senhor Cruncher, enquanto se
vestia —, se eu não fui, graças à sua piedade, atingido, na semana passada, pelo
pior dos azares que podem atormentar um pobre negociante honrado e
trabalhador! Pequeno Jerry, vista-se, meu garoto. E vigie sua mãe enquanto
limpo as botas. Qualquer sinal de rezas, avise-me. Pois fique sabendo — aqui ele
se virou para a esposa de novo — que não vou admitir que conspire contra mim
desse modo. Já estou raquítico como um pangaré de coche de aluguel, sonolento
como se tivesse tomado láudano, não fosse pela dor que sinto, não poderia
afirmar se este lombo é meu ou de outra pessoa, e nem assim trago dinheiro no
bolso. Não vou mais tolerar isso, mulher!
Resmungando, em complemento, frases como: “Ah, sim! Você é religiosa!
Não agiria contra os interesses do marido e do filho, não é? Não você!”, e
lançando-lhe outros comentários sarcásticos vindos do âmago de sua indignação,
o senhor Cruncher dedicou-se a desenlamear as botas e concluir os preparativos
gerais para iniciar mais um dia de trabalho. Entrementes, seu filho, cuja cabeça
era guarnecida com tenros espigões, e cujos olhos infantis ficavam muito
próximos um do outro, como acontecia com o pai, obedeceu à ordem de vigiar a
mãe. Perturbava muito a infeliz mulher a todo o momento, pondo um pé para
fora do cubículo que servia de quarto, onde se vestia, para admoestá-la:
— A senhora vai ajoelhar-se, mãe. Ei, papai! — e, depois de bradar seu
alarme falso, voltava para o quarto com um sorriso irreverente.
O humor do senhor Cruncher não havia melhorado quando ele se sentou
para o desjejum. Ressentiu-se com o fato de a senhora Cruncher dar graças pela
refeição e reagiu com grande animosidade:
— Já chega, mulher! De novo? O que pretende agora? A esposa explicou
que apenas pedia as bênçãos de Deus.
— Não faça isto! — replicou o senhor Cruncher, olhando em torno como se
esperasse ver o pão desaparecer sob a eficácia das rezas da esposa. — Não
quero ver-me privado do meu pão e do meu lar por causa de suas “graças”. Cale
a boca!
Com os olhos excessivamente avermelhados e turvos, como se tivesse
passado a noite inteira numa festa, Jerry Cruncher devorou sua comida,
revirando os alimentos e rosnando como qualquer morador de quatro patas de
um jardim zoológico. Antes das nove horas, ele recompôs a aparência e,
parecendo tão respeitável quanto seu temperamento lhe permitia, rumou para a
labuta.
Não se podia dizer que exercesse realmente algum comércio, a despeito de
sua predileção por intitular-se “um negociante honrado”. Seu estabelecimento
consistia num tamborete de madeira feito de uma cadeira cujo espaldarquebrado fora serrado, e que o pequeno Jerry, caminhando ao lado do pai,
carregava todas as manhãs e colocava sob a janela do Tellson mais próxima de
Temple Bar, onde, com a ajuda da primeira mancheia de palha que podia ser
recolhida de algum veículo, para protegê-los do frio, armavam o acampamento
para o dia. Em seu posto, o senhor Cruncher era tão conhecido na rua Fleet como
em Temple Bar, e tinha quase o mesmo aspecto sombrio desses locais.
Instalado às nove menos um quarto, bem a tempo de tirar o chapéu de três
pontas para os mais velhos dos homens que entravam no Tellson, Jerry assumiu o
seu posto naquela tempestuosa manhã de março, com o pequeno Jerry a seu
lado, quando este não saía em incursões pelo Temple Bar, para infligir injúrias
físicas e mentais de tipo doloroso aos meninos que por ali passavam e eram
pequenos o bastante para servirem a seus amigáveis propósitos. Pai e filho,
extremamente parecidos, contemplando em silêncio o tráfego matinal da rua
Fleet, com as cabeças tão perto uma da outra quanto seus olhos eram juntos,
apresentavam uma semelhança extraordinária com um par de macacos. Essa
semelhança era reforçada pela circunstância casual de que Jerry, o pai, mordia e
cuspia palha enquanto os olhos brilhantes de Jerry, o filho, incansavelmente
observavam-no e a tudo o mais na rua Fleet.
A cabeça de um dos mensageiros internos contratados pelo Tellson apareceu
na porta, para dar a ordem:
— Precisa-se de um mensageiro!
— Hurrah, papai! Começamos cedo hoje, hein? Tendo assim estimulado o
pai, que saiu apressado, o pequeno Jerry sentou-se no tamborete e dedicou-se a
seu
interesse de herdeiro[44] na palha que seu pai estivera mascando, refletindo:
— Sempre sujos! Os dedos dele estão sempre sujos de ferrugem! —
resmungou. — Onde será que o pai suja os dedos de ferrugem? Aqui é que não. II. Uma Visão
CAPÍTULO II
UMA VISÃO
— Você conhece bem Old Bailey[45], não é? — indagou um dos escriturários
mais velhos a Jerry, o mensageiro.
— Sim, senhor — replicou Jerry, com modos um tanto impertinentes. —
Conheço muito bem o Bailey.
— Está certo. E conhece o senhor Lorry, presumo.
— Conheço o senhor Lorry, senhor, muito melhor do que conheço Bailey.
Muito melhor — disse Jerry, de uma forma não diferente de uma testemunha
relutante nesse mesmo tribunal — do que eu, como honrado comerciante,
gostaria de conhecer Bailey.
— Muito bem. Encontre a porta reservada às testemunhas e mostre ao
porteiro este bilhete endereçado ao senhor Lorry. Ele o deixará entrar.
— Entrar na corte, senhor?
— Na corte.
Os olhos do senhor Cruncher pareceram juntar-se ainda mais e fazer um ao
outro a pergunta: “O que você acha disso?”
— Devo aguardar na corte, senhor? — inquiriu, como resultado dessa
conferência.
— Eu vou dizer-lhe. O porteiro entregará o bilhete ao senhor Lorry e você
fará um gesto qualquer para atrair-lhe a atenção e mostrar-lhe onde você está.
Então, o que terá a fazer será permanecer no mesmo lugar até que ele precise de
seus serviços.
— Só isso, senhor?
— Só. Ele necessitará de um mensageiro à sua disposição. Este bilhete é
para comunicar-lhe que você está lá.
Enquanto o velho empregado vagarosamente dobrava e sobrescrevia o
papel, o senhor Cruncher, depois de observálo em silêncio até ele chegar ao
estágio de secar a tinta com o mata-borrão, comentou:
— Será que julgarão algum caso de falsificação esta manhã?
— Não. Traição![46]
— Então, a pena será esquartejamento[47] — disse Jerry.
— Que barbaridade!
— É a lei — retrucou o idoso funcionário, volvendo-lhe um olhar surpreso
por trás do monóculo. — É a lei.
— É terrível que a lei corte um homem em pedaços, eu acho. Já é bem
ruim que o mate, mas é terrível cortá-lo em pedaços, senhor.
— De modo algum — discordou o ancião. — Fale sempre bem da lei. Tome
cuidado com seu peito e sua voz, meu bom amigo, e deixe que a lei cuide de simesma. É um conselho que lhe dou.
— É a umidade, senhor, que aflige meu peito e minha voz — Jerry retrucou.
— Se o senhor soubesse como é úmido o meu modo de ganhar a vida!
— Bem, bem — atalhou-o o velho escriturário —, todos temos problemas
em nossos ofícios. Alguns enfrentam a umidade, outros, a secura excessiva. Aqui
está o bilhete. Pode levá-lo.
Jerry apanhou o papel e, com deferência menor do que a exibida, comentou
consigo mesmo: “Se sou rouco, você também é uma velha carne magra”.
Curvou-se, saiu e, de passagem, avisou o filho de seu destino.
Os enforcamentos tinham lugar em Tyburn[48] naqueles dias, de forma que
a rua do lado de fora de Newgate ainda não obtivera a infame notoriedade de
que passou a gozar desde que se tornou palco das execuções. Contudo, o cárcere
era um local vil, no qual se praticavam toda sorte de deboches e vilanias e onde
se cultivavam moléstias terríveis[49], que vinham para a corte junto com os
prisioneiros e que, às vezes, se espalhavam do banco dos réus para o Lorde Chefe
de Justiça em pessoa, arrancando-o do estrado para o túmulo. Mais de uma vez
aconteceu de o Juiz, em sua toga negra, decretar a própria morte enquanto
condenava o réu, não raro morrendo antes mesmo do condenado. De resto, Old
Bailey tinha a fama de uma espécie de jardim da morte, de onde pálidos
viajantes saíam continuamente, em carroças e coches, rumo ao outro mundo,
atravessando cerca de cinco quilômetros entre rua e estrada, envergonhando
alguns poucos bons cidadãos, se é que os havia desabituados a esse espetáculo
(tão poderoso é o hábito, e tão desejável que seja no início um bom hábito).
Tinha fama, também, pelo pelourinho, uma sábia e antiga instituição, que infligia
um castigo cuja extensão não se podia prever. Também pelo poste onde se
prendiam as pessoas para açoitá-las, outra antiga e querida instituição[50], que
inspirava sentimentos tão enternecedores e humanos àqueles que a viam em
ação. Também por amplas transações com dinheiro sangrento, outra amostra de
sabedoria ancestral, conduzindo sistematicamente aos mais terríveis crimes
mercenários já cometidos sob o céu. Resumindo, Old Bailey, naquela época, era
a ilustração perfeita do preceito de que “Tudo o que é, é correto”[51], um
aforismo que seria tão conclusivo quanto satisfatório para o indolente, não fosse a
incômoda conseqüência de que nada do que sempre foi, foi errado.
Abrindo caminho pela multidão infecta, que se acotovelava ao longo de todo
aquele horrível teatro, com a habilidade de homem acostumado a fazer sua trilha
de maneira silenciosa, o mensageiro encontrou a porta indicada e estendeu o
bilhete através de uma abertura. As pessoas tinham de pagar para assistir ao
espetáculo em Old Bailey, do mesmo modo como pagavam para assistir a
espetáculos em Bedlam[52], embora o povo não os apreciasse tanto quanto o
primeiro. Portanto, todas as portas de Old Bailey eram bem guardadas, com
exceção, naturalmente, das portas sociais por onde entravam os criminosos. Estas
estavam sempre escancaradas.
Após uma certa demora e algumas objeções, a porta entreabriu-se,
rangendo nos gonzos, permitindo o acesso do senhor Jerry Cruncher à corte.
— O que estão julgando lá? — ele indagou, cochichando, ao homem de
quem se aproximou.— Nada, ainda.
— E o que vão julgar?
— O caso da Traição.
— O do esquartejamento, hein?
— Ah! — replicou o homem, com um suspiro. — Ele será arrastado para o
patíbulo, onde será enforcado mas não ao ponto de morrer. Então, eles o tirarão
de lá e o esquartejarão, removerão suas entranhas e as queimarão na frente do
infeliz. Aí, deceparão sua cabeça e retalharão o corpo. Esta é a sentença.
— Você quer dizer, se ele for considerado culpado, não é? — Jerry
perguntou, tentando estabelecer uma condição.
— Oh, eles o considerarão culpado — retorquiu o outro —, não se preocupe.
A atenção do senhor Cruncher desviou-se para o porteiro, que ele vira abrir
caminho até o senhor Lorry, com o bilhete na mão. O senhor Lorry achava-se
sentado a uma mesa junto com outros cavalheiros de peruca, perto de um que
ostentava uma vasta peruca, o defensor do prisioneiro, tendo diante de si uma
grande pilha de papéis, e no lado oposto a outro cavalheiro também de peruca e
com as mãos nos bolsos, cuja atenção parecia inteiramente concentrada no teto,
como notava o senhor Cruncher sempre que o olhava. Depois de tossir, coçar o
queixo e acenar, Jerry conseguiu que o senhor Lorry, que se levantara, reparasse
em sua presença, balançando a cabeça e tornando a sentar-se.
— O que ele tem a ver com o caso? — indagou o homem com quem ele
estivera conversando.
— Macacos me mordam se eu sei — respondeu Jerry.
— O que você tem a ver com isso, então, se me permite a pergunta?
— Também não sei — replicou Jerry.
A entrada do juiz, com a conseqüente agitação na corte, interrompeu o
diálogo. Nesse instante, o banco dos réus tornou-se o foco do interesse geral. Dois
carcereiros, que estavam ali aguardando, saíram em busca do prisioneiro, que foi
trazido para o recinto do tribunal.
Todos os presentes, com exceção do cavalheiro de peruca que contemplava
o teto, convergiram os olhares para o réu. A respiração de todos na sala rolou em
sua direção, como um mar, ou como o vento, ou o fogo. Cabeças ansiosas se
esticavam à volta dos pilares e nos cantos para conseguirem vê-lo; os
espectadores das fileiras de trás ergueram-se para não perderem um só detalhe
de sua imagem; as pessoas no piso da corte apoiaram suas mãos nos ombros dos
que estavam à frente, para usufruir, à custa de quem quer que fosse, da visão do
acusado, ficavam na ponta dos pés, subiam em quaisquer saliências,
equilibravam-se no nada, tudo para visualizar cada centímetro dele. Destacando-
se dentre esses últimos, e parecendo um pedaço ambulante do pontiagudo muro
de Newgate[53], lá estava Jerry, lançando em direção ao prisioneiro o hálito da
cerveja que havia tomado no caminho como aperitivo, fazendo-o mesclar-se
com as ondas de outros hálitos de cerveja, de gim, de chá e de café, e sabese lá
mais o quê, que se arrojavam até ele e logo se quebravam nas amplas vidraças
que ficavam às suas costas, condensando-se numa névoa úmida e impura.
O objeto de todo esse mirar e clamar era um rapaz de cerca de vinte e
cinco anos, bem-criado e de bom aspecto, com a tez bronzeada e de olhosescuros. Em resumo, um jovem cavalheiro. Totalmente vestido de preto, ou
verde muito escuro, tinha os cabelos compridos e negros presos na nuca com
uma fita, mais com o propósito de afastá-los do rosto do que para servir de
adorno. Como as emoções mais profundas se expressam no rosto, não importa
atrás de que máscara se esconda, assim a palidez gerada por sua situação vencia
o bronzeado da face, revelando ser a alma mais forte do que o sol. De resto, ele
se mostrava inteiramente senhor de si. Curvou-se perante o juiz e permaneceu
ereto e silencioso.
O interesse com o qual esse homem era contemplado e bafejado não era da
espécie que eleva a humanidade. Estivesse ele sob a ameaça de uma sentença
menos tenebrosa, houvesse a possibilidade de algum daqueles detalhes selvagens
ser dispensado, apenas por isso teria perdido muito de seu fascínio. A figura que
estava destinada a ser mutilada de maneira tão infamante era A Visão; a criatura
imortal que seria abatida e esquartejada fornecia a sensação. Qualquer que fosse
o verniz com que os vários espectadores procuravam encobrir o seu interesse, de
acordo com a capacidade que tinham de enganar a si próprios, esse interesse era,
em sua raiz, digna dos ogros.
— Silêncio na corte! Charles Darnay declarou-se on-tem inocente quanto ao
crime que lhe foi imputado, de traição ao nosso sereno, ilustre, excelente,
etcétera, príncipe, nosso senhor o Rei, pela razão de ter, em diversas ocasiões, e
por diversos meios e modos, apoiado Luiz, o rei francês, em suas guerras contra
nosso sereno, ilustre, excelente, etcétera, Rei. O que significa dizer que, em suas
idas e vindas entre os domínios de nosso sereno, ilustre, excelente, etcétera, e os
do referido francês, Luiz, ele lhe descreveu quais forças nosso sereno, ilustre,
excelente, etcétera, armava para enviar ao Canadá e à América do Norte[54]. A
esta altura, Jerry, com sua cabeça se tornando mais e mais cheia de pontas, na
mesma medida em que os termos da lei se aguçavam, alcançou a compreensão,
com grande contentamento, de que o supracitado, e cada vez mais supracitado,
Charles Darnay, estava ali, diante de seus olhos, enfrentando seu julgamento, que
os jurados estavam prestando juramento e que o senhor Procurador Geral se
preparava para discursar.
O acusado, que estava (e que sabia que estava) sendo mentalmente
enforcado, decapitado e esquartejado por todos os presentes, nem fugia da
situação nem assumia uma postura teatral. Manteve-se calado e atento,
observando os procedimentos de abertura com um grave interesse, de pé, com as
mãos apoiadas na mesinha de madeira à sua frente, tão composto que nem
desarrumou as folhas de ervas ali pousadas. A corte era juncada dessas ervas e
espargida com vinagre, como precaução contra o ar do cárcere e sua febre[55].
Sobre a cabeça do prisioneiro havia um espelho que refletia a luz sobre ele.
Multidões de malvados e miseráveis foram iluminados por seu reflexo, suas
imagens estamparam-se em sua superfície e desapareceram para sempre da
face da Terra. Aquele abominável lugar teria sido assustadoramente mal-
assombrado se o vidro pudesse lançar de volta as imagens refletidas, como o
oceano um dia renunciou a seus mortos[56]. Algum pensamento acerca da
infâmia e da desgraça para o qual o espelho fora reservado deve ter cruzado a
mente do prisioneiro. Fosse como fosse, uma mudança em sua posição tornou-ocônscio do facho de luz sobre seu rosto e o fez olhar para o alto. Quando avistou o
espelho, suas faces coraram e sua mão direita empurrou as ervas para longe.
Com esse movimento, aconteceu-lhe olhar para o lado esquerdo da corte.
Mais ou menos no nível de seus olhos, estavam sentadas, na direção do estrado do
juiz, duas pessoas sobre as quais de imediato pousou o olhar. Tão bruscamente, e
com tanta alteração de seu semblante, que todos os olhos que estavam voltados
para ele, volveram então para elas.
Os espectadores distinguiram uma jovem dama com pouco mais de vinte
anos e um cavalheiro que, evidentemente, era seu pai. Um homem de aparência
marcante em virtude da brancura absoluta de seus cabelos e de uma certa
intensidade indescritível de sua fisionomia, não de uma espécie ativa, mas de
ponderação e introspecção. Quando essa expressão se estampava em seu rosto,
ele parecia um velho. Contudo, quando se desfazia, como naquele instante em
que se dirigia à filha, ele se tornava um homem bem apessoado, ainda na meia-
idade.
A filha, sentada a seu lado, tinha uma das mãos pousada no braço dele e,
com a outra, puxou-o para mais perto, aterrorizada com a cena e tomada de uma
profunda piedade pelo prisioneiro. Com a testa expressando um crescente terror
e compaixão, ela nada via além do perigo que rondava o acusado. Tudo isso foi
tão notado, tão poderosa e naturalmente mostrado, que aqueles que não haviam
sentido pena dele ficaram comovidos. E indagaram entre si:
— Quem são eles?
Jerry, o mensageiro, que fizera as próprias observações a seu próprio modo,
e que, absorto, estivera lambendo a ferrugem depositada em seus dedos, esticou
o pescoço para ouvir quem eram eles. A pergunta passara pela multidão ao seu
redor e alcançara o atendente, que soprou a resposta, a qual também se espalhou
de boca em boca, chegando, por fim, a Jerry.
— Testemunhas.
— De que lado?
— Contra.
— Contra que lado?
— O do prisioneiro.
O juiz, cujos olhos haviam passeado em todas as direções, recostou-se no
espaldar da cadeira e fitou com firmeza o homem cuja vida estava em suas
mãos, enquanto o senhor Procurador Geral erguia-se para dobrar a corda, afiar o
machado e martelar os pregos do cadafalso. III. Desapontamento
CAPÍTULO III
DESAPONTAMENTO
O senhor Procurador Geral tinha a informar ao júri que o prisioneiro diante
deles, embora jovem em anos, era velho na prática de traições que clamavam
pelo confisco de sua vida. Que sua correspondência com o inimigo público não
datava daquele dia, nem da véspera, nem do último ano, tampouco do anterior.
Que era certo que o prisioneiro, por um período maior do que o mencionado,
manteve o hábito de ir à França e voltar, em negócios secretos dos quais não
podia prestar contas com honestidade. Que, se prosperar fosse próprio das
atividades de traição (o que, felizmente, não ocorria), a verdadeira maldade e
culpabilidade de seus negócios talvez jamais fossem descobertas. A Providência,
entretanto, colocara no coração de uma pessoa sem medo e sem mácula[57] a
incumbência de deslindar a natureza dos esquemas do prisioneiro e, tomada pelo
horror, essa pessoa os denunciou ao Chefe da Secretaria de Estado e ao
honorável Conselho Privado de Sua Majestade. Que esse patriota seria
apresentado ao júri. Que sua posição e atitude foram sublimes. Que ele fora
amigo do prisioneiro, mas, desde o momento, ao mesmo tempo auspicioso e
infeliz, em que lhe detectou a infâmia, resolveu imolar o traidor, com quem já
não podia conviver em camaradagem, sobre o solo sagrado de sua pátria. Que,
se estátuas fossem erigidas na Inglaterra, como o foram na antiga Grécia e em
Roma, em homenagem a seus benfeitores, aquele insigne cidadão certamente
ganharia uma. Que, como não era costume do país, ele provavelmente não
ganharia nenhuma. Que a virtude, como bem observado pelos poetas (em muitas
passagens, as quais, ele tinha certeza, o júri conhecia de cor e salteado. Com o
que os semblantes dos jurados revelaram a consciência culpada por nada
conhecerem sobre as tais passagens), era contagiante, especialmente a brilhante
virtude do patriotismo, do amor ao país. Que o grandioso exemplo dessa
imaculada e irreprochável testemunha em favor da Coroa, a quem se referia
com orgulho, se havia comunicado ao criado do prisioneiro, em quem semeara a
santa determinação de examinar as gavetas e bolsos de seu patrão e espionar
seus papéis. Que o senhor Procurador Geral estava preparado para ouvir
censuras àquele admirável criado, mas que, de modo geral, estimava-o mais do
que a seus irmãos e honrava-o mais do que a seus pais. Que conclamava com
confiança aos membros do júri que fizessem o mesmo. Que a evidência trazida
pelas duas testemunhas, acrescida dos documentos comprobatórios que seriam
apresentados, demonstraria que o prisioneiro obtivera listas das forças de Sua
Majestade, bem como de sua disposição e preparação, tanto na terra quanto nomar, e não restariam dúvidas de que ele fornecera tais informações ao inimigo.
Que não se podia provar que a caligrafia dessas listas pertencesse ao prisioneiro,
mas que isso não fazia diferença e que, na verdade, era até melhor para o
processo, pois mostrava que o prisioneiro era ardiloso em suas precauções. Que a
prova remontaria a cinco anos antes, revelando o prisioneiro já engajado em
perniciosas missões, poucas semanas antes do início das hostilidades entre as
tropas britânicas e as americanas[58]. Que, por esses motivos, o júri, sendo leal
(como ele tinha certeza de que era) e responsável (como eles sabiam que eram),
indubitavelmente consideraria o réu culpado e poria um fim à sua vida, mesmo
que tal decisão não lhes agradasse. Que eles jamais poderiam repousar a cabeça
no travesseiro, que jamais poderiam tolerar a idéia de suas esposas repousando a
cabeça no travesseiro, em suma, que eles jamais poderiam coisa alguma, muito
menos repousar a cabeça no travesseiro, a menos que a cabeça do prisioneiro
fosse decepada. Cabeça que o senhor Procurador Geral reclamava em sua
peroração, em nome de tudo o que lhe ocorresse no momento, e sob a confiança
em sua solene afirmação de que, no que lhe dizia respeito, o prisioneiro já estava
morto.
Quando o Procurador Geral concluiu, um burburinho elevou-se na corte
como se uma nuvem de moscas-varejeiras esvoejasse em torno do prisioneiro,
na expectativa do que em breve aconteceria. Quando o bulício se abrandou, a
irreprochável testemunha sentou-se na cadeira para depor.
O senhor Promotor Geral, então, sucedendo a seu líder, assumiu o comando
e interrogou o patriota, cavalheiro John Barsad. Desfiou a história de sua alma
pura exatamente como a descrevera o senhor Procurador Geral, talvez um
pouco exatamente demais. Depois de cumprido o nobre fardo de sua
responsabilidade, ele se teria modestamente retirado, não fosse pelo cavalheiro
de peruca com papéis diante de si, que manifestou o desejo de fazer-lhe algumas
poucas perguntas. O cavalheiro de peruca, que estava sentado na outra
extremidade, ainda contemplava o teto da corte.
Teria ele sido um espião também? Não, ele desdenhou a vil insinuação. De
que vivia? Dos rendimentos de sua propriedade. Onde ficava essa propriedade?
Ele não se lembrava bem da localização. Que propriedade era essa? Não era da
conta de ninguém. Recebera-a como herança? Sim, de herança. De quem? Um
parente distante. Muito distante? Bastante. Alguma vez esteve preso? Certamente
que não. Nunca foi preso por dívidas? Ele não via que ligação isso teria com o
caso. Nunca foi preso por dívidas? Não vai responder? E então, nunca? Sim.
Quantas vezes? Duas ou três. Não teriam sido cinco ou seis? Talvez. Qual era a
profissão dele? Cavalheiro. Já foi chutado alguma vez? Podia ser. Com
freqüência? Não. Já foi chutado escada abaixo? Decididamente não; recebera,
certa vez, um chute no alto de uma escada e caíra por conta própria. Fora
chutado, nessa ocasião, por trapacear com os dados? Algo desse gênero foi dito
pelo bêbado mentiroso que o agrediu, mas não era verdade. Jura que não é
verdade? Positivamente. Já viveu à custa de roubar no jogo? Nunca. Já viveu à
custa de jogo? Não mais do que qualquer cavalheiro. Já pediu dinheiro
emprestado ao prisioneiro? Sim. Alguma vez pagou o empréstimo? Não. Não
teria sido essa intimidade, que, na verdade, nem existia, com o prisioneiro,impingida a ele nos coches, nas hospedarias e nos paquetes? Não. Ele
naturalmente vira o prisioneiro com as listas? Certamente. Sabia alguma coisa
mais sobre elas? Não. Não as havia procurado ele mesmo? Não. Espera receber
alguma coisa pelo testemunho? Não. Nem um emprego no governo como agente
provocador? Céus, não. Ou para fazer qualquer outra coisa? Céus, não. Jura?
Quantas vezes forem necessárias. Não existem motivos outros para seu
admirável patriotismo? Nenhum.
O virtuoso criado, Roger Cly, multiplicou seus protestos de falar toda a
verdade e apenas a verdade. Ele se oferecera para trabalhar para o prisioneiro,
com boa-fé e ingenuidade, quatro anos antes. Perguntara-lhe, a bordo do paquete
de Calais, se desejava um criado e o prisioneiro o contratara. Ele não lhe pedira
que o contratasse por caridade, nunca lhe ocorreria uma coisa dessas. Ele logo
começou a suspeitar do prisioneiro e a observá-lo. Ao arrumar-lhe as roupas,
durante as viagens, viu várias vezes listas semelhantes àquelas nos bolsos do
prisioneiro. Ele tirou as listas da gaveta da escrivaninha do prisioneiro. Não fora
ele quem as pusera ali. Ele viu o prisioneiro mostrar listas idênticas a cavalheiros
franceses em Calais, bem como listas similares também a cavalheiros franceses,
em Calais e Bolonha. Ele amava seu país, não podia suportar a traição e, assim,
resolveu denunciá-lo. Ele jamais foi suspeito de roubar um bule de prata; que
fora caluniado a respeito de um mostardeiro, que, mais tarde, constatou-se ser
apenas banhado de prata. Ele conheceu a testemunha anterior sete ou oito anos
antes, mas isso era mera coincidência. Não a considerava uma coincidência
particularmente estranha. A maioria das coincidências era estranha. Tampouco
considerava coincidência que um genuíno patriotismo fosse o único motivo
também dele. Era um verdadeiro britânico e esperava que houvesse outros como
ele.
As moscas-varejeiras tornaram a zumbir, e o senhor Procurador Geral
chamou o senhor Jarvis Lorry.
— Senhor Jarvis Lorry, o senhor é funcionário do Banco Tellson?
— Sim, eu sou.
— Numa certa noite de sexta-feira, em novembro de 1775, os negócios o
levaram a viajar de Londres a Dover na mala-posta?
— Levaram.
— Havia outros passageiros além do senhor?
— Dois.
— Eles desceram da mala-posta em algum momento daquela noite?
— Desceram.
— Senhor Lorry, olhe bem para o prisioneiro. Ele era um dos dois outros
passageiros?
— Não posso afirmar com certeza que era.
— Ele se parece com um dos dois passageiros?
— Ambos estavam tão envolvidos em agasalhos, a noite estava tão escura e
nós nos mantínhamos tão reservados que não posso afirmar com certeza que ele
pareça.
— Senhor Lorry, olhe de novo para o prisioneiro. Imagine-o envolvido em
agasalhos como aqueles dois passageiros. Existe algo em sua compleição física,na sua estatura, que o leve a considerar improvável que ele seja um dos dois?
— Não.
— O senhor não jura, senhor Lorry, que ele não era um dos dois?
— Não.
— Então, ao menos o senhor pode afirmar que ele pode ter sido um dos
dois?
— Sim. Exceto pelo fato de que, como me lembro, ambos mostraram-se,
como eu mesmo, amedrontados com a possibilidade de sermos atacados por
malfeitores, e o prisioneiro não tem aspecto de medroso.
— Já viu expressões falsas de timidez, senhor Lorry?
— Certamente que sim.
— Senhor Lorry, olhe outra vez para o prisioneiro. Já o havia visto antes?
— Já.
— Quando?
— Eu regressava da França, alguns dias mais tarde, e, em Calais, o
prisioneiro subiu a bordo do paquete em que eu estava e viajou comigo.
— A que horas ele subiu a bordo?
— Pouco depois da meia-noite.
— No fim da noite. Ele foi o único passageiro a subir em hora tão tardia?
— Por acaso foi, sim.
— Deixe de lado esse “por acaso”, senhor Lorry. Ele foi o único passageiro
a subir a bordo em hora tão tardia?
— Foi.
— O senhor viajava sozinho, senhor Lorry, ou tinha acompanhante?
— Dois acompanhantes. Um cavalheiro e uma dama. Eles estão aqui.
— Eles estão aqui. O senhor manteve conversação com o prisioneiro?
— Praticamente nenhuma. O tempo estava tempestuoso, a travessia foi
longa e difícil e eu recostei-me numa sofá, onde permaneci durante
praticamente todo o percurso.
— Senhorita Manette!
A jovem dama, para quem todos os olhos se haviam voltado antes e
novamente agora, levantou-se. O pai ergueuse junto com a filha, mantendo a
mão dela aferrada a seu braço.
— Senhorita Manette, olhe para o prisioneiro.
Confrontar-se com tanta piedade e tais beleza e juventude era muito mais
penoso para o acusado do que enfrentar toda a multidão. Olhando-a, como
estava, da beira de seu túmulo, nem mesmo todos aqueles olhos que o fixavam
com ávida curiosidade logravam, naquele instante, persuadi-lo a aquietar-se. Sua
mão direita remexia as ervas diante de si, arrumando imaginários leitos de flores
num jardim, e seus esforços para controlar-se e normalizar a respiração
agitavam-lhe os lábios dos quais fugira toda a cor. O zumbido das moscas-
varejeiras elevou-se mais uma vez.
— Senhorita Manette, já havia visto o prisioneiro antes?
— Sim, senhor.
— Onde?
— A bordo do paquete já mencionado aqui, senhor, e na mesma ocasião.— É a senhorita a quem o senhor Lorry se referiu há pouco?
— Oh, infelizmente, sim.
O tom queixoso de sua compaixão misturou-se à voz menos musical do juiz,
que disse com certa rudeza:
— Limite-se a responder as perguntas que lhe são formuladas, abstendo-se
de tecer comentários.
— Senhorita Manette, manteve alguma conversação com o prisioneiro
durante a travessia do canal?
— Sim, senhor.
— Queira relembrá-la.
Emergindo das brumas de um profundo silêncio, ela principiou com voz
débil:
— Quando o cavalheiro subiu a bordo...
— Refere-se ao prisioneiro? — inquiriu o juiz, franzindo as sobrancelhas.
— Sim, Milorde.
— Então diga “prisioneiro”.
— Quando o prisioneiro subiu a bordo, logo percebeu que meu pai — tornou
os olhos amorosamente para ele, de pé a seu lado — estava fatigado e em
condições precárias de saúde. Meu pai estava tão fraco que eu, temendo tirá-lo
do ar puro, preparei-lhe uma cama no convés, perto da escada da cabine, e
sentei-me junto dele. Não havia outros passageiros aquela noite, só nós quatro. O
prisioneiro demonstrou gentileza ao pedir permissão para indicar-me um meio
melhor de proteger meu pai do vento úmido. Eu não conseguira abrigá-lo bem,
porque preparara tudo ainda no cais, sem imaginar a direção do vento em alto
mar. Ele o fez para mim, revelando uma grande cortesia e generosidade em sua
preocupação com o estado de meu pai, e tenho certeza de que era sincero. Foi
assim que entabulamos conversação.
— Deixe-me interrompê-la por um momento. Ele subiu a bordo sozinho?
— Não.
— Quantas pessoas subiram com ele?
— Dois cavalheiros franceses.
— Eles conferenciaram?
— Conferenciaram até o último momento, quando foi necessário que os
cavalheiros franceses regressassem em seu bote para a terra.
— Reparou se circularam entre eles papéis similares a estas listas?
— Alguns papéis, de fato, circularam entre eles, mas não sei de que se
tratava.
— Eram parecidos, quanto à forma e tamanho?
— É possível, mas eu realmente não sei, embora eles conversassem perto
de mim, no alto da escada da cabine, por causa do lampião dependurado ali.
Mesmo assim, a luminosidade era pouca e eles murmuravam, de modo que não
pude distinguir uma só palavra, notando apenas que examinavam papéis.
— Agora, voltemos à sua conversa com o prisioneiro, senhorita Manette.
— O prisioneiro mostrou-se tão franco em sua confiança em mim, o que
me conduziu a esta triste situação, quanto se mostrara gentil, bondoso e útil com
meu pai. Espero — rompeu em lágrimas — não retribuir sua generosidadecausando-lhe mal hoje. Zumbido das moscas-varejeiras.
— Senhorita Manette, se o prisioneiro não entende perfeitamente que a
senhorita presta o depoimento que é seu dever prestar, que é obrigada a prestar, e
que não pode esquivar-se a prestar, com grande má-vontade, ele é a única
pessoa aqui presente nessa condição. Por favor, prossiga.
— Ele me contou que viajava a negócios, cuja natureza era delicada e
difícil, chegando mesmo a colocar pessoas em apuros e que, por esse motivo,
viajava com nome falso. Disse que os tais negócios o tinham levado, poucos dias
antes, para a França e poderiam exigir que transitasse entre França e Inglaterra,
com curtos intervalos, durante um longo tempo.
— Ele disse alguma coisa sobre a América, senhorita Manette? Seja
específica.
— Ele tentou explicar-me como a disputa começara e afirmou que, até
onde podia julgar, a atitude da Inglaterra era não só errada como tola.
Acrescentou, gracejando, que talvez George Washington viesse a adquirir uma
fama tão grande quanto a de Jorge III[59]. Mas não havia maldade em sua
maneira de falar, pois isso foi dito em tom de pilhéria, em meio a uma conversa
amena, para passar o tempo.
Qualquer expressão mais forte no semblante do ator principal, para quem se
dirigem todos os olhos, numa cena de grande interesse, é inconscientemente
imitada pelos espectadores. Dolorosa ansiedade vincava sua testa, enquanto
prestava depoimento, e nas pausas que ela fazia para que o juiz anotasse o
interrogatório, observava-se esse efeito sobre os encarregados da acusação e da
defesa. Quanto aos espectadores, via-se a mesma expressão nos quatro cantos da
corte, a tal ponto que a grande maioria das testas parecia um espelho refletindo a
testemunha, no instante em que o juiz deixou suas notas e dardejou um olhar
furioso ao ouvir a tremenda heresia acerca de George Washington.
O senhor Procurador Geral argumentou, então, que, como medida de
precaução e formalidade, julgava indispensável que se tomasse o depoimento do
pai da jovem dama, doutor Manette, que foi chamado imediatamente.
— Doutor Manette, olhe para o prisioneiro. Já o havia visto antes?
— Uma vez, quando me procurou em minha residência em Londres, há
cerca de três anos, três anos e meio.
— Pode identificá-lo como seu companheiro de viagem a bordo do paquete,
ou contar algo a respeito da conversa que ele manteve com sua filha?
— Nem uma coisa nem outra, senhor.
— Existe algum motivo particular e especial que o impeça? Ele respondeu
em voz baixa:
— Existe.
— Seria esse motivo a sua infelicidade de suportar um longo
encarceramento, sem julgamento ou mesmo acusação, em seu país nativo,
doutor Manette?
Ele confirmou, num tom que tocou cada coração:
— Um longo encarceramento.
— O senhor acabara de ser libertado na ocasião em tela?
— Disseram-me que sim.— Não se lembra de nada dessa ocasião?
— Nada. Minha mente parece em branco, a partir do momento, não posso
sequer precisar esse momento, em que passei a dedicar-me, durante o cativeiro,
a fazer sapatos, até o instante em que me vi morando em Londres com minha
querida filha. Ela se tornou familiar para mim quando um generoso Deus
restaurou-me as faculdades; mas sou totalmente incapaz de dizer quando ela se
tornou familiar. Não tenho lembranças desse processo.
O senhor Procurador Geral sentou-se. Pai e filha também sentaram-se.
Uma circunstância singular, então, alterou o rumo do caso. O objetivo, a
esta altura, era demonstrar como o prisioneiro descera, com algum companheiro
de conspiração ainda não identificado, da mala-posta de Dover, naquela noite de
sexta-feira de novembro, cinco anos antes, e afastara-se do veículo no meio da
noite, como um cego, numa parada que não era a sua, mas de onde retornara,
viajando cerca de vinte quilômetros ou mais, até uma guarnição e arsenal
naval[60], onde teria coletado informações. Uma testemunha foi chamada para
declarar tê-lo visto, no preciso tempo necessário para ali chegar, na sala de
refeições do hotel dessa cidade fortificada, aguardando por alguém. O defensor
do prisioneiro estava interrogando a testemunha com todo o rigor sem obter
qualquer resultado, exceto que esta jamais havia visto o prisioneiro em nenhuma
outra circunstância, quando o cavalheiro de peruca que passara todo o tempo
contemplando o teto escreveu uma palavra ou duas num pequeno pedaço de
papel, torceu-o e lançou-o para o defensor. Abrindo o pequeno pedaço de papel
durante a pausa seguinte, o defensor contemplou o prisioneiro com grande
atenção e curiosidade.
— O senhor afirma de novo ter absoluta certeza de que ele era o prisioneiro?
A testemunha tinha absoluta certeza.
— O senhor alguma vez encontrou alguém parecido com o prisioneiro?
— Não tão parecido — replicou a testemunha — que pudesse ser
confundido com ele.
— Olhe bem para aquele cavalheiro, o meu douto colega ali — apontou
para o homem que lhe atirara o papel — e, então, olhe de novo, com atenção,
para o prisioneiro. O que acha? Eles são muito parecidos um com o outro?
Descontado-se a aparência indolente e desleixada, senão debochada, do
“meu douto colega”, eles eram suficientemente parecidos entre si para
surpreender não somente a testemunha como a todos os presentes, quando se
fazia a comparação. Sendo solicitado a Milorde que ordenasse ao “meu douto
colega” que tirasse a peruca, e tendo Milorde consentido com pouca disposição, a
semelhança revelou-se muito mais marcante. Milorde inquiriu ao senhor Stryver
(defensor do prisioneiro) se iria indiciar o senhor Carton (nome do “douto
colega”) por traição. Mas, não (o senhor Stryver respondeu a Milorde); contudo,
indagaria à testemunha se considerava possível que o que aconteceu uma vez
pudesse acontecer duas; se teria demonstrado tanta convicção, se tivesse visto
antes essa ilustração de sua atitude precipitada, se demonstraria a mesma
convicção agora etc. O propósito era despedaçar o testemunho como a um vaso
de louça, e lançar fora seu papel no processo, como um traste inútil.
O senhor Cruncher fizera uma refeição completa com a ferrugem dosdedos enquanto acompanhava os interrogatórios. Prestava atenção, agora,
enquanto o senhor Stryver ajustava o caso do prisioneiro para o júri como um
bom alfaiate, mostrando-lhe como o patriota, Barsad, era um espião mercenário
e traidor, um desavergonhado mercador de sangue, e um dos maiores velhacos
sobre a terra desde o amaldiçoado Judas, com quem, aliás, era muito parecido.
Como o virtuoso criado, Cly, fora seu amigo e sócio, e ambos se mereciam;
como os olhos atentos daqueles falsários, que prestaram falso juramento, haviam
pousado sobre o prisioneiro, escolhendo-o para vítima, em virtude do fato de que
alguns negócios familiares na França, pois ele descendia de franceses, exigiam-
lhe que cruzasse o canal com freqüência, embora a natureza desses negócios, em
consideração aos que lhe eram caros, o proibisse de revelá-los, mesmo sob risco
de vida. Como o depoimento que fora arrancado e distorcido da jovem dama,
cuja angústia todos testemunharam, reduzirase a nada, envolvendo apenas as
poucas e inocentes galanterias corteses que comumente ocorrem entre um
cavalheiro e uma dama reunidos pelas circunstâncias, com exceção daquela
referência a George Washington, que não podia ser encarada de outra maneira
além de uma brincadeira de mau gosto. Como seria uma fraqueza do governo
sucumbir à tentação de angariar popularidade pela exploração dos mais indignos
medos e antipatias nacionais, como fizera, em grande parte, o senhor Procurador
Geral. Como, entretanto, isso não se fundamentou em nenhuma evidência,
exceto naquela espécie vil e mesquinha de depoimentos que tão freqüentemente
deturpavam casos como aquele, e da qual os Anais de Julgamentos do Estado[61]
deste país estavam abarrotados. Nesse momento, Milorde interveio (com o
semblante grave como se estivesse ouvindo alguma inverdade), alegando que
não toleraria tais alusões, enquanto presidisse aquele tribunal.
O senhor Stryver, então, convocou algumas poucas testemunhas e, em
seguida, o senhor Cruncher assistiu com atenção ao trabalho do senhor
Procurador Geral para virar pelo avesso o traje que o senhor Stryver ajustara
para o júri, demonstrando como Barsad e Cly eram cem vezes melhores do que
julgara antes, e o prisioneiro, cem vezes pior. Por fim, foi a vez de Milorde em
pessoa virar e desvirar aquelas vestes, mas, no geral, decididamente
remontando-as na forma de uma mortalha para o prisioneiro.
E agora, o júri voltara as costas para deliberar, e as grandes moscas
varejeiras zumbiam de novo.
O senhor Carton, que permanecera tanto tempo contemplando o teto da
corte, não mudou nem de posição nem de atitude, em meio a esse alvoroço.
Enquanto seu douto colega, o senhor Stryver, manuseando os papéis diante dele,
cochichava com as pessoas sentadas a seu lado, de quando em quando
relanceando os olhos para o júri com ansiedade; enquanto todos os espectadores
se moviam, uns mais e outros menos, reagrupando-se; e enquanto mesmo
Milorde em pessoa se levantou e começou a passear para cima e para baixo em
sua plataforma, criando no espírito da audiência a suspeita de que ele participava
da agitação geral, apenas aquele homem recostava-se na cadeira, com sua toga
rasgada meio aberta, sua peruca desalinhada parecendo ter surgido por acaso em
sua cabeça, as mãos enfiadas nos bolsos e os olhos no teto como sempre. Alguma
coisa especialmente indolente em sua conduta não só lhe conferia uma aparênciapouco digna mas também diminuía a espantosa semelhança que sem dúvida
havia entre ele e o prisioneiro (realçada por sua momentânea seriedade, no
instante em que foram comparados), de tal modo que os vários espectadores,
observando-o agora, comentavam entre si que dificilmente teriam cogitado da
semelhança. O senhor Cruncher fez essa observação para o homem a seu lado e
acrescentou:
— Sou capaz de apostar meio guinéu como ele não é advogado coisa
nenhuma. Ele lá tem jeito disso?
Entretanto, esse senhor Carton reparava em mais detalhes da cena do que
aparentava. Agora, por exemplo, quando a cabeça da senhorita Manette tombou
sobre o peito do pai, ele foi o primeiro a perceber e a bradar em alto e bom som:
— Oficial! Olhe aquela jovem dama. Ajude o cavalheiro a levá-la daqui.
Não vê que ela está prestes a cair?
Houve muita comiseração por ela enquanto era removida, e muita simpatia
para com o pai. Era evidentemente motivo de grande aflição, para ele, recordar
os dias de seu encarceramento. Ele havia mostrado grande agitação interior ao
ser interrogado, e aquele ar de ponderação ou introspecção que o fazia parecer
mais velho desde então estivera em seu semblante como uma nuvem sombria.
Enquanto saíam, o júri, que se virara novamente na direção da corte e aguardava
por um momento, manifestou-se através do primeiro jurado.
Eles não haviam chegado a um acordo e desejavam retirar-se. Milorde
(talvez com George Washington em sua mente) demonstrou alguma surpresa por
não terem chegado a um acordo, mas satisfeito por eles se retirarem sob
vigilância e guarda, e ele mesmo pudesse se ausentar. O julgamento se estendera
por todo o dia e já se acendiam os lampiões da corte. Começou a espalhar-se o
rumor de que o júri ficaria ausente por muito tempo. Os espectadores saíram
para se refrescar, e o prisioneiro sentou-se no banco dos réus.
O senhor Lorry, que havia se retirado logo após a saída da jovem e seu pai,
reapareceu agora e acenou para Jerry, que, graças ao menor número de pessoas,
pôde aproximarse dele facilmente.
— Jerry, se você quiser comer alguma coisa, pode ir. Mas fique por perto.
Assim, ouvirá quando o júri retornar. Então, entre sem perda de tempo, porque
quero informar o veredicto ao Banco. Você é o mensageiro mais rápido que
conheço, e chegará a Temple Bar muito antes de mim.
Jerry, em cuja testa mal existia espaço para isso, bateu nela com os nós dos
dedos, em reconhecimento da comunicação e do xelim recebido. O senhor
Carton, nesse momento, surgiu e tocou o braço do senhor Lorry.
— Como está a jovem dama?
— Muitíssimo aflita, mas o pai a está reconfortando e ela se sente melhor
depois que saiu da corte.
— Eu contarei ao prisioneiro. Não ficaria bem para um respeitável
cavalheiro do Banco, como o senhor, ser visto conversando em público com o
prisioneiro, como sabe.
O senhor Lorry corou como se tivesse consciência de ter debatido esse
ponto em sua mente, e o senhor Carton dirigiu-se até a grade. A saída da corte
era naquela direção, de modo que Jerry seguiu-o, todo ouvidos, olhos e cabelospontudos.
— Senhor Darnay! O prisioneiro avançou imediatamente.
— O senhor naturalmente deve estar ansioso para obter notícias da
testemunha, senhorita Manette. Ela passa muito bem. O senhor presenciou o
clímax de sua agitação.
— Lamento profundamente ter sido o causador. Poderia dizer-lhe isso por
mim, com a minha fervorosa gratidão?
— Sim, poderia. E o farei, se pedir.
Os modos do senhor Carton eram tão descuidados a ponto de serem quase
insolentes. Ele permaneceu meio voltado para o prisioneiro, apoiando o cotovelo
na grade.
— Pois eu peço. Aceite meu cordial agradecimento.
— O que — indagou Carton, ainda meio voltado para ele — o senhor espera,
senhor Darnay?
— O pior.
— É a coisa mais sábia a esperar, e também a mais provável. Contudo,
considero a retirada do júri bastante favorável ao senhor.
Não lhe sendo possível demorar-se mais para sair da corte, Jerry não logrou
ouvir mais nada, mas deixou-os, tão parecidos um com o outro nas feições e tão
diferentes em modos, de pé, lado a lado, ambos refletidos no espelho acima
deles.
Uma hora e meia arrastou-se pesadamente nos corredores apinhados de
ladrões e velhacos do andar de baixo, apesar da ajuda dos seus pastéis de carne
de carneiro e cerveja. O rouco mensageiro, desconfortavelmente sentado num
banco depois de fazer a refeição, caíra num cochilo, quando um burburinho
ruidoso despertou-o e uma onda veloz de pessoas subindo as escadas rumo à
corte carregou-o para cima.
— Jerry! Jerry! — o senhor Lorry já chamava à porta quando ele chegou
lá.
— Aqui, senhor! Foi uma luta para voltar. Aqui estou, senhor.
O senhor Lorry estendeu-lhe um papel por entre a multidão.
— Depressa! Apanhou?
— Sim, senhor!
Apressadamente rabiscada no papel estava a palavra “ABSOLVIDO”.
— Se o senhor enviasse a mensagem “De volta à Vida” de novo —
murmurou Jerry, virando-se —, desta vez eu entenderia o significado.
Ele não teve oportunidade de dizer, nem mesmo de pensar, nada mais até
alcançar Old Bailey, pois a multidão saía aos borbotões, com tal ímpeto que
quase lhe tiraram as pernas do chão, e um zumbido alto espalhou-se pelas ruas
como se as moscas varejeiras se dispersassem em busca de outra carniça. IV. Congratulações
CAPÍTULO IV
CONGRATULAÇÕES
Da penumbra dos corredores da corte, o último sedimento do ensopado humano
que fervera naquele caldeirão ao longo do dia forcejava porta fora, quando o
doutor Manette, Lucie Manette, sua filha, o senhor Lorry, o assistente da defesa e
o defensor, senhor Stryver, reuniram-se em torno do senhor Charles Darnay —
recém-libertado — para congratulá-lo por escapar da morte.
Teria sido difícil, sob uma luz mais brilhante, reconhecer no doutor Manette,
de semblante culto e de porte empertigado, o sapateiro do sótão de Paris.
Contudo, ninguém poderia observá-lo com mais cuidado sem que a sua figura lhe
prendesse a atenção — mesmo que não tivesse a oportunidade de observar a
cadência plangente de sua voz baixa e grave e o alheamento que ensombreava às
vezes a sua fronte, sem nenhuma razão aparente. Não era apenas uma causa
externa, como a menção à sua longa e lenta agonia — do modo que ocorrera
durante o julgamento — que fazia emergir essa condição das profundezas de sua
alma, mas também era próprio de sua natureza erguer-se de si mesma e
envolvê-lo em melancolia, uma melancolia tão incompreensível para aqueles
não familiarizados com sua história, como se houvessem visto a sombra da
verdadeira Bastilha lançada sobre ele pelo sol de verão, embora sua real
substância estivesse a quase quinhentos quilômetros de distância.
Apenas sua filha tinha o poder de afugentar de sua mente aquela nuvem
sombria. Ela era o fio dourado que o unia ao passado que antecedeu ao seu
tormento, e ao presente, que o sucedeu, e o som de sua voz, a luz de seu rosto e o
toque de sua mão exerciam quase sempre sobre ele uma influência grandemente
benéfica. Não sem algumas exceções, pois ela podia se lembrar de algumas
ocasiões em que seu poder falhou. Mas eram poucas e breves essas ocorrências,
e julgava-as superadas.
O senhor Darnay beijou a mão dela com fervor e gratidão e voltou-se para
o senhor Stryver, a quem agradeceu calorosamente. O senhor Stryver, um
homem de pouco mais de trinta anos[62], mas com aparência de vinte anos mais
velho, robusto, ruidoso, sanguíneo, franco e livre dos inconvenientes de qualquer
sentimento mais delicado, tinha um jeito agressivo de abrir caminho com os
ombros (moral e fisicamente) para impor sua participação nos grupos e nas
conversas, que traduzia bem seu modo de subir na vida aos empurrões.
Ainda envergando peruca e toga, disse, abrindo espaço junto a seu último
cliente de tal forma que obrigou o inofensivo senhor Lorry a afastar-se um pouco
do grupo:— Estou feliz por tê-lo livrado com honra, senhor Darnay. Esse foi um
processo infame, grosseiramente infame; mas não com menos possibilidade de
conduzir a resultados funestos.
— Deixou-me em débito para com o senhor por toda a vida, em dois
sentidos — replicou seu último cliente, tomando-lhe a mão.
— Fiz o melhor que pude pelo senhor, senhor Darnay. E creio que o melhor
que posso é tão bom quanto o de qualquer outro advogado.
Ficando patente que alguém deveria contestá-lo, o senhor Lorry assumiu a
incumbência:
— Muito melhor — protestou, de forma talvez não de todo desinteressada,
mas com o objetivo de recuperar o seu lugar no grupo.
— Acha mesmo? — retorquiu o senhor Stryver. — Bem, o senhor esteve
presente o dia inteiro e deve saber. É um homem de negócios, também.
— E, como tal — declarou o senhor Lorry, a quem o douto defensor agora
empurrou com o ombro de volta para o grupo, do mesmo modo como o havia
expulsado —, como tal, apelarei ao doutor Manette para que encerre esta
conferência e nos envie a todos para casa. A senhorita Lucie parece adoentada, o
senhor Darnay teve um dia terrível, e estamos todos exaustos.
— Fale por si mesmo, senhor Lorry — retrucou Stryver.
— Ainda tenho uma noite de trabalho pela frente. Fale por si mesmo.
— Falo por mim mesmo — respondeu o senhor Lorry
— e pelo senhor Darnay, bem como pela senhorita Lucie e... senhorita
Lucie, acha que eu deveria falar em nome de todos? — indagou com ênfase,
relanceando os olhos para o pai dela.
O rosto dele se imobilizara num olhar muito curioso a Darnay, um olhar
intenso, aprofundando-se numa expressão de desagrado e desconfiança, numa
mistura não isenta de medo. Com essa estranha mescla de sentimentos impressos
no semblante, seus pensamentos vagavam longe.
— Meu pai — murmurou Lucie, pousando a mão com suavidade na dele.
O doutor Manette lentamente repeliu a sombra e voltou-se para ela.
— Vamos para casa, meu pai? Com um longo suspiro, ele concordou:
— Sim.
Os amigos do prisioneiro absolvido se haviam dispersado sob a impressão,
que ele próprio causara, de que não o libertariam aquela noite. Quase todas as
luzes se extinguiram nos corredores, os portões de ferro se fecharam com um
rangido e um estrépito, e aquele triste lugar ficaria deserto até que o interesse
despertado pelo cadafalso, pelo poste onde se açoitavam as pessoas, pelo
pelourinho e pelo ferrete o repovoassem na manhã do dia seguinte. Caminhando
entre o pai e o senhor Darnay, Lucie Manette saiu para o ar livre. Chamaram um
coche de aluguel, no qual pai e filha partiram.
O senhor Stryver os havia deixado nos corredores, para abrir caminho com
os ombros até o vestiário. Outro homem, que não se juntara ao grupo nem
trocara palavra alguma com nenhum de seus integrantes, mas que estivera
encostado na parede onde as sombras eram mais escuras, silenciosamente seguiu
os demais e observou-os até o coche se afastar. Só aí aproximou-se do senhor
Lorry e do senhor Darnay no passeio.— Então, senhor Lorry! Os homens de negócio já podem conversar em
público com o senhor Darnay?
Ninguém havia demonstrado reconhecimento quanto à participação do
senhor Carton nos episódios do dia; ninguém sequer tomara conhecimento disso.
Ele estava sem a toga e nem por isso seu aspecto melhorara.
— O senhor se divertiria, senhor Darnay, se soubesse do conflito que agita a
mente de um negociante quando está dividida entre o impulso ditado pela boa
índole e a atitude adequada aos negócios. O senhor Lorry corou e replicou,
acalorado:
— Já mencionou o fato antes, senhor. Nós, homens de negócios que
servimos a um estabelecimento, não somos senhores de nós mesmos. Temos de
pensar no estabelecimento antes de pensarmos em nós.
— Eu sei, eu sei — retrucou o senhor Carton descuidadamente. — Não se
exaspere, senhor Lorry. O senhor é tão bom quanto qualquer outro, não tenho
dúvida. Até melhor, eu ousaria afirmar.
— Francamente — prosseguiu o senhor Lorry, ignorando o aparte —, não
consigo ver o que o senhor tem a ver com o assunto. Se me desculpar pelo que
vou dizer, como bem mais velho que sou, eu realmente sugiro que se preocupe
com seus próprios negócios.
— Negócios! Deus me livre e guarde, não tenho negócio algum — retorquiu
o senhor Carton.
— É uma pena que não tenha, senhor.
— Eu também acho.
— Se tivesse — continuou o senhor Lorry —, talvez se ocupasse com ele.
— Por Deus todo poderoso, não! Não o faria — contestou o senhor Carton.
— Bem, senhor! — bradou o senhor Lorry, totalmente apoquentado com a
indiferença dele. — Os negócios são uma coisa excelente, além de respeitável,
meu caro senhor. E, se impõem restrições, silêncio e impedimentos, o senhor
Darnay, como um jovem cavalheiro de conhecida generosidade, saberá levar
essa circunstância em consideração. Senhor Darnay, boa noite, e que Deus o
abençoe! Espero que o dia de hoje marque o início de uma vida próspera e feliz.
Cocheiro!
Talvez aborrecido não apenas com o advogado, mas um pouco consigo
mesmo, o senhor Lorry embarcou apressadamente no coche e seguiu para o
Banco Tellson. Carton, que cheirava a vinho do Porto e não parecia inteiramente
sóbrio, riu-se e disse a Darnay:
— É uma estranha ocasião esta que nos reúne aqui. Deve ser uma noite
bastante estranha para o senhor, ficar a sós com seu sósia nesta rua deserta.
— Ainda não me habituei à idéia — replicou Charles Darnay — de
pertencer a este mundo novamente.
— Eu não me surpreendo com isso, pois não faz muito tempo o senhor
estava bem próximo de passar desta para melhor. Mas, parece-me extenuado!
— Estou extenuado, começo a crer que desmaiarei.
— Nesse caso, por que diabos não vai jantar? Eu jantei, enquanto aqueles
parvos decidiam a que mundo o senhor deveria pertencer, ao nosso, ou a outro
qualquer. Per-mita-me indicar-lhe a taberna mais próxima onde se pode comerbem.
Segurando-o pelo braço, conduziu-o para baixo da colina Ludgate até a rua
Fleet e dali, por um caminho coberto, para o interior de uma taberna[63]. Foram
então guiados para uma pequena sala, onde Charles Darnay logo recobrou as
forças com um bom jantar completo e um bom vinho, enquanto Carton sentava-
se na extremidade oposta da mesa, com sua garrafa de Porto diante dele e com
seu característico jeito um tanto insolente.
— O senhor já se sente pertencendo de novo a este esquema terrestre,
senhor Darnay?
— Estou assustadoramente confuso com relação a tempo e espaço. Mas
estou aos poucos me recuperando.
— Deve ser uma satisfação imensa!
Ele teceu o comentário com amargura, tornando a encher um copo dos bem
grandes.
— Quanto a mim, meu maior desejo é esquecer que faço parte deste
mundo. Não tem sido bom para mim, exceto por um vinho como este, nem eu
para ele. De forma que não somos muito parecidos nesse particular. Na verdade,
começo a pensar que não somos muito parecidos em nada.
Transtornado pelas emoções do dia, e sentindo sua permanência ali na
companhia de seu sósia de comportamento grosseiro como uma espécie de
sonho, Charles Darnay não sabia como responder. Por fim, não respondeu nada.
— Agora que terminou de jantar — Carton disse —, por que não ergue um
brinde, senhor Darnay? Por que não faz a sua saudação?
— Que brinde? Saudar a quem?
— Como assim, a quem? Está na ponta da sua língua. Devia estar, tem de
estar, juro que está.
— À senhorita Manette, então!
— À senhorita Manette, pois!
Fitando seu companheiro diretamente nos olhos enquanto bebia, Carton
arremessou por sobre o ombro o copo na parede, onde se espatifou. Tocou, então,
a sineta e pediu outro.
— É uma jovem linda demais para desaparecer num coche no meio da
noite, senhor Darnay! — declarou, enchendo o novo copo.
Um ligeiro franzir de cenho e um lacônico “sim” constituíram a resposta.
— É uma linda jovem compadecendo-se do senhor e lamentando a sua
sorte! O que acha? Não vale o preço de uma vida tornar-se objeto de tal simpatia
e compaixão, senhor Darnay? Novamente, Darnay absteve-se de responder.
— Ela ficou deveras encantada ao receber seu recado, quando o transmiti.
Não que o tenha demonstrado, mas eu percebi.
A alusão serviu como um oportuno lembrete para Darnay de que seu
desagradável companheiro o havia, de livre e espontânea vontade, assistido ao
longo do dia. Dirigiu o diálogo para aquele ponto e agradeceu-lhe.
— Eu não quero nem mereço sua gratidão — foi a resposta, no mesmo tom
descuidado — Não me custou nada ajudá-lo, em primeiro lugar. E, em segundo,
não sei por que o fiz. Senhor Darnay, permita-me que lhe faça uma pergunta.
— Com todo o gosto, é o mínimo que posso fazer para retribuir seus bonsserviços.
— Julga que gosto especialmente do senhor?
— Realmente, senhor Carton — retrucou o outro, desconcertado —, nem
havia cogitado dessa questão.
— Pois, então, pense nela agora.
— O senhor agiu como se gostasse. Mas não acredito que goste.
— Também não acredito — concordou Carton. — Começo a formar uma
boa opinião sobre seu discernimento.
— Contudo — prosseguiu Darnay, erguendo-se para to-car a sineta —, não
há nada que impeça, espero, que eu peça a conta e que partamos sem
ressentimentos de parte a parte.
Carton assentiu.
— Absolutamente nada. Darnay tocou a sineta.
— Vai pagar toda a despesa? — indagou Carton. Ao receber uma resposta
afirmativa, ordenou ao taberneiro: — Então, traga-me outro quartilho do mesmo
vinho e me acorde às dez.
Tendo pago a conta, Charles Darnay levantou-se e desejou-lhe boa noite.
Sem retribuir o cumprimento, Carton também se levantou, com um toque de
ameaça ou desafio em seu semblante, e disse:
— Uma última palavra, senhor Darnay. Acha que estou embriagado?
— Penso que bebeu bastante, senhor Carton.
— Pensa? O senhor sabe que bebi.
— Se me permite dizê-lo, eu sei que sim.
— Então, pode muito bem saber por que. Eu sou um pobre e desiludido
escravo, senhor. Não me importo com ninguém na face da terra, e ninguém na
face da terra se importa comigo[64].
— Lamento muito. Devia ter empregado melhor os seus talentos.
— Talvez sim, senhor Darnay, talvez não. Todavia, não se deixe inebriar pela
sua sobriedade. Nunca se sabe o que pode acontecer amanhã. Tenha uma boa
noite.
Quando foi deixado a sós, essa estranha criatura apanhou uma vela,
aproximou-se do espelho dependurado na parede e observou a própria imagem
detidamente.
— Você gosta realmente desse homem? — murmurou.
— Por que deveria gostar especialmente de alguém parecido com você?
Não existe nada em você que se possa apreciar, como sabe. Ah, está confuso!
Que mudança promoveu em si mesmo! Haveria uma boa razão para afeiçoar-se
a uma pessoa que lhe mostra o quanto você decaiu e o que poderia ter sido? Será
que, se trocasse de lugar com ele, você seria fitado da mesma forma por aqueles
olhos azuis, e se tornaria alvo da comiseração daquele rosto aflito, como
aconteceu com ele? Ora, vamos, admita! Você odeia o sujeito.
Ele serviu-se de vinho para se consolar, bebeu toda a garrafa em poucos
minutos e adormeceu sobre os braços, com os cabelos espalhados sobre a mesa,
e um longo sudário no candeeiro[65]. V. O Chacal
CAPÍTULO V
O CHACAL[66]
Aqueles eram dias de muita bebida e a maioria dos homens bebia além da conta.
Tão grande foi o progresso que o tempo trouxe em relação a tais hábitos, que
qualquer estimativa moderada da quantidade de vinho e ponche que um homem
engoliria no decurso de uma noite, sem detrimento de sua reputação de perfeito
cavalheiro, pareceria, nos dias de hoje, um ridículo exagero. A douta profissão da
lei não estava certamente atrás de nenhuma outra douta profissão, no que se
refere à propensão dionisíaca; tampouco o senhor Stryver, já adiantado em seu
caminho aberto com os ombros para uma prática forense longa e lucrativa, o
qual rivalizava nesse particular com seus pares, com melhor desempenho ainda
que nas partes mais secas da competição legal.
Gozando de favoritismo em Old Bailey, da mesma forma que em Sessions
House, o senhor Stryver começara a galgar os primeiros degraus da escada de
sua carreira de forma cautelosa. Agora, as sessões em Old Bailey tinham de
convocar especialmente o predileto para seus braços ansiosos. E, elevando-se na
direção do rosto do lorde Chefe da Justiça na corte do Tribunal Superior de
Justiça[67], o rosado semblante do senhor Stryver podia ser visto diariamente,
destacando-se do canteiro de perucas como um grande girassol em busca de
espaço sob o sol por entre fileiras de brilhantes companheiros.
Fora certa vez notado no tribunal que, conquanto o senhor Stryver fosse um
homem volúvel, inescrupuloso, esperto e atrevido, não possuía a faculdade de
extrair a essência de uma série de fatos, faculdade que se inclui entre as mais
marcantes e necessárias para um advogado. Contudo, ele fazia progressos
excepcionais também aí. Quanto mais causas ele defendia, mais parecia crescer
seu poder de cap-tar o medular e o essencial. E mesmo que se demorasse até
tarde farreando com Sydney Carton[68], tinha sempre suas defesas na ponta da
língua na manhã seguinte.
Sydney Carton, o mais indolente e o menos promissor entre os homens, era
o grande aliado de Stryver. A quantidade de bebida ingerida pelos dois juntos, de
Hilary Term a Michaelmas[69], faria flutuar um dos navios de Sua Majestade.
Stryver jamais teve um caso nas mãos, em lugar algum, sem que lá estivesse
Carton, com as mãos nos bolsos, contemplando o teto da corte. Eles
freqüentavam os mesmos Circuitos[70], e mesmo ali prolongavam suas
costumeiras orgias noite adentro. Havia rumores de que Carton fora visto, em
pleno dia, voltando furtivamente para casa com passos trôpegos, como um gato
bêbado. Por fim, começou a surgir um consenso, entre os que se interessavampelo assunto, quanto ao fato de que, embora Sydney Carton jamais viesse a ser
um leão, ele era um chacal surpreendentemente bom, que prestava todo tipo de
serviço a Stryver nessa humilde condição.
— Dez horas, senhor — disse o taberneiro, a quem Carton encarregara de
despertá-lo. — Dez horas.
— O que foi?
— Dez horas, senhor.
— O que quer dizer? Dez horas da noite?
— Sim, senhor. Vossa Senhoria pediu-me para acordá-lo.
— Oh! Sim, eu me lembro. Muito bem, muito bem.
Após alguns desorientados esforços para voltar a dormir, os quais o
taberneiro combateu habilidosamente, atiçando o fogo de forma
deliberadamente ruidosa durante cinco minutos, ele finalmente levantou-se,
enfiou o chapéu na cabeça e saiu. Virou na direção de Temple e, tendo-se
reanimado percorrendo por duas vezes o caminho entre o Passeio do Superior
Tribunal de Justiça e o Paper-buildings[71], dirigiu-se para o escritório de
Stryver.
O escrevente do advogado, que jamais assistia a essas conferências, já
havia ido para casa, de forma que o próprio Stryver abriu-lhe a porta. Estava de
chinelas e trajava um roupão solto, que lhe deixava o pescoço nu,
proporcionando maior conforto. Ele possuía aquela dissoluta, fatigada e fanada
prega sob os olhos, que se pode observar em todos os beberrões de sua classe, a
partir do retrato de Jeffries[72] para trás, e que pode ser notada, a despeito dos
esforços dos artistas para dissimulá-la, em todos os retratos da Idade da Bebida.
— Está um tanto atrasado, Mnemósine — disse Stryver.
— Cheguei no horário usual, talvez um quarto de hora mais tarde.
Entraram numa sala escura forrada de livros e abarrotada de papéis onde
havia uma lareira crepitante, em cuja parte lateral fumegava uma chaleira. Em
meio ao dilúvio de papéis distinguia-se uma mesa, sobre a qual estavam garrafas
de vinho, conhaque, rum, bem como açúcar e alguns limões.
— Parece-me que você já tomou uma garrafa, Sydney.
— Acho que duas, esta noite. Jantei com o cliente de hoje... ou o vi jantar, o
que dá na mesma!
— Foi um detalhe espantoso, Sydney, esse que você apontou quanto à
semelhança. Como a percebeu? Em que momento?
— Pensei que ele era um sujeito bem apessoado e que eu seria exatamente
esse tipo de sujeito, se tivesse tido sorte. O senhor Stryver gargalhou até sacudir
sua precoce pança.
— Você e sua sorte, Sydney! Vamos trabalhar, vamos trabalhar.
Bastante mal-humorado, o chacal desapertou a roupa, dirigiu-se ao aposento
contíguo e voltou com um jarro grande de água fria, uma bacia e uma ou duas
toalhas. Depois de molhar as toalhas na água, e torcê-las parcialmente, enrolou-
as na cabeça de modo grotesco, sentou-se à mesa e disse:
— Agora estou pronto!
— Não há muito trabalho a ser feito esta noite, Mnemósine — anunciou o
senhor Stryver com alegria, examinando seus papéis.— Quantos casos?
— Apenas dois.
— Dê-me primeiro o pior.
— Pode escolher, Sydney. Eles estão ali.
O leão então sentou-se muito ereto num sofá ao lado da mesa de bebidas,
enquanto o chacal se acomodou diante da própria escrivaninha repleta de papéis
espalhados, do outro lado da mesa, com garrafas e copos ao alcance de sua mão.
Ambos serviam-se generosamente, embora cada um a seu modo. O leão, na
maior parte do tempo reclinado, com as mãos no cós do culote, contemplando o
fogo ou lançando olhares ocasionais a alguns documentos. O chacal, com as
sobrancelhas arqueadas e o semblante concentrado, tão absorvido pela tarefa que
seus olhos nem sequer acompanhavam a mão que ele estendia para o copo, a
qual sempre tateava por um minuto ou mais antes de encontrar o que buscava.
Duas ou três vezes, o caso mostrou-se tão espinhoso que o chacal viu-se obrigado
a se levantar e tornar a molhar as toalhas. Dessas peregrinações ao jarro e à
bacia, retornava com turbantes tão exóticos que seria impossível descrevê-los,
comentando-se apenas que se tornavam ainda mais cômicos em contraste com
sua expressão de ansiosa gravidade.
Por fim, o chacal preparou um repasto completo para o leão e preparou-se
para servi-lo. O leão aceitou-o com cautela, selecionou alguns trechos, comentou
outros, e o chacal assistiu-o nessas tarefas. Quando o repasto foi inteiramente
digerido, o leão colocou as mãos no cós do culote de novo e recostou-se para
meditar. O chacal revigorou-se com um copo cheio para umedecer a garganta e
outra aplicação de toalha fria na cabeça, passando a dedicar-se ao preparo do
segundo repasto. Este foi ministrado ao leão de maneira idêntica, não antes de o
relógio bater as três da manhã.
— Agora que terminamos, Sydney, encha um copo de ponche — disse o
senhor Stryver.
O chacal removeu as toalhas da cabeça, que haviam secado novamente,
sacudiu-se, bocejou, estremeceu e obedeceu.
— Hoje você estava muito seguro, Sydney, quanto àquelas testemunhas da
coroa, em cada pergunta formulada.
— Eu estou sempre seguro. Ou não?
— Não nego. O que lhe estragou o humor? Tome um pouco de ponche e
trate de melhorá-lo.
Com uma imprecação surda, o chacal obedeceu novamente.
— O velho Sydney Carton da velha Escola Shrewsbury[73] — comentou
Stryver, balançando a cabeça como se revisse nele o passado, junto com o
presente —, o velho e conhecido Sydney. Cheio de altos e baixos... ei-lo bem-
disposto num minuto, e, no seguinte, tomado pelo desalento.
— Ah! — replicou o outro, suspirando — Sim! O mesmo Sydney, com a
mesma sorte. Mesmo então, eu fazia os exercícios para os outros rapazes e
deixava de fazer os meus.
— Por quê?
— Só Deus sabe. Era o meu jeito, suponho.
O chacal sentou-se, com as mãos nos bolsos e as pernas esticadas para afrente, contemplando o fogo.
— Carton — disse o amigo, aprumando-se diante dele com ar de
importância, como se a lareira fosse uma fornalha onde se forjava a capacidade
de esforço persistente, de maneira que a única coisa gentil a se fazer pelo velho
Sydney Carton da velha Escola de Shrewsbury seria atirá-lo lá —, o seu jeito é, e
sempre foi, inaceitável. Você carece de energia e de propósito. Olhe para mim.
— Oh, que aborrecimento! — retorquiu Sydney, com uma risada leve e
mais bem-humorada. — Não me venha você com lições de moral!
— Como acha que fiz tudo o que fiz? — indagou Stryver.
— Como faço o que faço?
— Em parte, pagando-me para ajudá-lo, creio. Mas não vale a pena você
perder tempo pregando-me sermões, ou assumindo ares de importância sobre
isso. O que quer fazer, você faz. Esteve sempre na primeira fila e eu, sempre
atrás.
— Tive de abrir caminho para a primeira fila. Não nasci lá, nasci?
— Eu não estava presente à cerimônia. Minha opinião, porém, é que você
nasceu lá, sim — retrucou Carton, tornando a rir, agora acompanhado pelo
amigo.
— Antes de Shrewsbury, e em Shrewsbury, e também depois de
Shrewsbury — prosseguiu Carton —, você assumiu seu posto na primeira fileira
e eu, na minha fileira de trás. Mesmo quando éramos companheiros no Bairro
dos Estudantes de Paris[74], onde recolhíamos algumas noções do francês, das
leis francesas e outras migalhas das quais não tirávamos grande proveito, você
estava sempre em algum lugar, enquanto eu nunca estava em lugar algum.
— E de quem era a culpa?
— Pela minha alma, juro não estar certo de que não era sua. Você estava
sempre abrindo caminho e empurrando e pressionando, com tanta agitação que
não me restou alternativa na vida senão a ausência de movimento e a inação.
Todavia, é algo mórbido revolver o passado enquanto o dia nasce lá fora.
Falemos de algo mais agradável antes que eu me vá.
— Muito bem. Brindemos àquela bela testemunha — propôs Stryver,
erguendo o copo. — Considera esse assunto agradável?
Aparentemente não, pois ele tornou-se sombrio novamente.
— Bela testemunha — resmungou, fitando o próprio copo. — Já suportei
bastantes testemunhas por hoje. Quem é essa bela testemunha a quem se referiu?
— A graciosa filha do doutor, senhorita Manette.
— Ela é bonita?
— E não é?
— Não.
— Como, homem de Deus! A moça tornou-se alvo da admiração de todo o
tribunal!
— Dane-se a admiração de todo o tribunal! Quem disse que Old Bailey
também julga beleza? Ela não passa de uma boneca de cabelos dourados.
— Sabe de uma coisa, Sydney? — rebateu o senhor Stryver, fitando-o com
sagacidade e lentamente deslizando a mão pelas faces rosadas — Sabe de uma
coisa, eu cheguei a pensar, durante o julgamento, que você havia simpatizadocom a boneca de cabelos dourados e que foi até muito solícito para com ela.
— Solícito! Se uma moça, boneca ou não, desmaia na frente de um homem,
ele pode constatar o fato sem o uso de uma lente de longa distância[75]. Eu
brindo com você, mas nego a beleza da senhorita Manette. E agora, não beberei
nem mais uma gota. Vou dormir.
Quando seu anfitrião o seguiu pela escada portando uma vela para iluminar
os degraus, a luz fria do dia já espreitava através das janelas encardidas. Ao sair
da casa, o ar estava frio e melancólico, o céu escuro mostrava-se carregado de
nuvens, o rio turvo e sombrio, o cenário inteiro parecendo um deserto sem vida.
Espirais de névoa volteavam e volteavam sob as rajadas do vento matinal, como
se as areias do deserto se erguessem ao longe e avançassem, já começando a
envolver a cidade.
Com suas forças exauridas e cercado pelo deserto álgido, esse homem
parou um momento, quando atravessava um terraço silencioso, e, por um
momento, vislumbrou, descortinando-se na imensidão à sua frente, a miragem
de uma ambição digna, abnegação e perseverança. Na bela cidade que o sonho
estendia diante de seus olhos havia galerias arejadas, de onde os amores e as
graças se inclinavam para ele, jardins onde os frutos da vida amadureciam e
regatos de esperança refulgiam-se ao sol. A visão durou apenas um instante e
desvaneceu-se. Escalando a escadaria até seu quarto no alto de um prédio
sombrio, atirou-se sem se despir sobre a cama desarrumada e encharcou o
travesseiro de lágrimas.
Triste, tristemente o sol se ergueu. Levantou-se sobre todas as coisas e
nenhuma mais triste do que a visão daquele homem de boas habilidades e bons
sentimentos, incapaz, entretanto, de exercitá-los diretamente, incapaz de ajudar a
si mesmo e de lutar por sua felicidade, consciente de sua má sorte, mas
resignando-se a deixar que ela o conduzisse à destruição. VI. Centenas de Pessoas
CAPÍTULO VI
CENTENAS DE PESSOAS
A sossegada residência do doutor Manette localizava-se numa esquina pouco
movimentada perto da Praça do Soho[76]. Numa linda tarde de domingo, quando
as ondas de quatro meses haviam rolado sobre o julgamento de traição, fazendo-
o imergir no mar do tempo e desaparecer do interesse e da memória do público,
o senhor Jarvis Lorry caminhava pelas ruas ensolaradas de Clerkenwell[77],
onde morava, rumando para a casa do doutor, com quem iria jantar. Após vários
períodos em que se deixou absorver pelo trabalho e esqueceu tudo o mais, o
senhor Lorry tornara-se amigo do doutor e passara a considerar a sossegada
esquina como o recanto ensolarado de sua vida.
Nessa linda tarde de domingo, o senhor Lorry caminhava pelo Soho por três
motivos. O primeiro referia-se ao próprio hábito de caminhar, antes da refeição,
com o doutor e Lucie. O segundo era que, em domingos chuvosos, gostava de ser
recebido na casa dos Manette na qualidade de amigo da família, e os três se
entretinham conversando, lendo e olhando o dia pela janela. E o terceiro ligava-
se ao fato de que ele abrigava em seu espírito algumas pequenas mas agudas
indagações, e conhecia os hábitos da casa do doutor para saber o melhor
momento de obter as respostas que desejava.
Não havia em Londres recanto mais aprazível do que aquele onde morava o
doutor. Não havia cruzamentos, e as janelas da frente dos alojamentos que
ocupava ofereciam uma agradável visão de parte da rua, cuja atmosfera de
isolamento era um convite à introspecção. Havia, na época, alguns poucos
prédios ao norte da rua Oxford[78], e as árvores verdejavam em pequenos
bosques, flores silvestres cresciam e pilriteiros desabrochavam nos campos, hoje
desaparecidos. Em conseqüência, as brisas do campo circulavam pelo Soho com
vigorosa liberdade, em vez de arrastar-se pelo bairro como os mendigos que
perambulam pelas ruas sem endereço certo[79]. Havia, não muito longe dali,
alguns terrenos onde os pêssegos amadureciam na sua estação.
A luminosidade estival inundava a esquina durante toda a manhã; mas, nas
horas de calor mais intenso nas ruas, a esquina ficava na sombra, embora não tão
densa que impedisse de ver a claridade brilhante que havia além dela.
Era um lugar fresco e agradável, sóbrio sem ser triste, como, também, um
lugar onde os sons ecoavam de uma forma prodigiosa, e um porto seguro para
quem vinha do movimento e nervosismo das ruas.
Tinha de haver uma barca sossegada em tal ancoradouro, e havia. O doutor
ocupava dois pavimentos de uma casa grande e tranqüila, onde alguns visitantespoderiam representar algum incômodo durante o dia, mas em geral pouco ou
nenhum ruído produziam, cessando todo o movimento ao anoitecer. Numa
edificação nos fundos, acessível através de um pátio onde sussurravam as folhas
verdes de um plátano, construíam-se órgãos de igreja numa porta, cinzelava-se
prata em outra, e também o ouro aguardava ser marchetado por algum
misterioso gigante, cujo braço dourado projetava-se da fachada[80], como se ele
se houvesse transformado nesse metal precioso e ameaçasse a todos os visitantes
de conversão similar. Muito pouco se via ou ouvia desse comércio, ou do
movimento de um inquilino solitário que se dizia morar no andar de cima, ou de
um fabricante de acessórios para carruagens que, conforme os comentários,
possuía um escritório de negócios no térreo. Ocasionalmente, um trabalhador
extraviado, vestindo o seu casaco, atravessava o vestíbulo, ou um estranho
perambulava por ali, ou um tinido distante vinha do jardim, ou escutava-se uma
batida do gigante dourado. Essas, contudo, as únicas exceções que comprovavam
a regra de que o canto dos pardais pousados no plátano e os ecos da esquina eram
os sons que imperavam desde as manhãs de domingo às noites de sábado.
O doutor Manette atendia ali tantos pacientes quantos sua antiga reputação,
reavivada pelos cochichos acerca de sua história, atraía. Seus sólidos
conhecimentos científicos, sua cautela e habilidade em conduzir experiências
engenhosas, valeram-lhe, por outro lado, um boa clientela, e ele ganhava o
suficiente para desfrutar de certo conforto.
Esses detalhes eram conhecidos pelo senhor Jarvis Lorry e estavam em seu
pensamento ao tocar o sino à porta da sossegada casa de esquina, numa linda
tarde de domingo.
— O doutor Manette está em casa? Saiu, mas voltaria logo.
— A senhorita Lucie está em casa? Saiu, mas voltaria logo.
— A senhorita Pross está em casa?
Possivelmente, porém, em virtude da impossibilidade de uma criada
adivinhar as intenções da senhorita Pross, não lhe era dado admitir ou negar o
fato.
— Bem, como eu estou em casa — disse o senhor Lorry —, subirei.
Embora a filha do doutor nada conhecesse sobre seu país de nascimento,
parecia ter o talento inato para fazer muito com poucos meios, o que constitui
uma das mais úteis e agradáveis características dos franceses. A mobília era
simples, mas decorada com tantos pequenos adornos, de pouco valor mas de
muito bom gosto, que o efeito revelava-se delicioso. A disposição de tudo nos
aposentos, do maior ao me-nor objeto, a combinação de cores, a elegante
variedade e contraste conseguidos com o uso parcimonioso dos objetos, pelas
mãos delicadas, pelos olhos claros e pelo bom senso, criaram um ambiente tão
aconchegante e tão evocativo de sua autora que, quando o senhor Lorry olhou
em torno, as cadeiras e mesas pareciam perguntar-lhe, com um toque daquela
expressão que ele aprendera a conhecer bem, se lhe mereciam a aprovação.
Havia três aposentos em cada andar e as portas de comunicação estavam
abertas, para permitir que o ar circulasse livremente. O senhor Lorry,
observando com prazer aquela extraordinária semelhança com a expressão da
moça que detectava ao seu redor, vagou de um quarto para outro. O primeiro erao melhor deles, e abrigava os pássaros de Lucie, suas flores, livros, escrivaninha,
mesa de trabalho e sua caixa de aquarela. O segundo servia de consultório ao
doutor e também de sala de jantar. O terceiro, onde incidiam as sombras
cambiantes do plátano que havia no jardim interno, era o quarto de dormir do
doutor. Num dos cantos jazia o tamborete de sapateiro e a caixa de ferramentas,
os quais haviam sido tão utilizados no quinto andar de uma triste casa perto de
uma taberna, no subúrbio de Santo Antônio, em Paris.
— Espanta-me — murmurou o senhor Lorry, detendose — que ele guarde
essa lembrança de seu sofrimento.
— E por que se espanta? — a indagação abrupta assustou-o.
Procedia da senhorita Pross, a forte mulher de cabelos de um tom selvagem
de vermelho que conhecera no Hotel Royal George, em Dover, conhecimento
que se aprofundara desde então.
— Eu imaginei que... — o senhor Lorry começou.
— Hum... Imaginou! — rebateu a senhorita Pross, e o senhor Lorry saiu.
— Como tem passado? — ela inquiriu rapidamente, e já com a intenção de
mostrar que não estava zangada com ele.
— Muito bem, obrigado — respondeu o senhor Lorry com brandura. — E a
senhorita, como vai?
— Sem nada de que me possa vangloriar.
— É mesmo?
— Ah, sim! — suspirou a senhorita Pross. — Ando muito preocupada com a
minha menina.
— É mesmo?
— Pelo amor de Deus, diga qualquer coisa que não “é mesmo?” ou
acabarei tendo um acesso de nervos — resmungou a senhorita Pross, cuja
característica (dissociada de sua estatura) era a pequenez de sua paciência.
— É verdade, então? — emendou o senhor Lorry.
— Não acho “verdade” grande coisa — retorquiu a senhorita Pross —, mas
é melhor. Sim, ando bastante preocupada.
— Posso perguntar-lhe a razão?
— Não quero dúzias de pessoas indignas da minha menina vindo aqui para
vê-la.
— E têm vindo dúzias de pessoas aqui com esse propósito?
— Centenas — disse a senhorita Pross.
Era característico dessa dama (e de algumas outras pessoas antes e depois
dela) que, sempre que se questionava uma afirmação sua, ela a exagerava.
— Meu Deus! — exclamou o senhor Lorry, considerando aquele
comentário o mais seguro que pôde encontrar.
— Tenho vivido com a minha querida, ou a minha querida tem vivido
comigo, e me pagando para isso, o que ela nunca deveria ter feito, eu lhe
garanto, pois se dispusesse de recursos manteria a nós duas sem qualquer
retribuição, desde quando ela contava apenas dez anos. E o que ocorre é
realmente bastante penoso — perorou a senhorita Pross.
Não percebendo com precisão o que era bastante penoso, o senhor Lorry
sacudiu a cabeça, empregando essa importante parte de seu corpo como umaespécie de capa mágica que se ajustava a qualquer coisa.
— Todos os tipos de pessoas indignas até de pisar o mesmo chão que a
minha bonequinha estão sempre aparecendo — prosseguiu a senhorita Pross. —
Quando o senhor iniciou esse desfile...
Eu iniciei o desfile, senhorita Pross?
— E não? Quem trouxe o pai dela de volta à vida?
— Oh! Se esse foi o início... — murmurou o senhor Lorry.
— Suponho que não tenha sido o fim. Como eu dizia, quando o senhor iniciou
o desfile, foi muito penoso; não que eu tenha qualquer coisa contra o doutor
Manette, exceto que ele não é merecedor da filha que tem, o que não constitui
uma acusação contra ele, pois ninguém seria digno dela, sob quaisquer
circunstâncias. Mas é duas vezes, senão três vezes mais penoso suportar essa
multidão chegando por sua causa (e eu poderia tê-lo perdoado), para me roubar
o afeto da minha menina.
O senhor Lorry não ignorava que a senhorita Pross fosse muito ciumenta,
mas já a conhecia o suficiente para saber que ela era também, sob a máscara de
excentricidade, uma daquelas criaturas altruístas — encontradas apenas entre as
mulheres — que se escravizariam de bom grado, por puro amor e admiração, à
juventude que já não possuíam, à beleza que jamais tiveram, às realizações que
o destino sempre lhes negaram, às esperanças que nunca brilharam em suas
vidas sombrias. Ele conhecia o mundo o bastante para saber que não existe nada
melhor que os leais serviços do coração; tão abnegados e destituídos de qualquer
mácula mercenária. Tinha por eles tão grande respeito que, no cômputo mental
que fazia (e todos fazemos essa espécie de contabilidade, com maior ou menor
freqüência), ele colocava a senhorita Pross muito mais perto dos anjos menores
do que muitas das damas incomensuravelmente mais bem agraciadas tanto pela
natureza quanto pela arte, que mantinham suas contas no Banco Tellson.
— Jamais houve nem haverá senão um homem à altura da minha menina
— continuou a senhorita Pross —, e esse homem seria meu irmão Solomon, se
ele não tivesse cometido um erro na vida.
Na verdade, as indagações do senhor Lorry sobre a história pessoal da
senhorita Pross haviam estabelecido o fato de que seu irmão Solomon não
passava de um velhaco desalmado que a despojara de tudo quanto possuía,
investindo o produto de seu roubo no jogo, e abandonando-a na miséria sem
nenhum traço de remorso. A inabalável confiança da senhorita Pross em
Solomon (que pouco diminuíra diante de um erro tão insignificante) representava
uma virtude das mais raras para o senhor Lorry, e reforçava o bom conceito que
formara a seu respeito.
— Tendo em vista estarmos sozinhos no momento, e já que somos ambos
pessoas práticas — ele disse, quando retornaram à sala e sentaram-se
amigavelmente —, permita-me perguntar-lhe: o doutor, ao conversar com
Lucie, nunca se refere a seus tempos de sapateiro?
— Nunca.
— Mas, ainda assim, conserva o tamborete e as ferramentas no quarto?
— Ah! — a senhorita Pross sacudiu a cabeça. — Eu não disse, todavia, que
ele não se refere ao assunto quando fala sozinho.Acredita que ele pense muito nisso?
Acredito, sim — confirmou a senhorita Pross.
— A senhorita imagina que... — o senhor Lorry principiava, quando a
senhorita Pross atalhou:
— Jamais imagino nada. Sou totalmente destituída de imaginação.
— Deixe-me corrigir, então. A senhorita supõe — consegue supor, pois não?
— Às vezes — respondeu a senhorita Pross.
— A senhorita supõe — o senhor Lorry prosseguiu, com um lampejo
divertido e afetuoso no olhar — que o doutor Manette tenha concebido, e
guardado para si mesmo todos esses anos, alguma teoria relativa à causa de sua
opressão, talvez até o nome de seu opressor?
— Não fiz nenhuma suposição a esse respeito e só sei o que a minha menina
me conta.
— E ela conta que?...
— Que ela julga que sim.
— Agora, por favor, não se aborreça com as minhas perguntas. Eu sou
apenas um rude homem de negócios, e a senhorita também é uma mulher
prática.
— E rude? — A senhorita Pross inquiriu com placidez.
Arrependido de ter utilizado esse adjetivo, o senhor Lorry replicou:
— Não, não. Certamente que não. Voltando às questões práticas, não é
intrigante que o doutor Manette, inquestionavelmente inocente de qualquer crime
como sabemos que ele é, jamais toque nesse assunto? Não que devesse discuti-lo
comigo, embora mantenhamos negócios há tanto tempo que acabamos por
tornar-nos íntimos, mas com a filha a quem é tão devotadamente ligado, e que
lhe retribui essa dedicação? Creiame, senhorita Pross, não abordei esse tema
com a senhorita por simples curiosidade, mas por um zeloso interesse.
— Bem! Pelo que pude compreender, que não é muito e, portanto, o senhor
me dirá se estou errada — retrucou a senhorita Pross, abrandada pelo tom de
desculpa —, ele tem medo do assunto.
— Medo?
— Parece-me bastante claro por que ele tem medo. São lembranças
terríveis. Além disso, a perda de si mesmo origina-se daí. Sem saber de que
modo se perdera, nem de que modo se reencontrara, ele nunca tem certeza de
que não se perderá de novo. Só isso já bastaria para tornar o assunto
desagradável, eu diria.
Aquela era uma análise mais profunda do que esperara o senhor Lorry.
— É verdade — concordou ele —, e assustador de se refletir. Contudo, uma
dúvida me assalta a mente, senhorita Pross. Será bom para o doutor Manette
guardar tudo isso oculto dentro de si? Na realidade, é essa dúvida, e a inquietação
que por vezes me causa, que me levou a desabafar com a senhorita.
— Não se pode fazer nada — retorquiu a senhorita Pross, sacudindo a
cabeça. — Toque essa corda e ele instantaneamente muda para pior. É melhor
deixarmos como está. Em suma, é melhor realmente deixarmos como está, quer
gostemos, quer não. Às vezes, ele se levanta na calada da noite e o ouvimos
andar de um lado para o outro, de um lado para o outro... em seu quarto. Amenina percebeu que, nessas ocasiões, a mente dele vagueia de um lado para o
outro, de um lado para o outro... em sua velha prisão. Ela corre para o pai e
caminha com ele, de um lado para o outro, de um lado para o outro... até a crise
passar. Mas ele jamais lhe diz uma palavra sobre o verdadeiro motivo de sua
agitação, e ela prefere não pressioná-lo. Em silêncio, os dois andam de um lado
para o outro juntos, de um lado para o outro juntos... até que seu amor e
companhia o trazem de volta à realidade.
Apesar de a senhorita Pross negar a si própria o dom da imaginação, a
percepção da dor de ser monotonamente assombrado por uma triste idéia
revelava-se na maneira como ela descreveu as crises, repetindo a frase “de um
lado para o outro” numa cantilena sombria, o que testificava que ela possuía tal
atributo.
Realmente, aquela era uma esquina com estranhas propriedades acústicas,
como se fosse uma espécie de ouvido do lugar, de forma que o senhor Lorry,
postado à janela e procurando pelo pai e filha cujos passos ele ouvia, começava
a imaginar que jamais chegariam. Não apenas os seus ecos morreriam ao longe,
como também os próprios passos teriam desaparecido; contudo, ecos de outros
passos que nunca chegaram seriam ouvidos em seu lugar, e se perderiam à
distância para sempre no momento em que mais parecessem próximos. Pai e
filha, entretanto, finalmente apareceram, e a senhorita Pross estava a postos na
porta da frente para recebê-los.
Era agradável de se ver a senhorita Pross, se bem que agitada, sanguínea e
austera, tirando o chapéu de sua querida quando esta chegou ao andar de cima,
retocando-o com a ponta do lenço e tirando-lhe a poeira, dobrando o manto dela
para guardá-lo, alisando-lhe os sedosos cabelos com tanto orgulho quanto teria
sentido dos próprios cabelos, se fosse a mais linda e vaidosa das mulheres. Era
agradável de se ver sua menina abraçando-a e agradecendo-lhe os cuidados,
protestando por dar-lhe tanto trabalho, em tom de brincadeira, caso contrário a
senhorita Pross se teria retirado, magoada, para chorar no quarto. O doutor era
agradável de se ver, também, fitando-as e repreendendo a senhorita Pross por
mimar Lucie, falando de tal modo e com tais olhares que ficava claro que ele
próprio a mimava tanto quanto ela, e a mimaria ainda mais, se fosse possível.
Também o senhor Lorry era agradável de se ver, radiante sob a pequena peruca
diante da cena, agradecendo ao santo protetor dos celibatários pela graça de
encontrar, no declínio de sua vida, um lar. Contudo, as centenas de pessoas não
apareceram para presenciar tantas coisas agradáveis, e o senhor Lorry esperou
em vão pela realização do prognóstico da senhorita Pross.
Chegou a hora do jantar e nada das centenas de pessoas. Nos arranjos
domésticos, a senhorita Pross tomava conta das tarefas do andar de baixo,
saindo-se admiravelmente bem. Seus jantares, embora modestos, eram tão bem
preparados e servidos, os pratos, que mesclavam a culinária inglesa e a francesa,
tão asseados que não poderiam ser melhores. Como a dedicação da senhorita
Pross possuía um caráter essencialmente prático, ela vasculhara o Soho e as
regiões adjacentes em busca de franceses empobrecidos, os quais, tentados por
alguns xelins e meias-coroas, revelaramlhe os mistérios da cozinha de seu país.
Com esses decadentes filhos e filhas da Gália, ela adquiriu artes tão maravilhosasque a mulher e a moça que formavam a criadagem consideravam-na uma
espécie de feiticeira, como a fadamadrinha de Cinderela, que apanharia uma
galinha, ou um coelho, um vegetal ou dois da horta e os transformaria em tudo o
que quisesse.
Nos domingos, a senhorita Pross jantava à mesa do doutor, enquanto nos
outros dias insistia em tomar as refeições em horários desconhecidos de todos, no
andar de baixo ou em seu quarto, no andar de cima, um aposento em tons de
azul, onde ninguém, exceto a sua menina, tinha permissão para entrar. Nesse
domingo, ela, correspondendo à alegre disposição de sua querida e a seus
esforços para agradá-la, descontraiu-se mais que o habitual e o jantar também
foi muito agradável.
O dia fora de um calor opressivo e, após o jantar, Lucie propôs que o vinho
fosse levado para fora sob o plátano, e que se sentassem ali, ao ar livre. Como ela
era o eixo em torno do qual tudo girava, eles se acomodaram debaixo da árvore
e ela levou o vinho, para especial benefício do senhor Lorry; ela se havia
nomeado, algum tempo antes, como guardiã do copo do senhor Lorry. Assim, ali
sentados sob o plátano, encarregou-se de mantê-lo sempre cheio. Sombras
misteriosas dos cantos e quinas das casas espreitavam-nos enquanto
conversavam, e as folhas do plátano sussurravam para eles a seu modo sobre
suas cabeças.
Nem assim as centenas de pessoas se apresentaram. O senhor Darnay
apresentou-se quando tomavam vinho debaixo do plátano, mas ele era apenas o
primeiro.
O doutor Manette recebeu-o com cordialidade e assim também procedeu
Lucie. A senhorita Pross, contudo, afligiu-se de súbito com um espasmo na
cabeça e no corpo e recolheu-se. Não era incomum que ela se tornasse vítima
desse distúrbio, ao qual se referia, em conversas familiares, como “seus ataques
de nervos”.
O doutor estava em ótimas condições físicas, parecendo especialmente
rejuvenescido. A parecença entre ele e Lucie era bem grande em certos
momentos e, como estivessem sentados lado a lado, ela com a cabeça recostada
no ombro do pai e ele com o braço apoiado no espaldar da cadeira da filha, era
bastante agradável apreciar-lhes a semelhança.
Ele falara o dia inteiro, sobre vários assuntos, com vivacidade que não lhe
era habitual.
— Diga-me, doutor Manette — começou a perguntar o senhor Darnay,
juntando-se a eles debaixo da árvore, e a pergunta era proferida em
prosseguimento ao tema em discussão, que por acaso eram os prédios antigos de
Londres —, o senhor conhece a Torre?[81]
— Lucie e eu estivemos lá, mas por puro acaso. Vimos o bastante apenas
para sabermos que é muito interessante.
— Eu estive lá, como decerto se lembra — replicou Darnay com um
sorriso, embora com alguma raiva corandolhe o rosto —, de uma maneira bem
diferente, uma maneira que não nos possibilita ver muito. De qualquer modo,
contaram-me um fato curioso quando eu estava lá.
— De que se trata? — Lucie indagou.— Quando faziam algumas reformas[82], os trabalhadores descobriram
uma antiga masmorra, que fora, por muitos anos, cerrada e esquecida. Cada
pedra de sua parede interna estava recoberta de inscrições entalhadas por
prisioneiros, datas, nomes, queixas e orações. Sobre uma pedra num ângulo da
parede, um prisioneiro, que, ao que parece, foi executado, entalhou três letras
como sua última mensagem: “C.A.V.”. O trabalho foi realizado com alguma
ferramenta inadequada e às pressas, com a mão trêmula. A princípio, julgou-se
que fossem as iniciais do autor. Não havia, contudo, registro ou lenda sobre algum
prisioneiro com essas iniciais e foram feitas muitas suposições infrutíferas acerca
do nome a que se referiam. Por fim, cogitou-se que as letras não seriam iniciais,
mas uma palavra incompleta, “Cave”. Examinou-se cuidadosamente o chão sob
a inscrição e, na terra, debaixo de uma pedra, ou telha, ou um fragmento
qualquer de ladrilho, encontraram-se fragmentos de papel misturados com os
restos de uma pequena pasta ou bolsa de couro. Era impossível ler o que o
prisioneiro desconhecido escrevera, mas ele havia escrito alguma coisa e
ocultado ali, fora das vistas do carcereiro.
— Papai — exclamou Lucie — o senhor está doente!
Ele se havia erguido de súbito, com as mãos na cabeça. Seu aspecto e
modos aterrorizaram a todos.
— Não, minha querida, não estou doente. Apenas assustei-me com essas
grossas gotas de chuva que começam a cair. É melhor entrarmos.
O doutor se recobrou quase instantaneamente. A chuva de fato desabava em
gotas pesadas, que lhe molharam as costas das mãos. Todavia, ele não disse uma
única palavra em referência à descoberta narrada por Darnay e, ao entrarem na
casa, o olho experiente do senhor Lorry detectou, ou fantasiou que detectava, em
seu semblante voltado para Charles Darnay, a mesma expressão singular que
percebera nos corredores do tribunal.
Ele se recobrou tão depressa, contudo, que o senhor Lorry duvidou da sua
percepção. O braço do gigante dourado no vestíbulo não estava mais firme do
que o doutor, ao parar debaixo dele para lhes observar que ainda não era à prova
de pequenas surpresas (se é que um dia o seria) e que a chuva o assustara.
Chegara a hora do chá. A senhorita Pross preparou-o, sob o impacto de outro
de “seus ataques de nervos”, e não houve sequer sinal das centenas de pessoas. O
senhor Carton aparecera, mas ele era apenas o segundo.
Aquele começo de noite estava tão abafado que, embora sentados com as
portas e janelas abertas, eles sufocavam com o calor. Quando a mesa de chá foi
posta, todos se moveram para junto de uma das janelas e contemplaram o
crepúsculo tempestuoso. Lucie sentou-se ao lado do pai, Darnay sentou-se junto
dela, Carton recostou-se na janela. As cortinas eram brancas e longas; algumas
rajadas de vento que rodopiavam pela esquina erguiam-nas até o teto e as faziam
ondular como asas espectrais.
— A chuva ainda se limita a gotas grossas, pesadas e esparsas — comentou
o doutor Manette. — A tempestade vem chegando devagar.
— Mas chegará com toda a certeza — replicou Carton.
Eles falavam baixo, como as pessoas que esperam e observam fazem na
maioria das vezes. Como as pessoas num quarto escuro, observando e esperandopelos relâmpagos, fazem na maioria das vezes.
Havia uma grande pressa nas ruas, as pessoas corriam para abrigos antes
que a tempestade desabasse. A esquina de acústica extraordinária ressoava com
os ecos de passos indo e vindo, embora nenhum passo ali houvesse.
— Uma verdadeira multidão e, contudo, estamos sós!
— disse Darnay, depois de ouvirem os ruídos por algum tempo.
— Não é impressionante, senhor Darnay? — indagou Lucie. — Às vezes, eu
me sento aqui durante a noite e fantasio, mas mesmo a sombra de uma fantasia
tola me faz estremecer à noite, quando tudo parece tão escuro e solene...
— Deixe-nos estremecer também. Queremos saber que fantasias são essas.
— Os senhores as julgarão insignificantes. Só impressionam no momento
em que as criamos, suponho. É impossível transmiti-las. Às vezes sento-me aqui
sozinha à noite, ouvindo, até que imagino que os ecos são de passos que se
aproximam pouco a pouco de nossas vidas.
— Se for assim, há uma grande multidão prestes a entrar em nossas vidas —
Sydney Carton interveio, com seu jeito mal-humorado.
Os passos eram incessantes, e sua pressa tornava-os mais e mais rápidos. A
esquina ecoava e ressoava com o ruído deles. Alguns pareciam estar sob a
janela. Outros pareciam estar na sala. Alguns vindo, outros indo, alguns surgindo,
outros parando. Todos originários das ruas distantes e nenhum à vista.
— Esses passos destinam-se a todos, senhorita Manette, ou a cada um de
nós?
— Não sei, senhor Darnay. Eu o avisei de que eram fantasias tolas, mas o
senhor insistiu. Quando me entreguei a elas, estava sozinha e imaginei que os
passos pertenciam a pessoas que entrariam na minha vida e na de meu pai.
— Pois que entrem na minha! — exclamou Carton. — Eu não lhes farei
perguntas nem imporei condições. Há uma grande multidão. Há uma grande
multidão avançando sobre nós, senhorita Manette, e eu posso vê-los... nos
relâmpagos — acrescentou as últimas palavras logo após o vívido clarão que o
mostrou reclinado na janela. — E eu os escuto!
— tornou a acrescentar, depois do ribombar de um trovão.
— Aqui vêm eles, rápidos, ferozes e irados! Foi o ímpeto e o rugido da
chuva que ele anunciou que o deteve, pois nenhuma voz se faria ouvir com o
barulho da tempestade. Uma memorável tempestade de trovões e relâmpagos
desabou junto com o aguaceiro, sem oferecer sequer um momento de intervalo
na exibição de raios, estrondos e chuva antes que a lua se erguesse no céu à
meia-noite.
O grande sino de Saint Paul bateu uma hora no ar límpido, quando o senhor
Lorry, acompanhado por Jerry, de botas de cano alto e munido de uma lanterna,
fez o caminho de volta para Clerkenwell. Havia alguns trechos solitários de
estrada no caminho entre o Soho e Clerkenwell, e o senhor Lorry, atento aos
salteadores, sempre requisitava Jerry para esse serviço, embora habitualmente
isso ocorresse umas duas horas mais cedo.
Que noite! Quase uma noite, Jerry — disse o senhor Lorry —, para fazer os
mortos saírem de seus sepulcros.
Eu nunca vi uma noite, mestre, e espero nunca ver nenhuma, que faça umacoisa dessas — respondeu Jerry.
Boa noite, senhor Carton — despediu-se o homem de negócios. — Boa noite,
senhor Darnay. Será que nos tornaremos a ver em outra noite como a de hoje?
Talvez. Talvez vissem também a grande multidão de pessoas com seu
ímpeto e seu rugido avançando sobre eles. VII. O Marquês na Cidade
CAPÍTULO VII
O MARQUÊS NA CIDADE
Monseigneur, um dos homens de maior poderio na Corte, oferecia
quinzenalmente uma recepção em seu palácio em Paris. Sua excelência estava
em seu aposento particular, o santuário dos santuários, o mais venerado entre os
venerados pela multidão de adoradores na suíte do lado de fora. Monseigneur
preparava-se para tomar seu chocolate. Monseigneur podia engolir uma grande
variedade de coisas com facilidade, razão pela qual algumas mentes rabugentas
julgavam-no capaz de engolir a França com rapidez ainda maior. Contudo, seu
chocolate matinal não lhe desceria pela garganta sem a ajuda de quatro homens
fortes, além do cozinheiro[83].
Sim. Foram necessários quatro homens, todos suntuosamente engalanados,
cujo chefe não concebia a existência com menos do que dois relógios de ouro
em seu bolso[84], rivalizando com a nobre e modesta moda lançada por sua
excelência, para conduzir o venturoso chocolate aos lábios dele. Um lacaio levou
a chocolateira até a sagrada presença. O segundo moeu e espumou o chocolate
com o pequeno instrumento que trouxe para essa finalidade. O terceiro
apresentou o guardanapo favorito e o quarto (o tal dos dois relógios de ouro)
encheu a xícara. Seria impossível, para sua excelência, dispensar qualquer dos
lacaios que serviam chocolate sem perder sua elevada posição sob o céu. Grande
teria sido a mácula em seu brasão se seu chocolate fosse ignobilmente servido
por apenas três homens. Só dois, então, e ele morreria.
Monseigneur ceara fora na noite anterior, onde encantadoramente se
representavam a Comédia e a Grande Ópera[85]. Sua excelência ceava fora na
maioria das noites, sempre com companhias fascinantes. Tão delicado e sensível
era ele que a Comédia e a Grande Ópera influenciavam-no mais, no que dizia
respeito aos aborrecidos negócios e segredos de Estado, do que as necessidades
de toda a França. O que constituía uma feliz circunstância para a França, bem
como para outros países igualmente favorecidos!, como o foi para a Inglaterra (a
título de ilustração), nos saudosos tempos em que esta foi vendida pelos alegres
Stuart[86].
Monseigneur nutria uma idéia verdadeiramente nobre acerca dos interesses
do povo em geral, que era a de deixar as coisas seguirem o próprio curso. Quanto
aos interesses públicos em que estava diretamente envolvido, sua excelência
nutria outra idéia verdadeiramente nobre, que era a de deixar que as coisas
seguissem o curso dele, na direção de seu bolso e intensificando-lhe o poder.
Quanto a seus prazeres, gerais e particulares, sua excelência também possuíauma idéia verdadeiramente nobre, que era a de que o mundo fora concebido
para satisfazê-los. O texto de seu lema (alterado do original por apenas um
pronome, o que não é muito) rezava: “De Monseigneur é a terra e a sua
plenitude, o mundo e aqueles que nele habitam.”[87]
Contudo, sua excelência havia gradualmente descoberto que alguns
embaraços vulgares vinham se insinuando em seus negócios, tanto privados
quanto públicos. E as circunstâncias o obrigaram, nas duas classes de negócios, a
aliar-se a um coletor de impostos[88]. No que dizia respeito às finanças públicas,
porque Monseigneur, não podendo fazer nada com elas, devia,
conseqüentemente, entregá-las nas mãos de quem pudesse; e no tocante às
finanças particulares, porque o rendeiro era milionário e sua excelência, após
gerações de grande luxo e extravagância, estava empobrecendo. Assim, sua
excelência retirou a irmã do convento antes que ela tomasse o hábito, o traje
mais barato que poderia usar, e concedeu-a como um prêmio para o rico
rendeiro, que carecia do aconchego de uma família. Rendeiro esse que, portando
uma apropriada bengala com uma maçã de ouro em seu castão, encontrava-se
agora entre as pessoas nos aposentos externos, servindo de objeto de veneração
entre os mortais, sempre excetuada aquela parcela superior da humanidade com
a estirpe de Monseigneur, a qual, incluindo a própria esposa do rendeiro,
encarava-o com o mais arrogante desdém.
Homem suntuoso era o rendeiro. Possuía trinta cavalos nas cocheiras, vinte
e quatro lacaios para as tarefas domésticas do palácio e seis criadas de quarto a
serviço de sua esposa[89]. Como alguém que aparentava nada fazer além de
vasculhar e pilhar o que pudesse, o rendeiro, por mais que suas relações
matrimoniais o conduzissem na direção da moralidade social, era, no final das
contas, a mais real entre as personagens que aguardavam no palácio de sua
excelência naquele dia.
De fato, os aposentos, embora surgissem aos olhos como um belo cenário,
adornado com todos os detalhes de decoração que o bom gosto e a habilidade da
época podiam oferecer, eram, na verdade, algo que carecia de solidez.
Confrontados com os espantalhos trajados com farrapos e barretes de algodão
habitando alhures (e não tão distante dali, já que das torres de observação de
Notre-Dame, quase eqüidistantes dos dois extremos, podiam ambos ser
avistados), a situação mostrar-se-ia extremamente desconfortável, se alguém se
desse ao trabalho de estabelecer tal contraste na casa de sua excelência. Oficiais
do exército destituídos de conhecimentos militares[90], oficiais da marinha que
nada sabiam a respeito de navios, oficiais civis sem nenhuma noção acerca de
suas atribuições, eclesiásticos impudentes[91], que adotavam os mais dissolutos
hábitos mundanos, de olhos sensuais, línguas soltas e vidas dissipadas, todos tão
inadequados para suas respectivas atividades, todos mentindo
desavergonhadamente, fingindo ser o que não eram, mas todos direta ou
indiretamente da casta de sua excelência, e, portanto, introduzidos sub-
repticiamente em todos os cargos públicos dos quais se podia tirar algum
proveito. Não eram menos abundantes as pessoas sem ligação imediata com sua
excelência ou com o Estado, embora igualmente sem ligações com qualquer
coisa que fosse real, ou cujas vidas eram passadas em viagens por estradas queconduziam diretamente a lugar algum. Médicos que acumularam grandes
fortunas[92] receitando remédios de sabor delicado para doenças que jamais
existiram sorriam para seus pacientes cortesãos nas antecâmaras de sua
excelência. Planejadores[93]que haviam descoberto todos os tipos de remédios
para exorcizar os pequenos demônios que se apossavam do Estado, exceto o
remédio de trabalhar honestamente para erradicar um único pecado,
derramavam sua espantosa tagarelice nos ouvidos que conseguissem atrair na
recepção de sua excelência. Filósofos incrédulos[94], que reformavam o mundo
com palavras, erguendo torres de Babel com cartas de baralho para alcançarem
os céus, conversavam com químicos incrédulos que tinham um olho na
transmutação de metais[95] nesse fantástico agrupamento em torno de sua
excelência. Cavalheiros requintados, da mais fina educação, que viriam a ser
conhecidos, nessa época memorável — e têm sido desde então —, pelos frutos
de sua indiferença em relação a todo tema de interesse humano, desfilavam o
seu mais característico estado de desfastio pelos salões de sua excelência. Lares
tão bem constituídos estas várias notabilidades deixavam para trás no elegante
círculo de Paris, que os espiões em meio à assembléia de devotados[96] de
Monseigneur — formando uma boa metade dessa polida companhia —
encontrariam dificuldade em descobrir entre os anjos dessa esfera uma única
esposa que, por suas maneiras e aparência, denunciasse a sua condição de mãe.
Realmente, exceto pelo simples ato de trazer uma enfadonha criatura para este
mundo, o que sequer se aproxima da realização do nome de mãe, esta situação
não era prevista pela moda. As mulheres da aldeia mantinham consigo estes
bebês fora de moda[97] e os criavam, e charmosas avós de sessenta anos
vestiam-se e recebiam como jovens de vinte[98].
A lepra da irrealidade desfigurava cada ser humano nas salas de espera de
sua excelência. No salão mais afastado encontrava-se meia dúzia de pessoas
excepcionais, que haviam acalentado, durante alguns anos, um vago receio de
que as coisas em geral estivessem dando errado. Como uma forma promissora
de consertá-las, alguns deles — metade dessa meia dúzia — tornaram-se
membros de uma fantástica seita de convulsionários[99], e ponderavam, mesmo
ali, sobre a conveniência de espumarem, atirarem-se ao chão, urrarem e
sofrerem ataques epilépticos, estabelecendo, desse modo, uma inteligível baliza
para o futuro, para orientação de Monseigneur. Além desses dervixes, havia
outros três que ingressaram em outra seita, que visava a resolver a situação com
um jargão sobre “o Centro da Verdade”[100], sustentando que o Homem saíra
do Centro da Verdade — o que não carecia de muita demonstração — mas não
escapara da Circunferência, por isso era preciso evitar que escapasse, sendo
mesmo necessário empurrá-lo de volta para o Centro, por meio de jejum e do
contato com os espíritos. Em conseqüência, os membros desse grupo travavam
muitos diálogos com os espíritos, resultando em tremendos benefícios que
entretanto jamais se manifestaram.
Contudo, havia o consolo de que todos os visitantes do palácio de sua
excelência apresentavam-se bem trajados. Se ficasse estabelecido que o dia do
juízo final seria o dia do julgamento da elegância, todos ali estariam preparados
para a eternidade. Tantos cabelos frisados, empoados e armados, tantas cútisartificialmente corrigidas e preservadas, tantas espadas valentes e tanta
delicadeza para com o olfato, certamente manteriam o bom andamento de
qualquer coisa, para todo o sempre. Os cavalheiros requintados, da mais fina
educação, traziam dependurados pequenos berloques[101]que tilintavam quando
eles se moviam languidamente. Aqueles grilhões dourados repicavam como
preciosos sininhos, e, com esse repenique, com o farfalhar da seda, do brocado e
do mais delicado linho, havia uma agitação no ar que soprava para longe Santo
Antônio e sua fome devoradora.
Trajar-se bem era o único talismã infalível empregado para manter as
coisas em seus devidos lugares. Todos estavam vestidos como para uma baile de
máscaras do qual jamais sairiam. Do Palácio das Tulherias[102], através de sua
excelência e de toda a corte, bem como do Parlamento, dos Tribunais de Justiça
e de toda a sociedade (com exceção dos espantalhos), o baile de máscaras descia
até os verdugos, os quais, contribuindo para a elegância geral, eram convocados
para o ofício “frisados, empoados, vestindo casacos engalanados de dourado,
calçando escarpins e meias brancas de seda”[103]. Nos cadafalsos e nas rodas
de suplício — o machado raramente era empregado — “Monsieur Paris” (o
modo episcopal pelo qual era conhecido entre seus irmãos que professavam nas
províncias, “Monsieur Orleans” e os demais) oficiava com esses trajes
requintados. Mas quem, dentre a multidão que aguardava nas antecâmaras de
sua excelência naquele ano do Senhor de 1780, poderia duvidar da eternidade de
um sistema que se assentava em verdugos frisados, empoados, enfeitados com
laços dourados, de escarpins e meias brancas de seda?
Sua excelência, tendo tomado o chocolate, liberando, assim, seus quatro
homens da penosa tarefa, ordenou que abrissem as portas do sagrado santuário e
saiu. Então, que submissão, que bajulação, que servilismo, que abjeta
humilhação! Como se curvavam tanto no corpo quanto na alma, nada nesse
sentido era deixado para o Paraíso, o que podia ter sido uma dentre outras razões
pelas quais os adoradores de Monseigneur jamais se preocupavam com as coisas
do espírito.
Concedendo uma promessa aqui e um sorriso ali, um murmúrio a um feliz
escravo e um ou outro aceno, sua excelência afavelmente atravessou as salas até
a remota região da Circunferência da Verdade. Lá, Monseigneur virou-se, voltou
novamente e, assim, no devido curso de tempo, tornou a fechar-se em seu
santuário para reanimar-se com chocolate, não mais sendo visto.
Com o fim do espetáculo, a agitação no ar cresceu, transformando-se numa
leve tormenta, e os preciosos sininhos badalaram escadas abaixo. Dentro em
pouco, um único homem restou de toda a multidão, e ele, com o chapéu sob o
braço e a bolsa de rapé na mão, lentamente passou pelos espelhos em seu
caminho de saída.
— Eu o consagro — murmurou esse homem, detendose na última porta e
virando-se na direção do santuário — ao demônio!
Com essas palavras, ele sacudiu o rapé dos dedos como se sacudisse a
poeira dos pés[104] e silenciosamente desceu as escadas.
Era um homem de cerca de sessenta anos, muito bem vestido, com ar
arrogante e um rosto que parecia uma perfeita máscara. Uma face detranslúcida palidez, com traços claramente delineados e uma expressão como
que desenhada ali. O nariz, sob outros aspectos belamente formado, estava
ligeiramente apertado no topo de cada narina. Nessas duas depressões, ou
mossas, residia a única pequena alteração que aquela face exibia. Elas insistiam
em, por vezes, mudar de cor e ocasionalmente se dilatavam e contraíam num
movimento similar a uma débil pulsação. Nesses momentos, conferiam um ar
traiçoeiro e cruel a todo o semblante. Examinando-se com atenção, essa
expressão era auxiliada pelas linhas da boca e das órbitas dos olhos, demasiado
finas e horizontais. Ainda assim, malgrado o efeito que causava, era uma face
bela e marcante.
O dono dessa face desceu as escadas e chegou ao pátio interno, entrou na
carruagem e partiu. Poucas pessoas haviam conversado com ele na sala de
espera. Ele se mantivera um tanto apartado, e sua excelência poderia ter sido
mais acolhedor. Parecia, naquelas circunstâncias, que lhe era mais agradável ver
as pessoas comuns que seus cavalos dispersavam, as quais freqüentemente
escapavam por um triz de serem pisoteadas. Seu cocheiro conduzia os animais
como se perseguisse um inimigo, e a sua furiosa negligência não produzia
nenhuma reação na face, ou nos lábios, do homem. Queixas por vezes se faziam
ouvir[105], mesmo naquela cidade surda e naquela época emudecida, quanto ao
estilo feroz de conduzir os coches dos patrícios, que, naquelas ruas estreitas e sem
passeio, colocavam em risco e mutilavam a plebe de maneira bárbara. Poucos,
contudo, importavam-se o suficiente para dedicar um segundo pensamento ao
assunto e, quanto a isso e a tudo o mais, os miseráveis comuns eram abandonados
para resolverem como pudessem as próprias dificuldades.
Com um estrépito selvagem e uma desumana falta de consideração difícil
de entender em nossos dias, a carruagem arremeteu pelas ruas e precipitou-se
pelas esquinas, provocando gritos nas mulheres à sua frente e obrigando os
homens a se chocarem na pressa de sair e de tirar as crianças do caminho. Por
fim, investindo sobre uma esquina perto de uma fonte, uma das rodas sofreu um
solavanco mais forte e ouviu-se o brado de numerosas vozes. Os cavalos
recuaram e empinaram as patas dianteiras[106].
Não fosse por essa inconveniência, a carruagem provavelmente não se teria
detido. Era comum que as carruagens prosseguissem, deixando aqueles que
atropelavam para trás. Por que não? Mas, precipitadamente, o criado desceu, e
logo havia vinte mãos segurando as rédeas dos cavalos.
— O que aconteceu? — indagou monsieur, olhando calmamente pela janela.
Um homem alto, com um gorro na cabeça, havia retirado de sob as patas
dos cavalos uma espécie de embrulho, depusera-o sobre a mureta da fonte e
abaixara-se sobre a lama, ganindo como um animal bravio.
— Perdão, monsieur marquês! — respondeu um homem esfarrapado e
submisso. — É uma criança.
— Por que ele está fazendo esse barulho abominável? A criança lhe
pertence?
— Perdoe-me, monsieur marquês... é uma pena... Sim.
A fonte ficava um tanto afastada, do outro lado de um largo de onze ou treze
metros quadrados. Quando o homem alto subitamente ergueu-se do chão ecorreu para a carruagem, monsieur marquês fechou a mão por um instante em
torno do punho de sua espada.
— Assassinado! — berrou o homem, tomado por um desespero selvagem,
levantando ambos os braços por sobre a cabeça e fitando-o. — Morto!
As pessoas o circundaram e olharam para monsieur marquês. Os muitos
olhos voltados para ele nada revelavam além de vigilância e avidez. Não havia
ameaça ou raiva visíveis. Tampouco proferiram qualquer palavra. Depois do
primeiro grito, calaram-se e permaneceram silenciosos. A voz do homem
submisso que respondera a monsieur marquês era átona e amansada pela
extrema subserviência. Monsieur marquês percorreu com o olhar todos eles
como se não passassem de ratos saídos dos esgotos.
Apanhou a bolsa.
— Espanta-me — disse ele — que vocês do povo não saibam tomar conta
de vocês mesmos e de suas crianças. Há sempre um de vocês no caminho.
Quantos danos têm causado a meus cavalos. Tome! Dê isso a ele.
Monsieur marquês atirou uma moeda de ouro ao criado. Todas as cabeças
se ergueram e abaixaram, seguindo o movimento da moeda. O homem alto
tornou a gritar em tom quase sobrenatural:
— Morto!
A multidão abriu caminho para que um outro homem se aproximasse dele
correndo e o prendesse entre os braços. Ao vê-lo, a miserável criatura desabou
em seu ombro, soluçando num pranto copioso, apontando para a fonte, onde
algumas mulheres rodeavam gentilmente o embrulho inerte. Elas estavam,
contudo, tão silentes quanto os homens.
— Eu sei, eu sei — disse o recém-chegado. — Tenha coragem, meu
Gaspar! Morrer foi melhor para o pobrezinho do que viver. Ele morreu num
instante, sem dor. Será que ele poderia viver uma hora igualmente feliz?
— Você é um filósofo, você aí — observou o marquês, sorrindo. — Como o
chamam?
— Chamam-me Defarge.
— Em que trabalha?
Monsieur, eu vendo vinho.
— Tome, filósofo e vendedor de vinho — disse o marquês, lançando-lhe
outra moeda de ouro —, e gaste como quiser. Verifique se os cavalos estão bem.
Sem se dignar a contemplar a multidão pela segunda vez, monsieur marquês
recostou-se em seu assento. Mal principiava a ser levado embora com o ar de
um cavalheiro que acidentalmente quebrara algum objeto sem importância,
quando seu sossego foi repentinamente perturbado por uma moeda que entrou
voando pela janela e tilintou ao cair a seus pés.
— Pare! — ordenou monsieur marquês. — Pare os cavalos! Quem jogou
isto? Ele olhou para o lugar onde Defarge, o vendedor de vinho, estivera um
momento antes. Mas, naquele local, o infeliz pai rastejava com o rosto pelo chão,
e a figura que se via por trás dele era a de uma mulher tricotando.
— Seus cachorros! — disse o marquês, porém com suavidade, sem
nenhuma alteração em seu semblante, exceto no nariz, sobre as narinas. — De
bom grado eu passaria por cima de qualquer um de vocês e os exterminaria daface da Terra. Se eu soubesse qual foi o velhaco que jogou a moeda dentro da
carruagem, e se esse bandido estivesse suficientemente perto, eu o esmagaria
sob as rodas.
Tão acovardada era a condição deles, e tão vasta era sua experiência sobre
os horrores que um homem como aquele podia infligir-lhes com todo o apoio da
lei, que nenhuma voz, ou mão, ou mesmo olhar, se ergueu. Entre os homens,
nenhum. Entre as mulheres, contudo, aquela que tricotava fitou o marquês no
rosto com firmeza. Não seria digno dele perceber esse detalhe. Seus desdenhosos
olhos passaram por ela e por todos os outros ratos. E, novamente, recostou-se no
assento e ordenou:
— Vamos embora!
Ele foi conduzido para longe, outras carruagens vie-ram numa rápida
sucessão. O ministro, o planejador do Estado, o cobrador fiscal, o médico, o
advogado, o eclesiástico, o artista da Grande Ópera, o da Comédia, o baile de
máscaras inteiro num cintilante e contínuo desfile, todos passaram por ali. Os
ratos rastejaram para fora dos esgotos para contemplá-los, e continuaram
contemplando durante horas. Os soldados e a polícia freqüentemente se
interpunham entre eles e o desfile, formando uma barreira atrás da qual eles se
esquivavam e através da qual espreitavam. O pai havia muito levara seu
embrulho e se escondera com ele quando as mulheres que o haviam rodeado
enquanto ainda jazia sobre a mureta da fonte sentaram-se lá para observar a
água jorrando e o desfile do baile de máscaras. A única mulher que, tricotando,
distinguira-se das demais, ainda tricotava com a mesma tenacidade do destino. A
água corria na fonte, o rio corria ligeiro, o dia corria para a noite, tanta vida na
cidade corria para a morte de acordo com a regra de que o tempo e a maré não
esperavam por ninguém, de novo os ratos dormiam juntos uns dos outros em seus
esgotos sombrios, o baile de máscaras refulgiu para a ceia, todas as coisas
seguiam seu curso. VIII. O Marquês no Campo
CAPÍTULO VIII
O MARQUÊS NO CAMPO
Uma linda paisagem, onde o trigo refulgia, embora pouco abundante[107].
Leiras de centeio de qualidade inferior onde o trigo deveria estar, leiras de
ervilhas e feijões de qualidade inferior, leiras dos vegetais mais ordinários em
substituição ao trigo. Numa natureza tão enfermiça quanto os homens e mulheres
que a cultivavam, prevalecia a tendência ao aparecimento de uma vegetação
relutante, com uma desalentada tendência para brotar, e murchar logo em
seguida.
Monsieur marquês, em seu coche de viagem (que deveria ser mais leve)
puxado por quatro cavalos e conduzido por dois postilhões, subia penosamente
uma colina escarpada. O rubor no semblante de monsieur marquês não
desacreditava sua fina educação[108], pois não vinha de dentro, mas era causada
por uma circunstância externa, fora de seu controle: o sol poente.
O crepúsculo invadia tão brilhantemente o coche de viagem quando este
chegou ao topo da colina que seu ocupante estava banhado de carmim.
— Ele se extinguirá — murmurou monsieur marquês, lançando os olhos
para as mãos — rapidamente.
Com efeito, o sol afundava no horizonte. Quando a pesada trava foi ajustada
às rodas e o coche começou a deslizar morro abaixo, com um odor de queimado
e envolto numa nuvem de poeira, o brilho carmesim rapidamente desapareceu.
O sol e o marquês desceram juntos, e já não havia mais brilho atrás dele quando
a trava foi retirada.
Contudo, ainda restava no cenário uma terra arruinada, aberta e nua, uma
pequena aldeia no sopé da colina, uma subida em curva ampla além dela, uma
torre de igreja, um moinho, um bosque para as caçadas e um penhasco onde
havia uma fortaleza utilizada como prisão. Do alto da colina, enquanto a noite
traçava os seus contornos sombrios, o marquês contemplava tudo com ar de
quem se aproximava do lar.
O vilarejo possuía uma única e pobre rua, onde havia uma pobre cervejaria,
um pobre curtume, uma pobre taberna, uma pobre cocheira para troca de
cavalos, uma pobre fonte e todos os pobres petrechos usuais. Possuía pobres
habitantes, também. Todos os seus habitantes eram pobres e alguns deles estavam
sentados à porta, cortando sobras de cebola e coisas do gênero para o jantar,
enquanto outros estavam na fonte, lavando folhas e ervas, e alguns pequenos
frutos silvestres comestíveis. Sinais visíveis do que os empobrecia não faltavam.
Impostos para o Estado, dízimos para a Igreja, tributos para o senhor,contribuições locais e contribuições gerais deviam ser pagos a todo o momento,
de acordo com os solenes editais ali afixados, de forma que era de se espantar
que o vilarejo ainda não tivesse sido consumido por tão vorazes impostos[109].
Viam-se poucas crianças e nenhum cachorro. Quanto aos homens e
mulheres, suas alternativas no mundo resumiam-se à vida no padrão mais baixo
de subsistência na pequena aldeia sob o moinho, ou cativeiro e morte na prisão do
penhasco.
Anunciado por um mensageiro e pelos estalidos das chicotadas dos
postilhões, que serpenteavam sobre suas cabeças no ar vespertino, como se ele
viesse acompanhado das Fúrias[110], monsieur marquês ergueu-se em seu coche
de viagem ao chegar ao portão da estalagem. Como esta ficasse perto da fonte,
os camponeses interromperam seus afazeres para observá-lo. Ele fitou-os, e viu
neles, sem se dar conta disso, o lento e inexorável desgaste de suas faces
descarnadas e corpos esquálidos, que fizera a magreza dos franceses tornar-se
uma crença na Inglaterra[111] e que permaneceria verdadeira ainda por uns
bons cem anos.
Monsieur marquês pousou os olhos sobre os submissos rostos que se
curvavam diante dele, do mesmo modo como seus pares se haviam curvado
diante de monseigneur — a única diferença residia no fato de que naqueles rostos
ali inclinados havia apenas sofrimento, sem nenhum traço de bajulação —
quando um grisalho reparador de estradas juntou-se ao grupo.
— Traga-me aqui aquele sujeito! — o marquês ordenou ao mensageiro.
O sujeito foi trazido, com o barrete na mão, e outros sujeitos se
aproximaram para ver e ouvir, como fizeram as pessoas na fonte em Paris.
— Eu passei por você na estrada?
— É verdade, monseigneur. Eu tive a honra de estar no caminho na
passagem de monseigneur.
— Tanto na subida da colina como no topo?
— É verdade, monseigneur.
— O que você olhava tão fixamente?
— Eu olhava para o homem, monseigneur.
Ele se inclinou ligeiramente e, com o esfarrapado barrete azul, apontou para
baixo do coche. Todos os seus companheiros se inclinaram para observar o lugar
apontado.
— Que homem, seu animal? E o que está vendo aí?
— Perdão, monseigneur. Ele estava dependurado na corrente da trava das
rodas.
— Quem?
— O homem, monseigneur.
— Que o diabo carregue esses idiotas! Como se chama esse homem? Você
conhece todos os camponeses da região. Quem era ele?
— Clemência, monseigneur! Ele não é daqui. Nunca o vi em toda a minha
vida.
— Dependurado na corrente? Então se enforcou?
— Com sua graciosa permissão, foi isso o que me espantou, monseigneur.
Ele se pendurou pela cabeça, assim! O sujeito virou-se de lado para o coche edeitou-se com o rosto voltado para o céu, deixando pender a cabeça. Em seguida,
pôs-se de pé e, revirando o barrete, curvou-se numa reverência.
— Como era ele?
— Mais pálido do que o moleiro, monseigneur. Todo coberto de poeira,
branco e alto como um fantasma!
A imagem causou grande sensação ao pequeno grupo. Todos os olhos,
porém, sem trocarem impressões entre si, convergiram para o monsieur
marquês. Com o intuito, talvez, de verificar se ele trazia algum fantasma na
consciência.
— Você agiu bem — replicou o marquês, sensível demais para deixar-se
exasperar por um verme como aquele.
— Viu um ladrão em meu coche e ficou de boca fechada. Ora! Tire-o da
minha frente, monsieur Gabelle![112]
Monsieur Gabelle era o chefe do correio, além de cobrador de impostos. Ele
se aproximara com grande solicitude para assistir ao interrogatório, mantendo,
com ar autoritário, o interrogado firmemente preso pela manga da camisa rota.
— Arre! Saia da frente! — bradou monsieur Gabelle.
— Prenda esse estranho, caso ele procure abrigo no seu vilarejo esta noite, e
certifique-se de que as intenções dele eram honestas, Gabelle.
— Monseigneur, orgulho-me de colocar-me às suas ordens.
— O tal sujeito fugiu? Mas... onde está aquele amaldiçoado?
O amaldiçoado estava debaixo do coche junto com meia dúzia de amigos,
mostrando-lhes a corrente com o barrete azul. Outra meia dúzia de amigos
prontamente o arrastou para fora e o apresentou, sem fôlego, a monsieur
marquês.
— Diga-me, seu parvo: o tal sujeito fugiu quando paramos para tirar a
trava?
— Ele saiu de sob o coche e se lançou de cabeça para os lados do morro,
como se mergulhasse num rio, monseigneur.
— Vá investigar, Gabelle. Ande, vá logo!
A meia dúzia de amigos que inspecionava a corrente ainda vagava como
ovelhas por entre as rodas; estas se puseram tão repentinamente em movimento
que foi por pura sorte que conseguiram salvar os ossos e a pele. Eles possuíam
muito pouco mais para salvar, ou não teriam sido tão afortunados.
O ímpeto com que o coche irrompeu no vilarejo e principiou a subida da
colina além dela perdeu a intensidade na estrada íngreme. Gradualmente, a
velocidade reduziu-se a mera andadura, o coche oscilando e arrastando-se para
cima envolto pelos vários aromas adocicados da noite de verão. Os postilhões,
com um milhar de diáfanos mosquitos rodopiando à sua volta e fazendo as vezes
das Fúrias, quietamente remendavam as pontas das correias de seus chicotes. O
criado caminhava ao lado dos cavalos. Ouvia-se o mensageiro trotando à frente,
penetrando na escuridão.
No ponto mais íngreme da colina havia um pequeno túmulo, marcado por
uma cruz e uma nova e grande imagem de Nosso Senhor. Era uma pobre
imagem de madeira, esculpida por algum rústico e inexperiente artífice, que,
entretanto, se havia inspirado na vida, talvez na sua própria, e por isso eraterrivelmente esquálida.
Diante desse símbolo de uma grande angústia que há tanto tempo vinha
sendo cultivada e intensificada e ainda não atingira a plenitude, havia uma
mulher ajoelhada. Ela virou a cabeça para o coche que se aproximava, levantou-
se depressa e postou-se diante da carruagem.
— É o senhor, monseigneur! Monseigneur, tenho uma súplica a fazer.
Com uma exclamação de impaciência, porém mantendo o semblante
impassível, monseigneur fitou-a.
— Mas, o que é isso? Sempre suplicando!
— Monseigneur, pelo amor do bom Deus! Meu marido, o guarda-florestal...
— O que há com seu marido, o guarda-florestal? É sempre o mesmo, com
essa gente. Ele não pode pagar, não é?
— Ele já pagou tudo, monseigneur. Ele morreu.
— Bem. Que descanse em paz. Não pretende que eu o devolva à senhora,
pois não?
— Ai de mim, não, monseigneur. Mas ele jaz sob um pequeno monte de
grama ruim.
— E daí?
— Monseigneur, há tantos montes de grama ruim espalhados por aí...
— E daí?
Embora aparentasse idade, ela era jovem. Sua atitude revelava uma tristeza
apaixonada. Ora juntava energicamente as mãos calejadas e riscadas de veias,
ora pousava uma delas sobre a porta do coche — ternamente, acariciando-a
como se fosse o coração de alguém e pudesse comoverse com a suavidade de
seu toque.
— Ouça-me, monseigneur! Ouça minha súplica! Meu marido morreu de
fome. Tantos morrem de fome... tantos ainda morrerão!
— E daí? Por acaso posso alimentá-los?
— Oh, monseigneur, o bom Deus sabe... mas eu ainda não lhe fiz minha
súplica. Meu rogo é que arranje um pedaço de pedra ou de madeira com o nome
de meu marido, para colocar em seu túmulo. Caso contrário, o lugar será logo
esquecido, nunca o encontrarão quando eu morrer do mesmo mal e eu serei
enterrada sob um pequeno monte de grama ruim longe dele. Monseigneur, há
tantos assim, por aí. O número aumenta a cada dia, há tanta fome...
Monseigneur! Monseigneur!
O criado a afastou da porta, a carruagem partiu num trote ligeiro, os
postilhões aceleraram o passo, deixando a mulher para trás, e Monseigneur,
novamente escoltado pelas Fúrias, diminuiu rapidamente a distância de uma ou
duas léguas que o separavam de sua propriedade.
Os adocicados aromas da noite de verão ergueram-se ao redor dele, e
ergueram-se, como a chuva quando cai, imparcialmente[113], também sobre o
empoeirado, esfarrapado e esfalfado grupo reunido na fonte, não muito distante,
a quem o reparador de estradas, com a ajuda do barrete azul sem o qual ele não
era ninguém, ainda contava e recontava a história do fantasma, cada vez
acrescentando-lhe um detalhe. Aos poucos, quando não mais puderam ouvir a
mesma narrativa, eles se dispersaram um a um. Luzes começaram a tremeluziratrás das pequenas janelas. Luzes que, à medida que as janelas se perdiam nas
trevas, e mais estrelas surgiam no céu, pareciam ter-se transportado para o
firmamento em vez de meramente se extinguirem.
A sombra de uma grande casa, cujo alto telhado emergia entre as árvores,
surgiu diante de monsieur marquês naquele instante. E a sombra foi substituída
pela luz de um archote quando a carruagem parou e as portas de seu caste-lo se
abriram.
— Monsieur Charles, a quem espero, já chegou da Inglaterra?
— Ainda não, Monseigneur. IX. A Cabeça de Medusa
CAPÍTULO IX
A CABEÇA DE MEDUSA[114]
Era uma construção maciça, aquele castelo de monsieur marquês, com um
amplo pátio de pedra na frente e duas escadarias também de pedra conduzindo a
um terraço igualmente de pedra diante da porta principal. Uma edificação
completamente pétrea, com balaustradas de pedra maciça, vasos de pedra,
flores de pedra, rostos humanos de pedra e cabeças de leão de pedra por todos os
lados. Era como se a cabeça da Medusa houvesse inspecionado tudo depois de
pronto, dois séculos antes.
Em direção às escadas de degraus baixos, monsieur marquês, precedido de
um archote, saiu da carruagem, perturbando as trevas o bastante para provocar o
sonoro protesto de uma coruja pousada no telhado da cocheira oculta entre as
árvores. Tudo ali estava tão quieto que o archote carregado escada acima, e os
demais, junto à porta principal, ardiam como se estivessem em ambiente
fechado e não ao ar livre. Não havia outro som além do pio da coruja, além do
murmúrio da água cascateando na fonte de pedra. Era uma daquelas noites
escuras que prendem o fôlego por várias horas, exalam um suspiro e tornam a
prender o fôlego.
A grande porta fechou-se com estrépito atrás dele e monsieur marquês
cruzou um sinistro vestíbulo com as indefectíveis velhas armas de caça nas
paredes — lanças de caça ao javali, espadas, facas de caça —, e mais sinistro
ainda pelas também indefectíveis varas e vergastas de cavaleiro, das quais
muitos camponeses, despachados para sua benfeitora, a Morte, haviam sentido o
peso quando seu senhor se zangava.
Evitando os salões maiores, que permaneciam escuros e fechados durante a
noite, monsieur marquês, com o carregador de archote seguindo na frente, subiu
uma escadaria e alcançou uma porta no corredor. Esta foi aberta para que ele
entrasse nos próprios aposentos, que compreendiam três quartos — o de dormir e
mais dois. Quartos de teto abobadado, frios pisos sem tapete, grandes cachorros
sobre as lareiras, onde se queimava madeira no inverno, e todos os luxos que
convinham à condição de marquês num país e numa era de extremo luxo. O
estilo do antepenúltimo Luís, de uma linha de sucessão que nunca deveria ser
rompida — a de Luís XIV —, predominava no rico mobiliário; mas a
diversificação se dava por muitos objetos que eram ilustrações de antigas páginas
da história da França.
A mesa da ceia fora posta para dois no terceiro dos quartos — um aposento
circular, instalado numa das quatro torres encimadas por coberturasconiformes[115]. Um pequeno e majestoso quarto, com as janelas abertas de
par em par e as venezianas de madeira fechadas para que a escura noite só se
mostrasse na forma de linhas horizontais negras alternadas com amplas linhas
cinzentas das pedras.
— Meu sobrinho... — observou o marquês, fitando a mesa de relance. —
Disseram-me que ele ainda não havia chegado.
E não havia. Mas era esperado junto com monseigneur.
— Ah! Não é provável que chegue esta noite. Contudo, deixe a mesa como
está. Eu me aprontarei para a ceia dentro de um quarto de hora.
Um quarto de hora mais tarde, monseigneur estava pronto e sentou-se
sozinho para uma suntuosa ceia. Sua cadeira ficava do lado oposto ao da janela.
Ele tomou a sopa e levava sua taça de bordô aos lábios quando tornou a pousála
sobre a mesa.
— O que é isso? — indagou calmamente, fitando com atenção as linhas
horizontais negras e cinzentas.
— O quê, monseigneur?
— Lá fora. Abra as persianas. A ordem foi cumprida.
— E então?
— Não há nada lá, monseigneur. Apenas as árvores e a noite.
O criado que assim respondeu havia escancarado as venezianas e
esquadrinhado as trevas e aguardava, de pé, novas instruções.
— Está bem — retrucou o imperturbável senhor. — Feche-as de novo.
Essa ordem também foi cumprida e o marquês retornou à sua ceia. Estava
na metade dela quando tornou a parar, segurando a taça no ar, escutando o ruído
de rodas que vinha, forte, da parte frontal do castelo.
— Vá ver quem chegou.
Tratava-se do sobrinho de monseigneur. Ele estivera poucas léguas apenas
atrás do tio, no começo da tarde. Conseguira, depois, diminuir ainda mais a
distância que os separava, mas não o suficiente para alcançá-lo na estrada.
Informaram-lhe, na estalagem, que monseigneur acabara de passar por ali. Na
entrada do castelo, comunicaram-lhe que
o tio o esperava para a ceia e que, portanto, devia subir imediatamente. E
ele subiu. Na Inglaterra, era conhecido como Charles Darnay. Monseigneur
recebeu-o com cortesia, mas não lhe apertou a mão.
— O senhor deixou Paris ontem, meu tio? — ele indagou a monseigneur, ao
assumir seu lugar à mesa.
— Sim, ontem. E você?
— Vim direto.
— De Londres?
— Sim.
— Demorou um bocado para vir — comentou o marquês com um sorriso.
— Ao contrário, vim direto.
— Perdão. Não me referi à duração de sua jornada, mas ao tempo que
demorou para decidir-se a vir.
— Fui retido por... — o sobrinho hesitou — vários negócios.
— Sem dúvida — replicou o polido tio.Enquanto os criados estavam presentes, eles se abstiveram de trocar outras
palavras. Quando o café foi servido e ficaram a sós, o sobrinho, fitando o tio e
encontrando os olhos naquele rosto que se assemelhava a uma máscara, abriu a
conversação.
— Eu voltei, senhor, como deve ter adivinhado, em razão do mesmo motivo
pelo qual parti. Esse motivo causoume um grande e inesperado perigo. Contudo,
trata-se de um motivo sagrado e, se me tivesse conduzido à morte, penso que me
teria sustentado.
— À morte, não — retorquiu o tio. — Não é necessário dizer “à morte”.
— Eu duvido, senhor — retrucou o sobrinho —, que, caso me tivesse
conduzido à beira extrema da morte, o senhor teria estendido a mão para me
deter.
As profundas marcas no nariz, e a extensão das finas e estreitas linhas da
face cruel, pareceram sinistras diante dessa afirmação. O tio esboçou um
gracioso gesto de protesto, que, por ser obviamente apenas um sinal de boa
educação, não o tranqüilizou.
— Na verdade — prosseguiu o sobrinho —, por tudo o que sei, o senhor pode
ter contribuído expressamente para conferir uma aparência mais suspeita às
circunstâncias que me cercavam.
— Não, não, não — o tio rebateu com amabilidade.
— Contudo, mesmo que assim tenha sido — concluiu o sobrinho, fitando-o
de relance com profunda desconfiança —, estou convicto de que sua diplomacia
teria me impedido a qualquer custo e sem quaisquer escrúpulos.
— Meu caro, eu o preveni — disse o tio, com uma ligeira pulsação nas duas
marcas. — Faça-me a gentileza de lembrar que eu o preveni, há muito tempo.
— Eu me lembro.
— Obrigado — agradeceu o tio com muita doçura.
Sua voz pairou no ar, quase como o som de um instrumento musical.
— Na verdade — continuou o sobrinho —, acredito que tenha sido a sua má
sorte, e a minha boa fortuna, que me mantiveram longe da prisão aqui na França.
— Eu não compreendo em absoluto — replicou o tio, sorvendo um gole de
café. — Seria ousadia minha pedir-lhe que se explique?
— Creio que, se o senhor não houvesse caído em desgraça na corte e se não
estivesse encoberto por essa nuvem há alguns anos, uma carta de cachet me teria
enviado para alguma fortaleza por tempo indeterminado.
— É possível — concordou o tio com grande serenidade. — Em defesa da
honra da família, eu poderia tê-lo incomodado a esse ponto. Rogo-lhe que me
perdoe!
— Percebo que, felizmente para mim, a recepção de anteontem foi, como
de hábito, muito fria — observou o sobrinho.
— Em seu lugar, eu não diria “felizmente”, meu caro — retrucou o tio com
refinada cortesia. — Eu não estaria tão certo disso. Uma boa oportunidade para
reflexão, cercado pelas vantagens da solidão, poderia influenciar seu destino de
modo mais vantajoso do que você é capaz de imaginar. Todavia, é inútil discutir a
questão. Eu estou, como você mencionou, em desvantagem. Esses pequenos
instrumentos de correção, esses gentis socorros ao poder e honra das famílias,esses insignificantes favores que podem incomodálo tanto, só se podem obter
agora por meio de importunações e de interesse. Tantos os procuram, e tão
poucos (comparativamente) os obtêm! Não era assim antes, mas a França, sob
esse aspecto, mudou para pior. Nossos ancestrais não muito distantes detinham o
poder de vida e morte sobre seus inferiores. Deste mesmo aposento, quantos
patifes não saíram rumo ao patíbulo! No quarto ao lado (onde durmo), um
sujeito, para seu conhecimento, foi apunhalado ao proferir algumas insinuações
impertinentes sobre a filha dele[116]. Filha dele!? Nós temos perdido muitos
privilégios. Uma nova filosofia[117] tornou-se moda, bem como a afirmação de
que nossa posição, nos dias de hoje, poderia (não vou tão longe a ponto de dizer
que “poderá”, preferindo esse “poderia”) causar-nos grandes problemas. As
coisas vão mal, muito mal!
O marquês aspirou uma pitada de rapé e sacudiu a cabeça, tão
elegantemente desanimado quanto o decoro lhe permitia em relação a esse país
que, apesar de tudo, ainda contava com um filho tão ilustre, o que lhe dava
grandes esperanças de regeneração.
— De tal forma nossa posição foi defendida no passado e ainda o é agora —
comentou o sobrinho em tom soturno — que eu receio que nosso nome seja mais
detestado do que qualquer outro na França.
— Esperemos que sim — retrucou o tio. — O ódio pelos superiores é a
homenagem involuntária que lhes prestam os inferiores.
— Não existe um rosto sequer — prosseguiu o sobrinho —, em toda a
redondeza, que me fite com respeito. Nesses semblantes vejo apenas uma
lúgubre deferência resultante do medo e da escravidão.
— Um cumprimento — rebateu o tio — à grandeza de nossa família,
merecida pelo modo como temos conseguido mantê-la. Hah! — ele aspirou
outra pitada de rapé e cruzou as pernas. Entretanto, quando o sobrinho, apoiando
um cotovelo sobre a mesa, cobriu os olhos desalentadamente com a mão, a
máscara contemplou-o de viés com uma forte mistura de agudeza, rigor e
aversão, incompatível com a sua assumida indiferença.
— A repressão constitui a única filosofia perdurável. A lúgubre deferência
resultante do medo e da escravidão, meu caro — argumentou o marquês —, é o
que garantirá a obediência dos animais ao chicote enquanto este teto — ele olhou
para cima — ocultar o céu.
O que poderia equivaler a um período bem menor do que supunha o
marquês. Se lhe mostrassem, naquela noite, uma pintura de como o castelo seria
poucos anos mais tarde, ele teria dificuldade em reconhecer como suas aquelas
sinistras, carbonizadas e saqueadas ruínas[118]. Quanto ao teto de que acabara de
vangloriar-se, este talvez continuasse a ocultar o céu de outra forma; isto é, para
sempre, dos olhos dos corpos atingidos pelo próprio chumbo[119], disparados dos
canos de cem mil mosquetes.
— Enquanto isso — asseverou o marquês —, eu preservarei a honra e a
tranqüilidade da família, mesmo que você não o faça. Mas você deve estar
exausto. Não acha melhor encerrarmos nossa conversa por hoje?
— Uma momento mais, por favor.
— Uma hora inteira, se lhe agradar.— Senhor — declarou o sobrinho —, nós cometemos muitos erros e estamos
colhendo os frutos.
— Nós cometemos muitos erros? — repetiu o marquês com um sorriso
inquisitivo, apontando delicadamente primeiro para o sobrinho e, em seguida,
para si mesmo.
— Nossa família. Nossa honrada família, cuja honra significa tanto para nós
dois, embora de maneiras distintas. Mesmo no tempo de meu pai, cometeram-se
erros graves, que atingiram cada ser humano que se interpôs entre nós e nosso
prazer. Por que devo referir-me ao tempo de meu pai, quando é também o seu?
Posso separar de meu pai seu irmão gêmeo, co-herdeiro e sucessor?
— A morte já o fez — comentou o marquês.
— E me deixou — rebateu o sobrinho — ligado a um sistema que me
assusta, responsável por ele, mas sem nenhum poder sobre ele. Esforçando-me
para executar o último desejo proferido pelos lábios de minha querida mãe e
obedecer ao seu último olhar, que me implorava piedade e reparação, e
torturando-me com a busca inútil de auxílio e poder para fazê-lo.
— Se os buscar em mim, meu sobrinho — disse o marquês, tocando-lhe o
peito com o dedo indicador. Ambos achavam-se, agora, junto da lareira —,
asseguro-lhe de que jamais os encontrará.
Cada linha fina que se destacava na palidez de seu rosto era cruel e astuta.
Ele contemplava serenamente o sobrinho, tendo na mão a pequena caixa de
rapé. Uma vez mais, tocou-lhe o peito como se seu dedo fosse a ponta afiada de
um espadim, com o qual, delicadamente, perfurar-lhe-ia o corpo, e disse:
— Meu caro, morrerei perpetuando o sistema sob o qual tenho vivido.
Ao pronunciar tais palavras, fez a derradeira aspiração de rapé e guardou a
caixa no bolso.
— É melhor agir como uma criatura racional — acrescentou, depois de
tocar a sineta que havia sobre a mesa — e aceitar seu destino. Mas receio que
esteja perdido, monsieur Charles.
— Esta propriedade e a França estão perdidas para mim — redargüiu o
sobrinho com tristeza. — Eu renuncio a ambas.
— E por acaso lhe pertencem, para que possa renunciar a elas? A França,
talvez... mas, esta propriedade? Mal vale a pena tocar no assunto, porém... ela já
lhe pertence?
— Não tive a menor intenção de reclamá-la agora. Se eu a herdar do
senhor, amanhã...
— O que tenho a vaidade de esperar que seja improvável.
— Ou daqui a vinte anos...
— É muita honra — aparteou o marquês. — Prefiro essa segunda suposição.
— Eu a abandonaria e viveria em outro lugar. Não é muito para se abrir
mão. Não passa de um aglomerado de miséria e ruína!
— Ha! — exclamou o marquês, lançando um olhar ao luxo que os rodeava.
— Pode parecer bonita, contudo se a examinarmos em sua inteireza, sob o
céu e à luz do dia, perceberemos que esta torre está desabando sob o peso da má
administração, de tantas extorsões, dívidas, hipoteca, opressão, miséria e
sofrimento.— Ha! — tornou a exclamar o marquês, com ar de satisfação.
— Se eu a herdar, haverei de confiá-la a mãos mais qualificadas para que
aos poucos a libertem (se isso ainda for possível) desse peso, para que o povo
miserável, que não pode abandoná-la e que há muito vem sendo oprimido até os
limites da resistência, possa, em outra geração, sofrer menos. Mas isso não é
para mim. Existe uma maldição em toda esta terra.
— E quanto a você? — indagou o tio. — Perdoe minha curiosidade, mas...
sob essa sua nova filosofia, de que pretende viver?
— Eu deverei fazer o que os meus compatriotas, mesmo com toda a
ascendência nobre, podem ter de fazer um dia: trabalhar.
— Na Inglaterra, por exemplo?
— Sim. A honra da família, senhor, está a salvo de mim nesse país. O bom
nome da família estará a salvo em qualquer país, uma vez que não mais o usarei.
Em conseqüência do toque da sineta, acenderam-se as luzes no aposento
contíguo, que agora refulgia através da porta. O marquês volveu o olhar para o
quarto e ouviu os passos do criado se afastando.
— A Inglaterra deve oferecer muitos atrativos para você, vendo quão pouco
prosperou ali — o tio observou, virando o calmo semblante para o sobrinho, com
um sorriso.
— Como já lhe disse, com relação à minha pouca prosperidade na
Inglaterra, parece-me que estou em débito com o senhor. De resto, lá é o meu
refúgio.
— Dizem, esses fanfarrões ingleses, que é o refúgio de muitos. Conhece um
compatriota que se refugiou lá? Um médico?
— Sim.
— Com uma filha?
— Sim.
— Sim — ecoou o marquês. — Você está fatigado, vá dormir. Boa noite! Ao
inclinar a cabeça do modo mais cortês, havia algo de secreto em sua face
sorridente, e ele conferiu um ar de mistério àquelas palavras, atingindo
poderosamente olhos e ouvidos do seu sobrinho. Ao mesmo tempo, as linhas finas
que lhe constituíam os olhos e os lábios, além das marcas no nariz, curvaram-se
com diabólico sarcasmo.
— Sim — repetiu o marquês. — Um médico com uma filha. Sim. Assim
começa a nova filosofia! Você está fatigado. Boa noite! Teria sido mais
proveitoso inquirir uma das faces de pedra da fachada do castelo do que
interrogar aquela que estava à sua frente. O sobrinho contemplou-o, em vão, ao
passar pela porta.
— Boa noite! — tornou a dizer o tio. — Será um prazer vê-lo novamente
pela manhã. Bom descanso! — virando-se para o criado que acabara de chegar,
ordenou: — Ilumine o caminho até os aposentos de meu sobrinho —
acrescentando para si mesmo: — E cuide para que ele arda em chamas em seu
leito, por favor.
O criado foi e voltou, e monsieur marquês andava de um lado para o outro
com seu roupão aberto, preparando-se gentilmente para dormir naquela noite
quente. Farfalhando pelo quarto, pisando sem barulho com suas chinelasdelicadas, ele movia-se como um tigre requintado: assemelhava-se a algum
marquês encantado do tipo malvado e impenitente, como na lenda, cuja
periódica transformação em tigre estivesse terminando — ou começando.
Ele ia de uma ponta à outra de seu voluptuoso quarto de dormir,
rememorando trechos de sua jornada que lhe assomavam espontaneamente à
lembrança: a lenta subida da colina no crepúsculo, o sol poente, a descida, o
moinho, a prisão no penhasco, a aldeia no vale, os camponeses na fonte e o
reparador de estradas apontando com o barrete azul a corrente sob o coche.
Aquela fonte evocava a de Paris, o pequeno embrulho jazendo sobre a mureta,
as mulheres curvadas sobre ele e o homem alto com os braços erguidos,
gritando: “Morto!”
— Sinto-me refrescado, agora — murmurou monsieur marquês. — Já posso
dormir.
Então, iluminado apenas pela luz bruxuleante que vinha da grande lareira,
ele deixou o cortinado fechar-se em torno de si e ouviu a noite romper o silêncio
com um longo suspiro ao se acomodar para dormir.
As pétreas faces das paredes externas contemplaram, cegas, a noite escura
durante três horas. Por três horas, os cavalos se agitaram nas cocheiras e a
coruja emitiu um som que em nada se assemelhava ao pio que os poetas lhe
atribuem. Contudo, é um obstinado costume dessas criaturas jamais fazerem o
que delas se espera.
Por três horas, as pétreas faces do castelo, as leoninas e as humanas,
contemplaram cegamente a noite. Uma escuridão mortal envolvia a paisagem e
silenciava ainda mais a silenciosa poeira das estradas. No cemitério, os pequenos
montes de grama ruim não se distinguiam uns dos outros; a imagem da cruz
tornara-se tão pouco visível que não era impossível que houvesse tombado. No
vilarejo, cobradores de impostos e contribuintes dormiam a sono solto. Sonhando,
talvez, com banquetes, como geralmente fazem os esfaimados, e com alívio e
descanso, como ocorre com os exauridos escravos e com os bois submetidos ao
jugo. Em sonhos, eram alimentados e libertos.
A fonte no vilarejo jorrava sem que a vissem ou ouvissem, e a fonte do
castelo também jorrava sem ser vista nem ouvida, ambas desaparecendo sem
que dessem pelo fato, como os minutos que se escoam com a areia de uma
ampulheta durante três sombrias horas. Então, as águas cinzentas das duas
começaram a brilhar fantasmagoricamente sob a luz, e os olhos das faces
pétreas do castelo se abriram.
Clareava cada vez mais, até que, por fim, o sol tocou o topo das árvores e
derramou sua radiância sobre as colinas. Sob aquele brilho, a água da fonte do
castelo parecia adquirir uma tonalidade purpúrea e as faces de pedra, um tom
carmesim. O canto dos pássaros surgiu alto e agudo e, no peitoril desgastado pelo
tempo da janela do quarto de monsieur marquês, um passarinho entoou seu canto
mais delicado. Ao ouvi-lo, a face pétrea mais próxima pareceu esgazear os olhos
de assombro e, com a boca aberta e a mandíbula caída, assumiu um aspecto
aterrorizado.
Agora, o sol terminara de nascer e o movimento no vilarejo iniciava-se. As
janelas de batente se abriram e ti-raram-se as travas das portas desconjuntadas.As pessoas saíram para a rua trêmulas de frio, enregeladas pelo ar novo e doce.
Então, os habitantes do vilarejo começaram sua raramente suave labuta diária.
Alguns dirigiram-se para a fonte; outros, para os campos. Homens e mulheres
cuidavam de suas parcas galinhas e conduziam suas esquálidas vacas para o
pasto ralo à beira da estrada. Na igreja e junto da cruz, uma ou duas pessoas se
ajoelhavam. Acompanhando aqueles que rezavam, uma vaca tentava devorar
algumas sementes espalhadas no chão à guisa de desjejum.
O castelo acordou mais tarde, como convinha à sua condição, despertando
gradualmente. Primeiro, os solitários chuços, espadas e facas de caça refulgiram
sob o sol da manhã como se fossem de ouro. Depois, portas e janelas se
escancararam, os cavalos nas cocheiras contemplaram por sobre os ombros a luz
que se filtrava pela entrada, as folhas cintilavam e farfalhavam nas grades de
ferro das janelas, os cachorros esticavam suas correntes, impacientes por serem
libertados.
Todos esses incidentes triviais pertenciam à rotina da vida e ao retorno do
dia. Seria possível, porém, dizer-se o mesmo do soar do grande sino do castelo,
ou da correria para cima e para baixo nas escadas, ou das figuras agitadas no
terraço, ou do rebuliço que passou a reinar por toda a parte, ou da urgência em
selar os cavalos e sair a galope?
Que ventos levavam essa pressa ao grisalho reparador de estrada, que já
trabalhava sobre uma pilha de pedras no alto da colina do outro lado do vilarejo,
com seu almoço (não era muito para carregar) embrulhado num mísero pacote
que nem aos corvos apetecia? Teriam os pássaros, transportando alguns grãos
dessa agitação, deixado cair um sobre ele? Se assim foi ou não, o fato é que o
reparador de estradas correu morro abaixo, na manhã abafada, como se disso
dependesse sua vida, envolto numa nuvem de poeira e sem se deter até alcançar
a fonte.
Todos os habitantes do vilarejo já se haviam ali reunido, conversando
baixinho, com seu jeito entristecido, não demonstrando, contudo, nenhuma
emoção além de surpresa e curiosidade mórbida. As vacas, apressadamente
recolhidas e amarradas em qualquer lugar, olhavam estupidamente ou deitavam-
se para ruminar o que haviam abocanhado durante o interrompido passeio e que
nem sequer compensava esse trabalho. Alguns homens do castelo, e também
alguns da estalagem, além de todas as autoridades ligadas à cobrança de
impostos, estavam armados, alguns mais, outros menos, e agrupados de forma
desordenada no outro lado da pequena rua, demonstrando a ansiedade de quem
não sabia o que fazer ou esperar. O reparador de estradas já se juntara a um
grupo de cinqüenta amigos e batia no peito com o barrete azul. O que significava
todo esse tumulto, e o que significava a rápida subida de monsieur Gabelle para a
garupa de um cavalo montado por um criado, e o transporte do dito Gabelle
(embora o cavalo estivesse duplamente carregado), a galope, como uma nova
versão da balada alemã de Leonora?[120]
Significava que havia mais uma face pétrea no Castelo.
A Medusa inspecionara novamente o edifício durante a madrugada, e
acrescentara a face de pedra que faltava. A face pétrea pela qual o castelo
esperara por longos duzentos anos.Ela jazia de costas sobre o travesseiro de monsieur marquês. Era uma
excelente máscara, iniciada com o terror, transformada em cólera, e finalmente
petrificada. Fincada bem fundo no coração da pétrea figura a ela ligada havia
uma faca, e envolvendo o seu cabo, um pedaço de papel, no qual estava
garatujado:
“Levem-no depressa para sua tumba. Da parte de JACQUES”. X. Duas Promessas
CAPÍTULO X
DUAS PROMESSAS
Outros meses, num total de doze, vieram e se foram. O senhor Charles Darnay
se estabeleceu na Inglaterra como professor de idioma francês versado em
literatura francesa. Em nossa época, ele teria sido um professor[121]; naquela,
porém, não passava de um preceptor. Lecionava para rapazes que encontravam
prazer e interesse pelo estudo de uma língua viva, falada no mundo inteiro, e
cultivava o seu gosto por aquele importante repositório de conhecimentos e
imaginação. Além disso, dava-lhes aulas num excelente inglês. Professores
como ele não se encontravam facilmente naqueles dias. Antigos príncipes e
futuros reis[122]ainda não faziam parte da classe dos educadores e nenhum
nobre arruinado[123] saíra ainda do livro-caixa do Tellson para trabalhar como
cozinheiro ou carpinteiro. Como preceptor, cujos métodos tornavam a vida dos
alunos agradável e proveitosa, e como tradutor, que trazia alguma coisa a seu
trabalho que não o mero conhecimento de dicionário, o jovem senhor Darnay
logo tornou-se conhecido e apreciado. Era, além disso, bem familiarizado com as
circunstâncias de seu país, as quais despertavam interesse sempre crescente.
Assim, com grande perseverança e incansável empenho, ele prosperou.
Em Londres, ele não esperara caminhar sobre calçadas de ouro[124] nem
deitar-se em leitos de rosas. Se houvesse acalentado tão elevada expectativa, não
teria prosperado.
Ao invés, esperara trabalho e o encontrara, e o realizara do melhor modo
possível. Nisso consistiu seu progresso.
Uma certa parte de seu tempo era passada em Cambridge, onde lecionava
para graduandos como uma espécie de contrabandista tolerado que mantinha seu
comércio escuso de línguas européias, em vez de transportar grego e latim
através da alfândega[125]. O resto do tempo ele passava em Londres.
Desde os dias em que era verão eterno no Éden até estes em que é quase
sempre inverno nas latitudes decaídas, o mundo dos homens tem seguido
invariavelmente uma direção, a direção tomada por Charles Darnay: o caminho
do amor por uma mulher.
Ele se apaixonou por Lucie Manette naquele momento em que sua vida
corria perigo. Jamais ouvira som mais doce e melodioso do que sua voz
compassiva; jamais vira rosto mais terno e bonito do que o dela quando
confrontou-se com o dele à beira do túmulo que lhe cavavam. Contudo, ainda
não lhe revelara seu amor. O assassinato no castelo distante, do outro lado do
canal e além das longas, longas e poeirentas estradas — o sólido castelo de pedraque se transformara na névoa de um sonho — acontecera um ano antes e, desde
então, ele nunca proferira uma só palavra a respeito de seus sentimentos para sua
amada.
Que ele tinha razões para isso, sabia muito bem. Era de novo um dia de
verão quando, tendo chegado tarde a Londres, voltando de suas ocupações em
Cambridge, virou a tranqüila esquina em Soho, visando a buscar uma
oportunidade de abrir seu coração ao doutor Manette. O dia de verão findava, e
ele sabia que Lucie estaria fora com a senhorita Pross.
Encontrou o doutor recostado numa poltrona junto da janela, lendo. A
energia que sustentara o médico durante os prolongados tormentos e lhe agravara
a agudeza se havia pouco a pouco restaurado. Ele era agora uma homem cheio
de vitalidade, dotado de grande firmeza de propósito, força de resolução e vigor
nas ações. Com as energias recuperadas, ele ainda por vezes se mostrava
repentinamente compulsivo, como ocorrera no início, no exercício das outras
faculdades recém-recobradas. Estas crises, porém, não eram observadas com
tanta freqüência e vinham-se tornando mais e mais raras.
Ele estudava mais, dormia menos, suportava a fadiga com facilidade e vivia
alegre. Diante dele, surgia agora Charles Darnay. Ao perceber sua chegada,
largou o livro e estendeu a mão.
— Charles Darnay! É um prazer vê-lo. Esperamos seu regresso há três ou
quatro dias. O senhor Stryver e Sydney Carton estiveram aqui ontem e
reclamaram que o senhor se ausenta mais do que o obrigam seus deveres.
— Eu lhes agradeço pelo interesse — Charles replicou com certa frieza à
menção dos dois, mas calorosamente em relação ao médico. — A senhorita
Manette...
— Vai bem — respondeu o doutor — e não tarda a alegrar-nos com sua
presença. Ela saiu para resolver um assunto doméstico qualquer.
— Doutor Manette, eu sabia que não a encontraria em casa. Resolvi
aproveitar sua ausência para pedir-lhe que me conceda alguns minutos. Eu...
gostaria de conversar com o senhor. Seguiu-se um silêncio desconcertado.
— Sim? — perguntou o doutor com evidente constrangimento. — Puxe uma
cadeira para cá e fale. Charles arrastou uma cadeira para perto do médico.
Falar, porém, parecia-lhe bem mais difícil.
— Eu... tenho a felicidade, doutor Manette, de ser amigo íntimo desta casa
— ele, por fim, começou — há já um ano e meio, e espero que o que lhe vou
dizer não abale...
O doutor ergueu a mão, interrompendo-o. Após um instante, recostou-se na
poltrona e indagou:
— É a respeito de Lucie?
— Sim.
— É difícil, para mim, falar a respeito dela em qualquer momento. É mais
difícil ainda, para mim, ouvir falarem sobre ela nesse tom, Charles Darnay.
— É um tom de fervorosa admiração, de sincero respeito e de profundo
amor, doutor Manette! — ele replicou com obsequiosidade.
Outro silêncio desconcertado antes que o pai dela retrucasse:
— Acredito. Faço-lhe justiça e acredito.Seu embaraço era tão manifesto, e também era tão manifesto que se
originava de sua relutância em abordar o assunto, que Charles Darnay hesitou.
— Posso prosseguir, senhor? Outro silêncio desconcertado.
— Sim, prossiga.
— O senhor antecipa as minhas palavras, mas não pode adivinhar com
quanta sinceridade eu as proferirei e com que profundidade eu as sinto, a menos
que conheça este segredo que guardo em meu coração, bem como as
esperanças, os temores e a ansiedade com que tenho guardado tal segredo.
Prezado doutor Manette, eu amo sua filha profundamente, terna, desinteressada e
devotadamente. Se existe amor no mundo, é o meu por ela. O senhor também já
amou. Deixe que esse antigo sentimento fale por mim! O médico virou o rosto e
baixou os olhos. Ao escutar as derradeiras palavras, ergueu a mão novamente,
agitado, e exclamou:
— Isso não, senhor! Esqueça! Eu lhe suplico, não me faça recordar!
Sua voz exprimia uma dor tão profunda e genuína que ecoou nos ouvidos de
Charles Darnay por longos segundos. O doutor moveu a mão, como se rogasse a
Darnay que fizesse uma pausa. Ele percebeu e permaneceu calado.
— Eu lhe peço que me perdoe — desculpou-se o doutor Manette, num tom
derrotado, após alguns momentos. — Não duvido de que o senhor ame Lucie,
creia-me.
Ele girou o corpo em sua direção, conquanto não voltasse a cabeça nem
erguesse os olhos. Apoiou o queixo na mão, os cabelos brancos ensombreando-
lhe a face.
— Já falou com Lucie?
— Não.
— Nem lhe escreveu?
— Nunca.
— Não seria generoso fingir ignorar que sua reserva é uma deferência para
com o pai dela. O pai dela agradece. O médico estendeu-lhe a mão, mas não o
fitou.
— Eu sei — disse Darnay reverentemente —, como poderia deixar de sabê-
lo, doutor Manette, vendo-os juntos dia após dia, que entre o senhor e sua filha
existe uma afeição tão extraordinária, tão comovente, tão ligada às
circunstâncias das quais se nutre, que não há paralelos sequer entre um pai e uma
criança. Eu sei, doutor Manette, como poderia deixar de sabê-lo, que, misturados
ao afeto e à obediência de uma filha adulta, existe, no coração dela, um amor e
uma confiança infantis pelo senhor. Eu sei que, tendo passado a infância sem o
carinho dos pais, ela agora devota ao senhor toda a lealdade e fervor não só de
sua idade atual, mas também dos primeiros e solitários anos de sua vida.
Compreendo perfeitamente bem que o senhor, sendo-lhe devolvido como se
houvesse ressurgido dos mortos, assumiu um caráter quase sagrado perante seus
olhos, o que não ocorreria se jamais se tivessem separado. Compreendo tudo isso
quando a vejo enlaçar-lhe o pescoço com mãos de um bebê, de uma menina e
de uma mulher, todas ao mesmo tempo. Compreendo que, ao amá-lo, ela vê e
ama a mãe na idade dela, vê e ama o senhor na minha idade, ama a
desventurada mãe e o ama através de seu terrível tormento e de sua abençoadarecuperação. Compreendo tudo isso desde que passei a freqüentar esta casa.
O pai ouviu em silêncio, de cabeça baixa. Sua respiração acelerara-se um
pouco. Afora esse detalhe, entretanto, não havia outros sinais de agitação.
— Prezado doutor Manette, sabendo desses fatos desde o começo, desde o
começo observando-os iluminados pela mesma luz santificada, eu evitei falar dos
meus sentimentos, evitei por mais tempo do que permite a natureza humana. Eu
senti, e ainda sinto, que interpor o meu amor entre o senhor e ela seria o mesmo
que tocar sua história com algo inferior a ela. Mas eu a amo. O céu é testemunha
do quanto a amo!
— Acredito — respondeu o pai em tom lamentoso. — Eu já havia
percebido.
— Contudo, não pense — continuou Darnay, para quem
o tom lamentoso parecera uma censura — que, se a sorte me agraciar com
a felicidade de desposar a senhorita Manette, eu causarei uma separação entre
ambos, dou-lhe minha palavra. Além de saber que seria inútil tentar, seria uma
baixeza imperdoável. Se houvesse essa possibilidade, mesmo num futuro remoto,
abrigada em meus pensamentos ou oculta em meu coração, eu não poderia
agora apertar sua honrada mão.
Darnay segurou-lhe a mão ao dizer isso.
— Não, meu caro doutor Manette. Como o senhor, exilei-me
voluntariamente da França. Como o senhor, afasteime de nosso país em
conseqüência de seu desvario, sua opressão e miséria. Como o senhor, esforço-
me para viver por meus próprios meios, confiando num futuro melhor. Desejo
apenas partilhar a minha vida com vocês e ser-lhes fiel até a morte. Não
pretendo disputar com sua filha o privilégio de tê-lo como pai, companheiro e
amigo. Ao contrário, gostaria de aproximá-la ainda mais do senhor, se possível.
Sua mão ainda tocava a do pai de Lucie. Depois de responder a esse toque
por um breve instante, sem frieza, ele pousou as mãos sobre os braços da
poltrona e fitou-o pela primeira vez desde o início da conversa. Em seu
semblante estampava-se uma batalha. Uma batalha contra aquela expressão
ocasional que tendia a conferir-lhe um aspecto envelhecido e sombrio.
— Fala com sensibilidade e hombridade, Charles Darnay, e lhe agradeço
muito por isso. Eu lhe abrirei meu coração, ou, ao menos, tentarei. Existe algum
motivo que o leve a crer que Lucie o ama?
— Nenhum. Até agora, nenhum.
— O senhor espera que lhe dê algum conselho?
— De forma alguma, senhor. Apenas imaginei que o senhor teria o poder de
orientar-me, se lhe parecesse correto.
— Então, o senhor espera alguma coisa de mim! Uma promessa, talvez...
— É verdade, senhor.
— O quê?
— Percebo que, sem o senhor, eu não tenho a menor esperança. Percebo
que, mesmo se a senhorita Manette me abrigasse em seu inocente coração, não
pense que eu alimente tal presunção, eu não teria lugar em sua vida sem o amor
do pai dela.
— E se for o contrário? Já pensou nisso?— Penso que uma só palavra de seu pai em favor de um pretendente a
influenciaria de modo decisivo. Por essa razão, doutor Manette — disse Darnay,
modesta porém firmemente —, eu não lhe pediria que intercedesse por mim,
nem que disso dependesse minha vida.
— Estou certo que não. Charles Darnay, os mistérios surgem tanto entre as
pessoas mais íntimas quanto entre as mais distantes. No primeiro caso, eles são
sutis e delicados, difíceis de deslindar. Minha filha Lucie é, sob esse aspecto, um
completo mistério para mim. Não faço a menor idéia sobre o que se passa em
seu coração.
— Posso perguntar-lhe, senhor, se julga que ela... Ao vê-lo hesitar, o pai
complementou:
— Se ela tem outro pretendente?
— Exato, era a isso que me referia. O pai refletiu um pouco antes de
responder:
— O senhor já encontrou o senhor Carton aqui. O senhor Stryver também
nos visita de vez em quando. Se houver outro pretendente, tem de ser um dos
dois.
— Ou ambos — ponderou Darnay.
— Não creio. Como também não creio que qualquer um deles lhe faça a
corte. Mas, o senhor disse que deseja uma promessa minha. Não vai contar-me
do que se trata?
— Pois bem. Se a senhorita Manette, um dia, fizer-lhe confidências como as
que lhe faço hoje, eu apreciaria que o senhor lhe revelasse o que ouviu de mim e
lhe assegurasse que acreditou em minhas palavras. Espero merecer a sua estima
o bastante para que não advogue contra mim. É tudo quanto espero. Agora, o
senhor pode estipular as condições a que tem direito e eu as aceitarei de bom
grado.
— Tem a minha promessa — assentiu o doutor —, sem quaisquer condições.
Confio na pureza de seus sentimentos e na sinceridade de suas palavras. Acredito
que sua intenção seja a de perpetuar, e não a de enfraquecer, os laços que me
ligam à outra e querida parte de mim mesmo. Se ela algum dia me disser que o
senhor é essencial à sua felicidade, eu lhes darei as minhas bênçãos. Se houvesse,
Charles Darnay, se houvesse... O médico interrompeu-se e Charles segurou-lhe a
mão com gratidão. Após uma pausa ele prosseguiu:
— Se houvesse quaisquer suposições, ou razões, ou temores, qualquer coisa,
recente ou antiga, contra o homem que Lucie realmente amasse, desde que ele
não fosse o responsável direto por isso, tudo deveria ser apagado pelo bem dela.
Minha filha representa mais para mim do que o sofrimento, do que os erros, do
que... Bem! Já falei em demasia.
Tão estranho foi o modo como ele mergulhou no silêncio, e tão estranho se
tornou seu olhar quando se calou, que Darnay sentiu a própria mão enregelar-se
sob a mão dele, que lentamente se soltou e afastou.
— O senhor, porém, disse alguma coisa — o doutor Manette rompeu o
mutismo, sorrindo. — O que foi mesmo que o senhor me disse?
Ele ficou confuso por um instante, sem saber como responder, até lembrar-
se de que fizera menção a confidências. Aliviado por recordar o detalhe,replicou:
— Sua confiança em mim deve ser retribuída com igual confiança. Meu
nome atual, embora seja o de minha mãe com apenas uma ligeira alteração, não
é, como se lembrará, o meu verdadeiro nome. Gostaria de revelá-lo ao senhor,
bem como o motivo por que vim para a Inglaterra.
— Cale-se! — exclamou o doutor de Beauvais.
— Gostaria de, para merecer sua confiança, não guardar qualquer segredo
do senhor.
— Cale-se!
Por um momento, o doutor tampou os ouvidos com as mãos. Por outro
momento, pousou-as sobre os lábios de Darnay.
— Conte-me apenas quando eu lhe perguntar, não agora. Se sua pretensão
prosperar, se Lucie o amar, o senhor me contará na manhã do seu casamento.
Promete?
— De bom grado.
— Dê-me sua mão. Ela em breve voltará e é melhor que não nos encontre
aqui conversando esta noite. Vá! Deus o abençoe!
Já estava escuro quando Charles Darnay o deixou, e ainda mais escuro
quando Lucie regressou, uma hora mais tarde. Ela entrou na sala, apressada e
sozinha, pois a senhorita Pross subira direto para seu aposento, e surpreendeu-se
ao encontrar a poltrona de leitura de seu pai vazia.
— Papai! — chamou-o. — Pai querido!
Nada foi dito em resposta, mas ela ouviu o ruído de marteladas no quarto
dele. Atravessando rapidamente o quarto intermediário, olhou pela porta e
retornou correndo, em prantos, assustada, sentindo o sangue gelar nas veias.
— O que farei? O que farei?
Sua incerteza só durou um instante. Correu de volta, bateu na porta e
chamou-o com suavidade. O barulho cessou ao som de sua voz e ele aproximou-
se dela. Os dois caminharam de um lado para o outro por um longo tempo.
Lucie levantou-se da cama diversas vezes, durante a noite, para vigiar-lhe o
sono. Ele dormia pesadamente. As ferramentas de sapateiro, e seu antigo
trabalho inacabado, estavam no lugar de sempre. XI. Uma Decisão
CAPÍTULO XI
UMA DECISÃO
— Sydney — disse o senhor Stryver, naquela mesma noite, ou manhã, a seu
chacal —, misture outra jarra de ponche. Tenho algo a lhe revelar.
Sydney havia trabalhado em dobro naquela noite, e na noite anterior, e na
noite anterior àquela, e em bom número de noites em sucessão, num grande
esforço por organizar os papéis do senhor Stryver antes do início do longo recesso
forense[126]. O serviço, por fim, completara-se. As tarefas atrasadas do senhor
Stryver foram eficientemente colocadas em dia; estavam livres de tudo até
novembro chegar com suas perturbações atmosféricas e legais[127], trazendo os
peixes de volta para a rede deles.
Sydney não estava a pessoa mais animada, tampouco a mais sóbria, para
tanto empenho. Foi necessária uma quantidade adicional de toalhas molhadas
para ajudá-lo a atravessar a noite. Uma correspondente quantidade extra de
vinho havia precedido as toalhas, de forma que ele se encontrava em condições
bastante precárias naquele momento em que removia o turbante e atirava-o na
bacia onde o mergulhara tantas vezes nas últimas seis horas.
— Está preparando outra jarra de ponche? — indagou Stryver, o majestoso,
com as mãos apoiadas no cós, olhando em torno do divã onde se deitara.
— Estou.
— Ande logo! Eu vou revelar-lhe algo que o surpreenderá e que o levará,
talvez, a pensar que não sou tão esperto quanto você supõe. Tenho a intenção de
casar-me.
— Tem?
— Sim. E não por dinheiro. O que me diz disso?
— Não me sinto inclinado a dizer muito. Quem é ela?
— Adivinhe.
— Eu a conheço?
— Adivinhe.
— Não me peça para adivinhar nada às cinco horas da manhã, com meus
miolos fritando e estalando dentro da cabeça. Se quer que eu adivinhe, ofereça-
me um jantar.
— Está bem, então. Eu lhe contarei — replicou Stryver, mudando
lentamente para a posição de sentado. — Sydney, eu quase desisto de fazer-me
inteligível para você, que é tão insensível como um animal.
— E você — retrucou Sydney, ocupado com o preparo do ponche — tem
uma alma tão sensível e poética.— Ora, vamos! — rebateu Stryver, rindo com fanfarrice. — Embora não
pretenda reivindicar a condição de alma romântica (considero-me vivido demais
para isso), eu ainda sou um tipo de pessoa mais afetuosa que você.
— Mais afortunada, se é o que quer dizer.
— Não é o que quero dizer. O fato é que eu sou um homem mais... mais...
— Cavalheiresco, quando lhe interessa — sugeriu Carton.
— Perfeito! Cavalheiresco. Eu queria dizer que sou um homem — afirmou
Stryver, enfatuando-se diante do amigo, que misturava o ponche — que gosta
mais de ser agradável, que se esforça mais para ser agradável, que sabe melhor
como ser agradável, na presença de mulheres, do que você.
— Continue — provocou-o Sydney Carton.
— Não. Antes de continuar — volveu Stryver, sacudindo a cabeça com seu
jeito autoritário —, eu preciso esclarecer um ponto com você. Tanto quanto eu,
ou até mais, você tem visitado a casa do doutor Manette. Ora, eu me envergonho
da rabugice que você demonstra quando está lá! Suas maneiras têm sido as de
um patife silencioso e malhumorado. Por Deus, eu juro que me envergonho de
você, Sydney!
— Seria realmente benéfico para um homem com sua conduta no tribunal
envergonhar-se de alguma coisa — respondeu Sydney. — Você devia
agradecer-me.
— Você não se esquivará tão facilmente do assunto — redargüiu Stryver,
empurrando-lhe de volta a réplica. — Não, Sydney, é meu dever dizer-lhe, e eu
lhe digo face a face, em seu próprio benefício, que você é um sujeito execrável
e irascível no trato com as mulheres. Você é uma pessoa desagradável.
Sydney bebeu um gole do ponche que acabara de preparar e riu.
— Olhe para mim! — disse Stryver, aprumando-se. — Eu tenho menos
necessidade de fazer-me agradável do que você, graças à posição que desfruto.
Por que me empenho, então?
— Eu ainda não o vi empenhar-se — resmungou Carton.
— Eu me empenho por uma questão de política, por princípios. E olhe para
mim! Vou prosseguir.
— Você interrompeu o relato acerca de suas intenções matrimoniais —
aparteou Carton com ar negligente. — Gostaria que falasse mais a esse respeito.
Quanto a mim... será que jamais entenderá que sou incorrigível? Ele formulou a
pergunta com um certo desprezo.
— Você não tem o direito de ser incorrigível — foi a resposta do amigo,
proferida em tom não muito tranqüilizador.
— Não tenho o direito de ser coisa alguma, que eu saiba — replicou Sydney
Carton. — Quem é a dama?
— Bem... não se deixe abater pelo que vou anunciar, Sydney — advertiu-o
o senhor Stryver, preparando-o com ostensiva cordialidade para a descoberta
que em breve faria —, porque eu sei que você não quer dizer metade do que diz.
E, se quisesse, não teria a menor importância. Elaborei este pequeno preâmbulo
porque, certa vez, você se referiu à jovem dama com termos depreciativos.
— Eu fiz tal coisa?
— Certamente. E nestes aposentos. Sydney Carton contemplou o ponche e,em seguida, fitou o complacente amigo. Bebeu o ponche e fitou-o novamente.
— Você se referiu à jovem dama como uma “boneca de cabelos
dourados”. A jovem é a senhorita Manette. Se você possuísse um mínimo de
sensibilidade ou delicadeza de sentimentos nessa espécie de coisas, Sydney, eu
poderia ter me ressentido um pouco pelo seu emprego de tal designação. Mas
você não possui. Falta-lhe qualquer sentimento dessa natureza. Portanto, não
estou mais aborrecido, quando pen-so na expressão que usou, do que estaria com
a opinião de um homem destituído de sensibilidade artística acerca de um quadro
meu, ou a de um homem sem ouvido acerca de uma música composta por mim.
Sydney Carton tomava o ponche com grande velocidade. Engolia copos
sucessivos, fitando o amigo.
— Agora você já sabe de tudo, Sydney — concluiu Stryver. — Eu não me
preocupo com dinheiro. A senhorita Manette é uma criatura encantadora, e eu já
me decidi a agradar a mim mesmo. Em suma, creio que posso agradar a mim
mesmo. Minha noiva terá em mim um homem já bem posto na vida e em rápida
ascensão, um homem de alguma distinção. É uma sorte para ela, contudo estou
convicto de que a merece. Está surpreso?
Carton, ainda bebendo o ponche, retrucou:
— Por que eu deveria estar surpreso?
— Você aprova? Carton, ainda bebendo o ponche, retrucou:
— Por que eu não deveria aprovar?
— Ótimo! — exclamou seu amigo Stryver. — Você recebeu a notícia
melhor do que eu esperava, e mostrou-se menos mercenário em meu benefício
do que imaginei. Embora, é claro, você já saiba, a essa altura, que seu antigo
companheiro é um homem dotado de grande força de vontade. Sim, Sydney, já
tive o bastante deste estilo de vida, sem nenhum outro para variar. Eu sinto que é
prazeroso para um homem possuir um lar para aonde ir quando desejar (se não
desejar, pode permanecer longe), e sinto que poderei contar com a senhorita
Manette em qualquer situação, que terei sempre sua confiança. Assim, tomei a
decisão. E agora, Sydney, meu velho, quero dizer algumas palavras a você sobre
as suas perspectivas. Está indo pelo mau caminho, como sabe. Está realmente
indo pelo mau caminho. Não conhece o valor do dinheiro, vive precariamente...
dessa maneira, acabará por esgotar-se. E terminará doente e pobre. Devia
considerar a possibilidade de arranjar alguém que cuide de você.
A arrogante condescendência com que o aconselhou o fez parecer duas
vezes maior do que era na realidade, e quatro vezes mais ofensivo.
— Agora, recomendo-lhe que encare a vida — prosseguiu Stryver. — Eu a
tenho encarado, a meu modo. Encarea, a seu modo. Case-se. Encontre alguém
para cuidar de você. Não se preocupe por não ter prática em lidar com as
mulheres, por não as compreender, por não possuir tato com elas. Encontre
alguém. Encontre uma mulher respeitável com
uma pequena propriedade, talvez uma estalajadeira, e despose-a, para
proteger seu futuro. Esse é o tipo de coisa que serve para você. Reflita sobre o
assunto, Sydney.
— Pensarei sobre isso — respondeu Sydney.XII. Um Homem Sensível e Delicado
CAPÍTULO XII
UM HOMEM SENSÍVEL E DELICADO
O senhor Stryver, tendo tomado a magnânima decisão de fazer à filha do médico
a concessão de desposá-la, resolveu tornar pública a felicidade da jovem antes
de deixar a cidade para gozar as longas férias forenses. Depois de debater
mentalmente o assunto, chegou à conclusão de que seria conveniente terminar
logo a etapa preliminar, após a qual ele determinaria se lhe daria a mão uma
semana ou duas antes da reabertura dos Tribunais — para o período de
Michaelmas — ou durante as curtas férias de Natal[128], entre esse período e o
de Hilary.
Não tinha a menor dúvida de que aquela causa já estava ganha, vendo
claramente a tramitação de todo o processo até o veredicto. Demonstradas ao
júri as substanciais premissas mundanas, as únicas que valiam a pena
demonstrar, o caso não ofereceria nenhum problema. Ele se apresentaria como
o autor da causa, seria dispensado de juntar provas ou argüir testemunhas, a
defesa se absteria de qualquer pronunciamento e os jurados nem sequer se
dariam ao trabalho de ponderar antes de o brindarem com uma decisão
favorável. Stryver, o eminente advogado, estava satisfeito com a simplicidade do
caso que tinha diante de si.
Conseqüentemente, o senhor Stryver iniciou as longas férias convidando
formalmente a senhorita Manette para passear nos Jardins Vauxhall. Recusado o
convite, ele propôs levá-la a Ranelagh[129]. Inexplicavelmente recusada
também essa proposta, ele deliberou visitar a casa do Soho e lá declarar suas
nobres intenções.
Em direção ao Soho, pois, o senhor Stryver abria com os ombros seu
caminho através de Temple Bar, ainda animado com a perspectiva das
prolongadas férias que se estendiam à sua frente. Quem o visse movendo-se com
determinação rumo ao Soho, conquanto ainda estivesse em Temple Bar, do lado
da igreja de Saint Dunstan[130], arrojando-se em seu estilo característico pelas
calçadas, esbarrando e empurrando os transeuntes mais fracos, perceberia que
homem forte e seguro era ele.
Ao passar pelo Banco Tellson, do qual era cliente, e conhecendo o senhor
Lorry como o amigo íntimo dos Manette, ocorreu ao senhor Stryver a idéia de
entrar e revelar ao banqueiro o brilhante horizonte que se descortinava perante
Lucie. Assim, empurrou a porta rangente, saltou os dois degraus, passou pelos
dois velhos empregados e dirigiu-se ao sombrio e bolorento escritório nos fundos,
onde encontrou o senhor Lorry cercado por grandes livros repletos de cifras,sentado à escrivaninha ao lado de uma janela com barras de ferro
perpendiculares, dando a impressão de destinar-se a ser também preenchida
com números, como se tudo sob as nuvens se reduzisse a contas.
— Olá! — interrompeu-o o senhor Stryver. — Como vai? Espero que esteja
bem!
A grande característica de Stryver era que ele sempre parecia demasiado
grande para qualquer ambiente. Ele era tão excessivamente corpulento para o
Tellson que os velhos empregados que trabalhavam nos cantos mais afastados da
sala fitaram-no com ar de protesto, como se sua vultosa presença os
constrangesse ainda mais contra as paredes. A própria “Casa”, lendo
magnificentemente o jornal, lançou-lhe um olhar de desgosto e censura.
A voz discreta do senhor Lorry redargüiu, num exemplo de voz que ele teria
recomendado para aquela circunstância:
— Como vai, senhor Stryver? — e apertou-lhe a mão. Havia algo de
peculiar naquele aperto de mão, algo que se observava todas as vezes em que os
empregados apertavam as mãos dos clientes diante da “Casa”. Era um modo
abnegado, como se Tellson & Cia., e não um de seus funcionários, apertasse a
mão. — Em que lhe posso ser útil, senhor Stryver? — indagou em tom
profissional.
— Ora essa, em nada. Trata-se de uma visita social, senhor Lorry. Na
verdade, gostaria de falar-lhe em particular.
— Oh, é mesmo? — o senhor Lorry replicou, aguçando os ouvidos enquanto
seu olhar se afastava na direção da “Casa”.
— Eu pretendo — começou a revelar o senhor Stryver, apoiando os braços
sobre a escrivaninha com ar confidencial. Em conseqüência, a mesa, malgrado
suas amplas dimensões, pareceu não ter metade do tamanho necessário para o
advogado —, eu pretendo oferecer-me em casamento à sua encantadora
amiguinha, a senhorita Manette.
— Não diga! — exclamou o senhor Lorry, coçando o queixo e fitando seu
visitante com aparência de dúvida.
— Não diga, senhor?! — ecoou Stryver, distanciandose ligeiramente. — O
que significa esse “não diga”, senhor Lorry?
— Significa que... — respondeu o homem de negócios
— que, claro, como seu amigo, aprecio sua iniciativa, a qual muito o honra
e... em suma, significa o que desejar. Contudo... realmente, o senhor sabe, senhor
Stryver... — o senhor Lorry fez uma pausa, sacudindo a cabeça de forma
estranha, como se lutasse para refrear o ímpeto de acrescentar: “o senhor sabe
que esse casamento está muito além do que pode ambicionar”.
— Bem — suspirou Stryver, batendo no tampo da escrivaninha com sua
contenciosa mão e arregalando os olhos —, se compreendi as suas entrelinhas,
senhor Lorry, não disponho da menor chance.
O senhor Lorry ajustou a curta peruca sobre as orelhas e mordiscou a pena
da caneta.
— Em sua opinião — declarou Stryver —, não sou um pretendente
aceitável.
— Mas, não! É claro que o senhor é aceitável! — retrucou o senhor Lorry.— Se o senhor se considera aceitável, então é aceitável.
— Não sou um homem próspero? — indagou Stryver.
— Oh! Se atingiu a prosperidade, então é próspero — ponderou o senhor
Lorry.
— E em ascensão?
— Se vem ascendendo, como sabe — replicou o senhor Lorry, deliciado por
poder concordar de novo —, ninguém pode duvidar.
— Então, o que diabos significa a sua reação, senhor Lorry? — inquiriu
Stryver, visivelmente abatido.
— Ora! Eu... o senhor está a caminho da casa dos Manette agora? — o
senhor Lorry perguntou.
— Exato — confirmou Stryver, aplicando um murro sobre a escrivaninha.
— Eu não iria lá, se fosse o senhor.
— Por quê? — questionou Stryver. — Exijo que não falte com a verdade —
ordenou-lhe em tom forense, erguendo um dedo em sua direção. — O senhor é
um homem de negócios e sempre age de acordo com os motivos. Declare o seu
motivo. Por que, em meu lugar, não iria à casa do doutor Manette?
— Porque eu não levaria em frente um empreendimento dessa natureza —
respondeu o senhor Lorry — se não tivesse razões para acreditar nas minhas
possibilidades de êxito.
— Com todos os diabos! — bradou Stryver. — Isso acaba com as minhas
esperanças.
O senhor Lorry relanceou os olhos para a “Casa” e tornou a fitar o irado
Stryver.
— O senhor é um homem de negócios, de certa idade, um homem
experiente em assuntos comerciais — argumentou o advogado. — Eu lhe pedi
para enunciar alguns motivos que me impedissem de pedir a mão da senhorita
Manette e o senhor admitiu não haver nenhum! E o admitiu com toda a
convicção! — o senhor Stryver observou, como se a admissão tivesse sido bem
menos digna de nota se feita sem convicção.
— Quando me refiro a êxito, refiro-me a êxito junto à dama em questão. E
quando me refiro a causas e motivos para o êxito, refiro-me a causas e motivos
que possam sugerir os sentimentos dela. A jovem dama, meu bom senhor —
ponderou o senhor Lorry, dando pequenas e suaves pancadas no braço de Stryver
—, a jovem dama. Ela vem em primeiro lugar.
— Então, o senhor está insinuando, senhor Lorry — ripostou Stryver,
endireitando os cotovelos —, que sua opinião deliberada é a de que a jovem
dama em questão não passa de uma tola mimada?
— Não exatamente. O que quero dizer, senhor Stryver — replicou o senhor
Lorry, corando —, é que não consentirei que falem sobre essa jovem de forma
desrespeitosa na minha presença. E que, se eu conhecesse algum homem, e
espero não conhecer nenhum, que tivesse tanto mau gosto e cujo temperamento
fosse tão intolerável que ele não se pudesse abster de falar desrespeitosamente
sobre essa jovem dama diante da minha escrivaninha, nem mesmo os meus
deveres para com o Tellson me impediriam de lhe dar uma boa lição. A
necessidade de expressar sua raiva num tom contido fazia ferver perigosamentenas veias o sangue do senhor Stryver. O sangue do senhor Lorry, que de hábito
corria metodicamente pelas veias, não se encontrava em melhor estado.
— Era isso o que eu queria dizer, senhor — concluiu o senhor Lorry. —
Peço-lhe que não me entenda mal.
O senhor Stryver apanhou uma régua de sobre a mesa e mordiscou-lhe a
ponta. Em seguida, bateu com ela nos dentes com tal força que seria impossível
não se ter machucado. Por fim, rompeu o silêncio constrangedor ao afirmar:
— Tudo isso é novidade para mim, senhor Lorry. O senhor deliberadamente
aconselhou-me a não ir ao Soho apresentar-me como pretendente... aconselhou a
mim, Stryver, advogado famoso no Tribunal Superior de Justiça?[131]
— Não pediu a minha opinião?
— Sim, senhor.
— Muito bem. Eu lhe dei a minha opinião e o senhor a repetiu corretamente.
— Só o que posso comentar a respeito — retrucou o advogado com um riso
forçado — é que... ha, ha! Nunca houve nem haverá absurdo maior.
— Compreenda-me, por favor — contemporizou o senhor Lorry. — Como
homem de negócios, não me sinto à vontade para externar qualquer opinião a
esse respeito, pois não entendo desses assuntos. Contudo, na qualidade de um
velho amigo, que carregou a senhorita Manette nos braços, que merece a
confiança dela e a de seu pai, e que lhes dedica uma grande afeição, eu o fiz.
Lembre-se de que a sua confidência partiu do senhor, eu não o forcei. Ainda
acha que posso estar errado?
— Eu não! — sibilou Stryver. — Não posso pretender encontrar nos outros o
bom senso que só em mim devo bus-car. Tenho a minha própria concepção de
bom senso. O que é sensato para mim, não o é para o senhor, que supõe seja um
contra-senso viver com conforto. De qualquer forma, ouso dizer que está certo.
— O que suponho ou deixo de supor, senhor Stryver, é problema meu.
Entenda-me, senhor — ripostou o senhor Lorry, tornando a corar —, não
permitirei, a despeito de estar aqui no Tellson, que minhas suposições sejam
formuladas por ninguém, nem mesmo por um cavalheiro.
— Por favor! Aceite as minhas desculpas!
— Eu as aceito e agradeço. Bem, senhor Stryver, eu estava prestes a dizer-
lhe o seguinte: seria doloroso para o senhor se descobrisse que se enganou, seria
dolorosa para o doutor Manette a tarefa de ser explícito com o senhor, seria
muito doloroso para a senhorita Manette o dever de falarlhe com franqueza. O
senhor não ignora em que termos eu tenho a honra e a felicidade de privar com a
família. Se concordar, eu me encarregarei de, sem envolver o seu nome, para
não o comprometer, sondar o terreno e verificar se meu conselho foi acertado.
Se não concordar com o meu julgamento, poderá conferir pessoalmente a sua
exatidão. Por outro lado, se concordar com o meu julgamento e este se revelar
correto, essa providência pouparia a todos um grande constrangimento. O que
acha deste plano?
— Quanto tempo terei de ficar na cidade à espera de uma resposta?
— Oh! É uma questão de apenas algumas horas. Eu poderia visitar os
Manette esta noite e depois passaria em seu escritório.
— Nesse caso, estou de acordo. Não irei lá agora, pois já não estou tãoansioso como quando cheguei aqui. Espero o senhor ainda esta noite. Tenha um
bom dia.
Então, o senhor Stryver levantou-se e precipitou-se para fora do banco,
causando tal comoção ao passar que os dois empregados que se inclinaram para
cumprimentá-lo precisaram de todas as suas forças para permanecerem de pé.
A clientela sempre via esses dois veneráveis e débeis homens curvando-se e
jocosamente comentava que eles permaneciam, depois de o último cliente se ter
retirado, curvando-se na sala vazia, aguardando a entrada do primeiro cliente do
dia seguinte.
O advogado era astuto o bastante para adivinhar que o senhor Lorry não
teria ido tão longe ao externar sua opinião se não o movesse uma forte
convicção. E, conquanto a pílula fosse amarga, tratou de a engolir. “E agora”,
disse consigo mesmo, sacudindo o dedo na direção de Temple Bar, “minha única
saída é provar que estão todos errados.”
Aquela era uma das mais preciosas táticas praticadas em Old Bailey, na
qual encontrou um profundo alívio.
— A senhorita não me tirará a razão, cara jovem — murmurou Stryver —,
eu é que tirarei a sua.
Quando o senhor Lorry, conforme o combinado, chegou ao seu escritório
por volta das dez da noite, o senhor Stryver, rodeado por uma quantidade de
livros e papéis, parecia não se lembrar mais do assunto de que tratara pela
manhã. Demonstrou até mesmo surpresa ao ver o senhor Lorry, mostrando-se
distraído e preocupado.
— Bem! — exclamou o bondoso emissário, depois de meia hora de
tentativas frustradas de abordar a questão. — Estive no Soho.
— No Soho? — repetiu o senhor Stryver com frieza. — Ah, mas é claro!
Onde estou com a cabeça?
— Não tenho a menor dúvida — declarou o senhor Lorry
— de que meu julgamento foi correto. Confirmei minha opinião e, portanto,
reitero o meu conselho.
— Asseguro-lhe — respondeu Stryver em seu tom mais afetuoso — que
lastimo por sua causa e também pelo pobre pai. Imagino que esses casos sejam
sempre penosos para a família. Não toquemos mais nesse assunto.
— Não o compreendo — espantou-se o senhor Lorry.
— Ouso dizer que não mesmo — replicou o senhor Stryver, balançando a
cabeça de modo a dar a conversa por encerrada. — Mas não tem importância.
— Tem importância, sim — insistiu o senhor Lorry.
— Não, não tem. Garanto-lhe que não. Eu supus que havia bom senso e uma
louvável ambição onde não havia nem uma coisa nem outra. Foi um engano,
mas não faz mal. Muitas moças cometem esse tipo de tolice e se arrependem
mais tarde, quando se vêem imersas na obscuridade e na pobreza. De uma
forma altruísta, eu sinto muito por ela. Quanto a mim, esse casamento teria sido
um mau negócio, analisando-o sob um ponto de vista material. Nem é preciso
comentar que eu não ganharia nada com essa união. Felizmente, ninguém sofreu
prejuízo algum. Eu não fiz nenhuma proposta a essa dama, e, cá entre nós, estou
quase certo de que jamais chegaria a esse extremo. Senhor Lorry, não se podecontrolar as vaidades e as bobagens que guiam essas jovens de cabeça oca.
Quem tentar isso, acabará por se decepcionar. Agora, rogo-lhe que não tornemos
a esse assunto. Confesso-lhe que lamento pelos outros, mas estou muito satisfeito
por mim. E agradeço-lhe de coração por iluminarme com tão sábio conselho. O
senhor conhece a dama melhor do que eu e tinha razão: jamais daria certo.
O senhor Lorry ficara tão estupefato que parecia totalmente aparvalhado
quando o senhor Stryver empurrou-o com o ombro na direção da porta, afetando
generosidade, indulgência e boa vontade.
— Não toquemos mais no assunto, meu caro senhor — repetiu o senhor
Stryver. — Mais uma vez, obrigado pelo conselho. Boa noite!
O senhor Lorry viu-se fora, na noite escura, antes de saber como ali
chegara.
Uma vez sozinho, Stryver recostou-se no divã, pestanejando os olhos
pousados no teto.XIII. Um Homem Insensível e Indelicado
CAPÍTULO XIII
UM HOMEM INSENSÍVEL E INDELICADO
Se Sydney Carton algum dia brilhou em alguma parte, com certeza não foi na
casa do médico. Visitara-a com freqüência durante um ano inteiro e sempre se
mostrara malhumorado e indolente. Quando se dava ao trabalho de falar, falava
bem, mas a nuvem obscura de indiferença que o envolvia em trevas abismais
raras vezes permitia revelar a luz que refulgia em seu interior.
E, contudo, apegava-se tanto às ruas que rodeavam aquela casa tranqüila
que adorava até mesmo as pedras do chão. Muitas noites vagara por ali, distraído
e infeliz, quando o vinho não o bafejava com uma efêmera alegria. Muitas vezes,
os primeiros alvores do dia traçavam os contornos de sua figura solitária que por
ali perambulava, e ainda vagueava por ali quando os primeiros raios de sol lhe
traziam um profundo alívio, descortinando-lhe a beleza arquitetônica dos prédios
e das volutas das igrejas, como se talvez a quietude do momento o brindasse com
a visão de um mundo melhor, embora tão esquecido quanto inatingível para ele.
Ultimamente, seu negligenciado quarto em Temple Court via-o menos do que
nunca e, nas raras vezes em que ia para casa à noite, repousava apenas alguns
minutos e levantavase novamente para voltar às imediações da casa do Soho.
Num certo dia de agosto, depois que o senhor Stryver (que notificara seu
chacal de que “pensara melhor e desistira do casamento”) levou sua delicadeza
para Devonshire, e quando a vista e o perfume das flores pelas ruas da cidade
inspiravam bons sentimentos aos maus e devolviam a saúde aos enfermos e a
juventude aos velhos, os passos de Sydney conduziram-no para o Soho. Como
estivesse sem rumo e sem propósito, seus passos animaram-se com um propósito
qualquer e, na tentativa de realizá-lo, encaminharam-se para a casa do médico.
Foi introduzido no andar de cima e encontrou Lucie trabalhando, sozinha na
sala. Ela jamais se sentira muito à vontade com ele, por isso recebeu-o com
embaraço ao vê-lo sentar-se junto à sua mesa de trabalho. Contudo,
perscrutando-lhe o semblante enquanto respondia às trivialidades iniciais, notou
uma mudança em sua expressão.
— Receio que esteja indisposto, senhor Carton!
— Não. Entretanto, a vida que levo, senhorita Manette, não é benéfica para
a saúde. Que esperar de tanta dissipação?
— Não acha que... Perdoe-me, não me posso abster de perguntar, mas...
não é uma pena o senhor não levar uma vida melhor?
— Deus sabe que é uma vergonha!
— Então, por que não muda de vida?Dirigindo-lhe um olhar gentil, ela se surpreendeu e entristeceu ao ver
lágrimas nos olhos de Carton. Havia lágrimas também em sua voz ao replicar:
— É demasiado tarde. Jamais serei melhor do que sou agora. Mergulharei
cada vez mais fundo nesse abismo e me tornarei ainda pior.
Ele apoiou o cotovelo sobre a mesa e cobriu os olhos com as mãos. A mesa
tremulou no silêncio que se seguiu. Lucie nunca o vira assim e ficou
profundamente comovida. Carton sabia de sua emoção, mesmo sem fitá-la, e
disse:
— Rogo-lhe que me perdoe, senhorita Manette. Creio vergar-me sob o peso
do que tenho a revelar-lhe. Consentiria em ouvir-me?
— Se lhe fizer algum bem, senhor Carton, se o tornar mais feliz, ficarei
contente em ouvi-lo.
— Deus a abençoe por sua doce compaixão!
Carton descobriu o rosto por um momento e prosseguiu com firmeza:
— Não tenha medo de ouvir-me. Tampouco se deixe assustar por minhas
palavras. Sou como alguém que morreu na juventude. Minha vida poderia ter
sido muito mais proveitosa.
— Não, senhor Carton. Tenho certeza de que a melhor parte dela ainda está
por vir. Como tenho também certeza de que o senhor se provará digno de si
mesmo.
— Pense assim, se preferir, pois, malgrado eu não me iluda, malgrado no
misterioso recôndito de meu coração eu não me iluda, jamais esquecerei sua
atitude!
Lucie estava pálida e trêmula. Carton lhe surgira tomado por tamanho
desespero que a conversa fluía diferente de todas as que haviam mantido até
aquele instante.
— Se tivesse sido possível, senhorita Manette, que correspondesse ao amor
do homem que tem à sua frente, perdido, inútil, bêbado, uma pobre criatura
malbaratada como sabe que é, ele teria consciência, a despeito de toda a sua
felicidade, de que a levaria à miséria, ao sofrimento e ao arrependimento, que a
arruinaria e desgraçaria, arrastando-a para o abismo com ele. Estou ciente de
que a senhorita não me dedica nenhum sentimento terno, nem lhe peço isso.
Sinto-me mesmo grato por não ser possível que me estime.
— Não existe outra forma de eu o salvar, senhor Carton? Não poderia eu
fazê-lo pensar, perdoe-me outra vez!, num destino mais feliz? Não haveria um
modo de eu recompensálo pela confiança? Porque sei tratar-se da mais profunda
confiança — ela replicou com modéstia, após um momento de hesitação,
rompendo em lágrimas sinceras. — O senhor não se abriria assim com mais
ninguém. Não poderia eu retribuir fazendo alguma coisa em seu favor, senhor
Carton? Ele sacudiu a cabeça.
— Não. Não, senhorita Manette. Se me ouvir um pouco mais, já terá feito o
bastante. Quero que saiba que foi o último sonho da minha alma. O que atenua
minha degradação é vê-la junto de seu pai, neste lar que a senhorita tornou tão
aconchegante, pois essa visão afugentou antigas sombras que eu julgava me
terem aniquilado. Desde que a vi, torturei-me com um remorso de que não me
considerava capaz e ouvi murmúrios de vozes esquecidas que me impulsionavampara a frente, vozes que julguei silenciadas para sempre. Passei a acalentar o
vago anseio de empenhar-me, de começar de novo, libertando-me da indolência
e da sensualidade e retomando a abandonada luta. Um sonho, tudo um sonho que
termina em nada e deixa o sonhador a jazer no mesmo lugar em que
adormecera. Contudo, desejava que soubesse que foi a senhorita quem me
inspirou esse sonho.
— Nada restará de tão belo sonho? Oh, senhor Carton, reflita bem! Tente
lutar novamente!
— Não, senhorita Manette. Mesmo durante o sonho, sabia não merecê-lo
em absoluto. Todavia, tive a fraqueza, e ainda a tenho, de querer que tomasse
conhecimento do seu poder de subitamente transformar as cinzas que sou em
fogo fogo, entretanto, inseparável de mim em sua natureza, que nada queima,
nada ilumina, nenhum serviço presta e se con-some indolente e inutilmente.
— Já que é minha desventura, senhor Carton, tê-lo tornado mais infeliz do
que era antes de me conhecer...
— Não diga isso, senhorita Manette, pois me teria regenerado quando tudo o
mais fracassou. Não é sua a culpa da minha decadência.
— Já que o estado de espírito que descreveu é, sob todos os aspectos,
atribuível a alguma influência minha, e isso é o que gostaria de deixar claro, não
poderia usar essa influência para ajudá-lo? Não tenho nenhum poder para o bem
no que se refere ao senhor?
— O maior bem que poderia proporcionar-me, senhorita Manette, é o que
me proporciona agora. Deixe-me levar pelo resto de minha desorientada vida a
recordação de que lhe abri meu coração pela última vez no mundo e que nele
encontrou algo para lamentar e de que se apiedar.
— Algo que, suplico-lhe que creia, e suplico-lhe fervorosamente com todo o
meu coração, que é capaz de muito mais. O senhor é muito melhor do que
acredita, senhor Carton!
— Não me suplique mais para crer nisso, senhorita Manette. Conheço a
mim mesmo e não me iludo. Mas, vejo que a aflijo. Perdoe-me. Apenas uma
palavra mais e terminarei. Prometa-me que, quando recordar este dia, esta
última confidência de minha vida repousará no fundo de sua alma pura e
inocente, sem jamais ter sido partilhada com ninguém.
— Se isso lhe servir de consolo, eu prometo.
— Sem ter sido partilhada nem com a pessoa a quem amará mais do que a
si própria?
— Senhor Carton — ela respondeu após uma agitada pausa —, o segredo lhe
pertence, não a mim. E eu prometo respeitá-lo.
— Muito obrigado. Mais uma vez, que Deus a abençoe.
Levou a mão de Lucie aos lábios e dirigiu-se para a porta.
— Não tenha o menor receio, senhorita Manette, de que eu torne a tocar
nesse assunto. Jamais o mencionarei novamente. Não poderia ter mais certeza
disso se eu estivesse morto. No último instante de minha vida, ainda manterei
como sagrada a única boa recordação, e por ela lhe serei grato e a abençoarei, a
de que a derradeira confissão de minha miséria foi feita à senhorita, e que,
portanto, meu nome, minhas faltas e desgraças foram gentilmente guardados emseu coração. Que seja essa a única mágoa que nele pese!
Carton estava tão diferente do que habitualmente se mostrava, e era tão
triste pensar no quanto atirara fora e no quanto se corrompia todos os dias, que
Lucie Manette soluçou amargamente por ele, diante de seus olhos.
— Não chore — murmurou Carton. — Não sou digno dos seus sentimentos,
senhorita Manette. Bastarão algumas poucas horas para que os maus hábitos e os
péssimos companheiros, os quais desprezo e aos quais, entretanto, acabo
cedendo, tornem-me ainda mais indigno da sua compaixão do que o miserável
que cai numa sarjeta. Não chore! Pois, no fundo do meu coração, serei sempre
para a senhorita o que sou agora, embora exteriormente eu pareça o mesmo de
antes. Minha última súplica é que acredite nisso.
— Acreditarei, senhor Carton.
— Uma última palavra, e com ela eu a libertarei de um visitante com quem,
bem sei, nada tem em comum e de quem um abismo a separa. É ocioso dizer-
lhe isso, não o ignoro, mas a minha alma não o pode calar. Pela senhorita e por
todos a quem ama, eu faria tudo. Se minha posição fosse outra, se eu tivesse uma
oportunidade para sacrificar-me, aceitaria de bom grado todo e qualquer
sacrifício por sua felicidade e pela dos que lhe são caros. Tente guardar-me
assim ardente e sincero em sua lembrança, nos seus momentos de sossego.
Chegará o dia, e não tardará muito, em que novos laços surgirão ao seu redor,
laços que a prenderão mais terna e poderosamente ao lar que torna tão
aconchegante, os preciosos laços que sempre a adornarão e a farão feliz. Oh,
senhorita Manette, quando o gracioso quadro de um rosto venturoso de pai
contemplar o seu, quando vir sua própria beleza radiante desenvolver-se nas
feições dos filhos, lembre-se, uma vez ou outra, de que existe um homem que
daria a vida para preservar ao seu lado a vida daqueles a quem ama.
Ele disse “Adeus!”, repetiu pela última vez “Deus a abençoe!” e deixou-a. XIV. Um Homem Negociante
CAPÍTULO XIV
UM HONRADO NEGOCIANTE
Diante dos olhos do senhor Jeremiah Cruncher, sentado em seu tamborete na rua
Fleet ao lado de seu horrendo filho, desfilava todos os dias um grande e variado
número de pessoas e de objetos em movimento. Quem se sentasse sobre um
tamborete na rua Fleet durante as horas mais agitadas do dia, com certeza ficaria
tonto e ensurdecido com as duas imensas correntezas humanas, uma seguindo
para o oeste junto com o sol, e a outra indo para o leste, contra o sol, ambas
desaparecendo para além da linha de ouro e púrpura onde o sol mergulha!
Mordiscando um fio de palha, o senhor Cruncher observava as duas
torrentes, como o camponês pagão[132] que, durante vários séculos, cumpriu seu
dever de observar uma correnteza; a diferença era que Jerry não tinha a
expectativa de que as suas secassem. Nem teria sido esta uma boa expectativa,
já que uma pequena parte de sua renda provinha da exploração das mulheres
tímidas, a maioria já passada da meia-idade, que atravessavam do lado do fluxo
que passava pelo Tellson em direção à calçada oposta. Por breve que fosse o
tempo de que dispunha para fazer-lhes a corte, o senhor Cruncher jamais
deixava de se interessar pelas damas a ponto de expressar o forte desejo de ter a
honra de brindar-lhes à saúde. E era com os presentes concedidos em retribuição
à execução de tão benevolente propósito que ele revigorava suas finanças. Como
pretendia fazer naquele momento.
Numa certa época, houve um poeta que se sentava num banco em local
público e meditava à vista dos homens[133]. O senhor Cruncher, sentado num
banco em local público, mas não sendo poeta, meditava o mínimo possível e
observava o que acontecia ao redor.
Ocorreu que Jerry Cruncher assim estivesse ocupado, numa hora em que o
movimento era escasso e ainda mais escassas as mulheres, e quando seus
negócios em geral iam tão mal que levantava-se em seu peito a forte suspeita de
que a senhora Cruncher se estivesse ajoelhando pelos cantos para atrair o
infortúnio sobre o marido, quando uma procissão inusitada que descia a rua Fleet
no sentido oeste chamou-lhe a atenção. Olhando em sua direção, Jerry percebeu
que algum tipo de cortejo fúnebre se aproximava, provocando o furor do povo, o
qual se agitava num grande tumulto.
— Pequeno Jerry — anunciou o senhor Cruncher, virando-se para seu
rebento —, aí vem um enterro.
— Hurrah, pai! — exclamou o pequeno Jerry.
O jovem cavalheiro proferiu essa interjeição em tom misterioso. Ocavalheiro mais velho ofendeu-se tanto com aquele som misterioso que,
aproveitando a oportunidade, pespegou-lhe um safanão na base da orelha.
— Que história é essa? Está dando “hurrah” a quê, posso saber? Que modos
são esses, hein? Esse moleque me está saindo melhor do que a encomenda! —
esbravejou o senhor Cruncher, examinando-o. — Ele e esse “hurrah”! Nunca
mais diga isso na minha frente, ou juro que lhe darei uma lição! Ouviu?
— Eu não fiz nada de mal — o pequeno Jerry protestou, esfregando a
orelha.
— Então, cale a boca — ordenou o senhor Cruncher. — Não fez nada de
mal, é? Pois sim! Agora, sente ali e assista ao enterro!
O filho obedeceu e o cortejo se aproximou. Gritando e vaiando, a plebe
rodeava a lúgubre carroça fúnebre e a lúgubre carruagem que levava os
pranteadores do defunto, na verdade, apenas um homem, vestido com os trajes
funéreos considerados essenciais à dignidade de seu papel. Papel, todavia, que
aparentemente não o agradava nem um pouco, em razão da multidão crescente
que circundava a carruagem, escarnecendo dele, fazendo-lhe caretas e
incessantemente vociferando: “Abaixo os espiões!”, além de uma saraivada de
cumprimentos demasiado numerosos e violentos para os repetirmos aqui.
Os funerais sempre exerceram grande atração sobre o senhor Cruncher.
Aguçava os sentidos e se entusiasmava todas as vezes que via um desfilar diante
do Tellson. Era, pois, natural que se exaltasse sobremaneira perante tão insólito
cortejo. Curioso, indagou ao primeiro homem que lhe passou correndo pela
frente:
— O que está havendo, irmão? Por que o tumulto?
— Não sei — respondeu o homem. E gritou: — Abaixo os espiões!!! Ele
indagou a outro transeunte:
— Quem é o defunto?
— Não sei — respondeu o outro homem. Colocando as mãos em concha ao
redor da boca, berrou com surpreendente veemência e um profundo ardor: —
Abaixo os espiões!!!
Por fim, encontrou alguém mais informado sobre os detalhes do caso e, por
seu intermédio, descobriu que aquele era o enterro de um tal Roger Cly.
— Ele era espião? — inquiriu o senhor Cruncher.
— Era, sim. De Old Bailey — revelou o informante. — Abaixo o espião de
Old Bailey!!!
— Ora, é isso mesmo! — exclamou Jerry, lembrando-se do julgamento a
que assistira. — Eu já o vi. Está morto, é?
— E bem morto — replicou o homem. — Mais morto, impossível. Tirem-no
da carroça! Abaixo os espiões! Tiremno logo dessa carroça!!
A idéia pareceu tão boa, em vista da predominante falta de idéias, que a
turba aceitou-a com avidez e, repetindo em altos brados a sugestão de retirar o
féretro de dentro da carroça, cercou os dois veículos de tal forma que estes
tiveram de parar. Quando o populacho abriu as portas da carruagem, o único
acompanhante do falecido foi arrancado de seu interior, ficando à sua mercê por
um momento. Contudo, ele estava tão alerta, e valeu-se tão bem das chances de
escapar, que, no instante seguinte, alcançava uma rua transversal, depois delivrar-se da casaca, do chapéu que exibia um largo fumo, do lenço branco e de
outras lágrimas simbólicas.
Imediatamente, a plebe rasgou tudo e espalhou os pedaços com grande
contentamento, enquanto os comerciantes apressadamente cerravam as portas
de seus estabelecimentos. Pois, naquela época, as multidões não se detinham por
nada, constituindo-se num monstro dos mais temíveis. Os que cercavam a
carroça já haviam chegado ao ponto de abri-la para removerem o féretro
quando algum gênio brilhante propôs que, em vez disso, escoltassem o caixão a
seu destino com demonstrações do rejúbilo geral. Como careciam muito de
sugestões práticas, esta, também, foi recebida com aclamação; oito homens
entraram na carroça e doze rodearam-na, enquanto, sobre o teto, empoleiraram-
se todos os que conseguiram acomodar-se ali, valendo-se de grande habilidade
em contorcionismo. Entre os primeiros desses voluntários estava o próprio Jerry
Cruncher, que prudentemente escondeu a cabeça de cabelos eriçados para não
ser visto na esquina seguinte, por observadores do Tellson.
Os agentes funerários responsáveis pela organização do enterro esboçaram
protestos contra as mudanças no cerimonial. Contudo, como o rio ficava
alarmantemente próximo, e várias vozes se elevavam para ressaltar a eficácia
da imersão em água fria para trazer à razão os membros refratários daquela
categoria profissional, os protestos se revelaram débeis e efêmeros. A
remodelada procissão retomou a marcha. Um limpador de chaminés conduzia a
carroça fúnebre, sob a orientação do verdadeiro cocheiro, que fora colocado a
seu lado, sob vigilância, especificamente para esse propósito, enquanto um
pasteleiro, também auxiliado por seu ministro de gabinete[134], conduzia a
carruagem que acompanhava o cortejo. Um domador de ursos[135],
personagem de rua muito popular naquela época, causou impressão como um
ornamento adicional, juntando-se à multidão antes de o desfile avançar muito
pelo Strand. Seu urso, que era negro e esquálido, conferia àquele setor da
procissão um ar de pom-pa funerária.
E assim, bebendo cerveja, fumando cachimbo, engrolando canções e
caricaturando os lamentos usuais em enterros, o desordenado cortejo seguiu seu
caminho, arrebanhando mais pessoas a cada passo, enquanto os comerciantes ao
longo das ruas fechavam as portas de suas lojas. O destino era a velha igreja de
São Pancrácio[136], já fora da cidade, no campo. O cortejo lá chegou ao fim de
algum tempo e insistiu em espalharse pelo campo santo. Por fim, procedeu-se, a
seu modo e para o próprio regozijo, ao sepultamento do finado Roger Cly.
Enterrado o falecido, e a multidão necessitando que lhe provessem novos
entretenimentos, um outro gênio brilhante, ou quiçá o mesmo, concebeu o jocoso
plano de deter eventuais transeuntes, acusá-los de serem espiões de Old Bailey e
castigá-los sem dó nem piedade. Na realização dessa brincadeira, foram caçadas
algumas vintenas de pessoas inofensivas, que jamais haviam sequer passado na
frente de Old Bailey em suas vidas, e que foram cruelmente empurradas e
maltratadas. A transição do esporte para a depredação de janelas e daí para o
saque a tabernas foi fácil e natural. Por fim, após várias horas, quando diversas
casas de veraneio já haviam sido invadidas e algumas cercas tinham sido
derrubadas para servirem de arma aos espíritos mais beligerantes, correu orumor de que a guarda se aproximava.
Diante dessa notícia, a turba gradualmente se dispersou. Talvez a guarda
nem estivesse a caminho de lá, mas esse era o comportamento usual das hordas.
O senhor Cruncher não participou dos folguedos de encerramento do
enterro, ficando para trás no cemitério, para conferenciar e apresentar seus
pêsames aos agentes funerários. Aquele local exercia uma apaziguadora
influência sobre ele. Procurou um cachimbo numa taberna nas vizinhanças,
fumou-o e, espiando através das cercas da necrópole, meditou com maturidade.
— Jerry — murmurou para si mesmo, como fazia habitualmente —, ali jaz
o tal Cly, que, como você viu naquele dia, era um homem novo e robusto.
Terminou de fumar o cachimbo, ruminou por algum tempo mais e virou-se
para ir embora, refletindo que poderia retornar a seu posto no Tellson antes de o
expediente se encerrar. Fosse porque sua meditação sobre a mortalidade afetou-
lhe o fígado, fosse porque seu estado geral de saúde não era dos melhores, ou
porque desejava prestar seus respeitos a um homem eminente, não vem ao caso,
o fato é que ele fez uma curta visita a seu médico, um famoso cirurgião, no
caminho de volta.
O pequeno Jerry, que substituíra o pai, como era seu dever, anunciou que
“Não houve nenhum recado durante a sua ausência”. O banco fechou as portas,
seus idosos funcionários saíram, o vigia instalou-se como de costume e o senhor
Cruncher, levando seu filho ao lado, voltou a casa para o chá.
— Agora, mulher, vou preveni-la de uma coisa! — o senhor Cruncher disse
à esposa logo ao entrar. — Se, como um honrado negociante, eu fracassar esta
noite, será porque você rezou contra mim outra vez, e vou castigá-la como se a
tivesse visto ajoelhada. A desalentada senhora Cruncher sacudiu a cabeça.
— Como, você já começou bem diante do meu nariz! — o senhor Cruncher
acusou-a, revelando uma zangada apreensão.
— Mas eu nem disse nada.
— Nesse caso, não pense nada. Você pode rezar em pensamento. De um
modo ou de outro, pare já com essa história.
— Sim, Jerry.
— “Sim, Jerry” — arremedou-a o senhor Cruncher, sentado-se para o chá.
— E é assim mesmo que deve responder a seu marido. Deve sempre responder:
“Sim, Jerry”.
O senhor Cruncher não tinha nenhuma intenção em particular com esses
mal-humorados resmungos. Empregava-os, apenas, como as pessoas não
raramente fazem, para exprimir com ironia sua insatisfação generalizada.
— Você e seu “sim, Jerry” — prosseguiu o senhor Cruncher, abocanhando
um pedaço de pão com manteiga.
— Acredito muito nisso.
— Vai sair esta noite? — indagou sua decente esposa, quando ele deu outra
mordida no pão.
— Vou, sim.
— Posso ir com o senhor, pai? — perguntou o filho, animadamente.
— Não, não pode. Eu vou, como sua mãe sabe, a... uma pescaria. É aonde
vou. A uma pescaria.— A sua vara de pescar se quebrou e os anzóis se enferrujaram, não é, pai?
— Não é da sua conta.
— O senhor trará peixes para casa?
— Se não trouxer, você terá pouco o que comer amanhã — retrucou o
cavalheiro, balançando a cabeça. — Já chega de perguntas. Eu não sairei senão
depois que você for dormir.
Ele dedicou o resto da noite a uma intensa vigilância sobre a senhora
Cruncher, obrigando-a de forma rabugenta a participar da conversação, para
impedi-la de meditar orações que o desfavorecessem. Com esse intento,
estimulou o filho a esforçar-se também para manter a mãe entretida na
conversa, e atormentou a desventurada mulher, repisando todos e quaisquer
motivos de reclamação contra ela, não lhe deixando um momento para refletir. A
mais devota das pessoas não teria prestado homenagem maior à eficácia de uma
prece honesta do que ele, com essa desconfiança em relação à esposa. Era como
se alguém que se proclamasse cético quanto à existência de almas do outro
mundo se assustasse com histórias sobre fantasmas.
— E ouça bem! — bradou o senhor Cruncher. — Nada de brincadeiras,
amanhã! Se eu, como um honrado negociante, conseguir comprar um pedaço ou
dois de carne, não quero saber de vocês dois deixando a carne de lado para
comer pão. Se eu, como um honrado negociante, tiver condições de trazer para
casa um pouco de cerveja, ai de vocês se preferirem água. Quando em Roma,
aja como os romanos ou se arrependerá, se não o fizer. Eu sou sua Roma, como
sabe.
Após uma pausa, ele começou de novo a desfiar o rosário de queixas:
— Com essas malditas orações bem diante do nariz de seu marido! Não vê
que o seu comportamento desnaturado só nos traz miséria? Olhe para o seu filho:
ele é seu filho, não? Magro como um pangaré. Você se diz mãe e, no entanto,
ignora que o primeiro dever das mães é engordar o filho?
Essa argumentação comoveu o pequeno Jerry, que exortou a mãe a cumprir
o seu primeiro dever e, não importando tudo o mais que ela fizesse ou
negligenciasse, acima de tudo e de todos, se dedicasse a essa função maternal
que o pai tão afetuosa e delicadamente apontara.
Assim transcorreu o tempo no lar dos Cruncher, até que o pequeno Jerry
recebeu ordens de ir para a cama, e sua mãe, submetida a injunções similares,
também obedeceu. O senhor Cruncher, para burlar a vigilância mais intensa das
primeiras horas da noite, fumou várias e solitárias cachimbadas e só iniciou sua
expedição por volta de uma da madrugada. Ao soar essa curta e fantasmagórica
hora, ergueuse da cadeira, apanhou uma chave dentro do bolso, destrancou um
armário e de lá retirou um saco, uma alavanca de bom tamanho, uma corda e
uma corrente, bem como alguns apetrechos de pesca dessa natureza. Dispondo
esses artigos com habilidade, concedeu um olhar de desafio à senhora Cruncher,
extinguiu a luz e saiu.
O pequeno Jerry, que apenas fingira despir-se quando se deitou, não tardou a
sair atrás do pai. Escondido pela escuridão, seguiu-o para fora da sala e pelas
escadas abaixo, seguiu-o também pelo jardim e através das ruas. Não lhe
causava preocupação a maneira como tornaria a entrar em casa, pois o prédioabrigava muitos inquilinos e, por isso, a porta permanecia entreaberta a noite
inteira.
Impelido pela louvável ambição de estudar a arte e o mistério daquele
honrado negócio de seu honesto pai, o pequeno Jerry, mantendo das paredes e
portas das casas uma distância tão pequena quanto a existente entre seu olho
direito e o esquerdo, não perdia seu honrado pai de vista. O honrado pai tomou a
direção norte e ainda não tinha ido muito longe quando foi abordado por outro
discípulo de Izaak Walton[137]. A partir daí, os dois caminharam juntos.
Meia hora depois do início da excursão, já haviam deixado os baloiçantes
lampiões para trás, burlando a vigilância de mais um guarda, e entraram numa
estrada deserta. Outro pescador reuniu-se a eles nesse ponto, e tão
silenciosamente que, se o pequeno Jerry fosse supersticioso, teria suposto que sua
aparição resultara da divisão em dois do segundo adepto do manso ofício[138].
Os três prosseguiram, e o pequeno Jerry continuou a segui-los, até pararem
diante de um barranco que se projetava para o alto. No parte mais elevada do
barranco havia um muro de tijolos encimado por uma cerca de ferro. Sob a
sombra do barranco e do muro, os três saíram da estrada e chegaram a um beco
sem saída, do qual o muro, que aí atingia de dois a dois metros e meio de altura,
constituía um dos lados. Ao espreitar o beco, acocorado num canto, a primeira
coisa que o pequeno Jerry avistou foi o vulto de seu honrado pai, claramente
definido contra a luz nevoenta da lua, agilmente escalando um portão de ferro.
Não tardou para que Cruncher alcançasse o topo, chegando a vez do segundo
pescador e, na seqüência, a do terceiro. Todos pularam cautelosamente para o
lado de dentro do portão e lá ficaram por alguns instantes, talvez com os ouvidos
em alerta. Então, afastaram-se de rastros.
O pequeno Jerry aproximou-se do portão, sustendo a respiração.
Acocorando-se novamente num canto e espiando por entre as grades, percebeu
que os três pescadores rastejavam pela grama espessa! E as lápides do cemitério
da igreja, pois era num imenso cemitério de igreja que eles estavam, tinham o
aspecto de fantasmas brancos, enquanto a própria torre da igreja afigurava o
fantasma de um gigantesco monstro. Os pescadores não rastejaram muito mais
antes de pararem e se erguerem. E, então, começaram a pescar.
A princípio, pescaram com uma pá. Naquele instante, o honrado pai parecia
ajustar uma ferramenta semelhante a um grande saca-rolhas. Quaisquer que
fossem as ferramentas que empregassem, os três trabalharam arduamente até
que o lúgubre badalar do campanário assustou tanto o pequeno Jerry que ele se
pôs a correr, com os cabelos tão eriçados quanto os do pai.
Contudo, seu longamente acalentado desejo de aprender mais sobre aqueles
misteriosos negócios não apenas o deteve como também atraiu-o de volta a seu
posto de observação. Eles ainda pescavam perseverantemente quando ele espiou
por entre as grades do portão pela segunda vez. Agora, porém, pareciam ter
fisgado alguma coisa. De baixo veio um ruído áspero e lamentoso, e as três
figuras curvadas aparentavam tensão, como se puxassem algo pesado.
Lentamente, o objeto pesado foi içado de dentro da terra e alcançou a superfície.
O pequeno Jerry sabia bem do que se tratava. Ainda assim, quando pousou o
olhar nele, e viu seu honrado pai a ponto de arrombá-lo, ficou tão aterrorizado,pois era uma visão inédita, que tornou a fugir e não parou de correr senão depois
de quase dois quilômetros.
Ele não teria interrompido, não fosse a necessidade de recuperar o fôlego,
aquele tipo espectral de corrida que disputava, tal era sua ansiedade por cruzar a
linha de chegada. Tinha a forte impressão de que o caixão que acabara de ver
corria atrás dele. E imaginava-o pulando atrás de si, direito como um fio de
prumo sobre a extremidade estreita, sempre prestes a alcançá-lo, a saltar a seu
lado, talvez prendendo-lhe o braço. Aquele era um perseguidor que devia evitar.
Era, também, um imaterial e ubíquo demônio que lhe transformou a noite num
pesadelo, forçando-o a precipitar-se para a estrada, a fim de evitar as ruas
escuras, temeroso de vê-lo surgir das trevas aos pulos, como um hidrópico
papagaio de criança, desses feitos com papel, sem cauda nem asas. O demônio
se escondia nos umbrais, esfregando seus medonhos ombros nas portas e
suspendendo-os até as orelhas, como se risse. Ocultava-se nas sombras da
estrada para surpreendê-lo numa emboscada. Durante todo o trajeto, pulou
incessantemente em seu encalço, avançando em sua direção de tal modo que, ao
chegar a casa, o garoto tinha razões para sentir-se semimorto. E mesmo então,
não o abandonou. Subiu com ele as escadas, batendo ruidosamente nos degraus,
meteu-se sob as cobertas com ele e desabou, morto e pesado, sobre seu peito
quando adormeceu.
De seu opressivo sono, o pequeno Jerry foi despertado, no diminuto quarto,
naquele momento intermediário entre a aurora e o nascer do sol, pela presença
de seu pai no outro cubículo. Algo dera errado para ele. Ao menos, assim inferiu
o pequeno Jerry do fato de o pai, segurando a senhora Cruncher pelas orelhas,
bater-lhe a cabeça contra a cabeceira da cama.
— Eu avisei que a castigaria — bradou o senhor Cruncher — e a estou
castigando.
— Jerry, Jerry, Jerry! — a mulher implorava.
— Você se opôs ao êxito dos meus negócios — acusou-a Jerry — e, por sua
causa, eu e meus sócios sofremos. Você me devia honrar e obedecer. Por que
diabos não o faz?
— Eu tento ser uma boa esposa, Jerry — a pobre protestou, em lágrimas.
— E ser uma boa esposa significa opor-se aos negócios do marido?
Desonrar-lhe os negócios é honrar o marido? Por acaso desobedecer ao marido é
o mesmo que desobedecerlhe em assuntos tão vitais?
— Quando lhe jurei obediência, você ainda não se dedicava a esse terrível
negócio, Jerry.
— É bastante para você — retorquiu com maus modos o senhor Cruncher
— ser a esposa de um honrado negociante e não ocupar sua mente feminina com
reflexões sobre o trabalho do marido. Uma esposa obediente deixaria os negócios
por conta dele. Você se considera uma mulher religiosa? Pois então, prefiro uma
que não o seja! Você tem tanto senso de dever quanto o leito do Tâmisa tem
consciência de uma pedra que se atire nele, e que deveria, igualmente, ser
atirada em você.
A altercação foi conduzida em tom baixo e terminou quando o honrado
negociante chutou longe as botas enlameadas e estendeu-se no chão. Depois detimidamente espiar o pai, deitado de costas, com as mãos sujas de terra e
ferrugem sob a cabeça à guisa de travesseiro, o filho também se deitou e tornou
a dormir.
Não houve peixe no café da manhã. Na verdade, não houve praticamente
nada. O senhor Cruncher, deprimido e mal-humorado, manteve junto de si uma
tampa de panela de ferro, como um projétil para lançar sobre a senhora
Cruncher, como corretivo, caso ela manifestasse algum sintoma de sua mania
por rezas. Ele se lavara e escovara na hora habitual, e, na hora habitual, saiu com
o filho para se dedicar à sua ocupação não secreta.
O pequeno Jerry, caminhando com o tamborete debaixo do braço ao lado do
pai pela ensolarada e apinhada rua Fleet, parecia muito diferente do pequeno
Jerry que, na noite anterior, correra para casa, sozinho sob as trevas, fugindo de
seu cruel perseguidor. Sua malícia estava fresca como o dia, havendo seus
receios desaparecido com a noite, e, neste particular, não era improvável que
tivesse companheiros na rua Fleet e na cidade de Londres, naquela adorável
manhã.
— Pai — disse o pequeno Jerry, enquanto andavam, tomando cuidado para
manter-se a um braço de distância dele e escudando-se com o tamborete —, o
que é um ressurreicionista?[139]
O senhor Cruncher estacou na calçada antes de responder:
— Como vou saber?
— Pensei que o senhor soubesse tudo, pai — replicou o ingênuo garoto.
— É... bem! — o senhor Cruncher pigarreou, retomando a caminhada e
tirando o chapéu para libertar os cabelos espetados. — É um negociante.
— E ele negocia que mercadorias, pai? — indagou o curioso menino.
— Suas mercadorias — ripostou o senhor Cruncher, depois de meditar sobre
o assunto — destinam-se a um ramo da ciência.
— Cadáveres, não é, pai? — inquiriu o vivaz moleque.
— Acredito que seja alguma coisa desse gênero — admitiu o senhor
Cruncher.
— Oh, papai, quando eu crescer, quero ser um ressurreicionista! O senhor
Cruncher sentiu-se aliviado, mas balançou a cabeça, com um ar incerto e
moralista.
— Isso dependerá de como você desenvolve seus talentos. Desenvolva-os
com todo o empenho e jamais diga a ninguém mais do que permite a prudência.
Por ora, é melhor não revelar planos que talvez não se concretizem.
Quando o pequeno Jerry, assim encorajado, adiantouse alguns metros para
instalar o tamborete sob a sombra de Temple Bar, o senhor Cruncher acrescentou
para si mesmo: “Jerry, seu honrado negociante, há esperanças de que esse garoto
venha a ser uma bênção para você, e uma recompensa por suportar-lhe a mãe”. XV. O Tricô
CAPÍTULO XV
O TRICÔ
Começou-se a beber mais cedo do que o usual na taberna de monsieur Defarge.
Desde as seis horas da manhã, os rostos macilentos que espreitavam pelas grades
das janelas avistavam outros rostos lá dentro, inclinando-se sobre copos de vinho.
Monsieur Defarge vendia sempre um vinho ordinário, mesmo nos melhores
tempos, mas nunca tão ruim como naquela época. Era um vinho azedo, a julgar
pelo azedume que infundia naqueles que o bebiam. Nenhuma viva chama
dionisíaca crepitava no mosto do vinho de monsieur Defarge.
Em vez disso, ocultava-se em sua borra um fogo ardente, que queimava nas
trevas.
Aquela era a terceira manhã consecutiva em que se começava cedo a
beber na taberna de monsieur Defarge. Isso tivera início na segunda-feira e já
era quarta-feira. Na verdade, os fregueses iam ali mais para meditar do que para
beber, pois a maioria dos homens havia ouvido e cochichado e se movido
furtivamente pela taberna desde o momento em que se abriram as portas;
homens que não teriam podido deixar uma moeda no balcão mesmo que fosse
para salvar a própria alma, mas que se mostravam interessados pelo lugar como
se pudessem ordenar barris inteiros de vinho. E passavam de uma mesa para a
outra, de um canto para o outro, sorvendo palavras em vez de vinho, com um ar
cobiçoso.
Apesar de tão extraordinária freguesia, o dono da taberna não estava
presente. Mas não lhe sentiram a falta, já que nenhum dos que cruzaram a
soleira da porta o procurou, nem perguntou por ele e tampouco se admirou por
ver somente madame Defarge em sua cadeira, presidindo à distribuição de
vinho, tendo ao lado uma tigela cheia de moedinhas amassadas e sujas, com a
efígie tão apagada quanto o esmaecido cunho de humanidade daqueles de cujos
bolsos haviam saído.
Um súbito desinteresse e um aspecto distraído eram talvez observados pelos
espiões que se introduziram na taberna Defarge como, de resto, faziam em toda
a parte, dos melhores lugares aos piores, desde o palácio do rei até o cárcere dos
criminosos. Os jogos de cartas se prolongavam, jogadores de dominó divertiam-
se construindo torres com as pedras, os que bebiam traçavam cifras sobre as
mesas aproveitando as gotas de vinho derramadas. Madame Defarge, apoiada no
balcão, reproduzia o desenho de suas mangas com a ponta de um palito, vendo e
ouvindo coisas muito distantes, invisíveis e inaudíveis para os fregueses.
Assim se passou a manhã de Santo Antônio. Já era meiodia quando doishomens empoeirados entraram pelas ruas do bairro, passando sob a fileira de
lampiões que se balançavam na corda. Um deles era monsieur Defarge. O outro,
um reparador de estradas que trazia na cabeça um barrete azul. Sedentos e
cobertos de pó, entraram na taberna.
Sua chegada acendera uma espécie de fogo no coração de Santo Antônio,
que rapidamente se espalhara à medida que os dois avançaram pelas ruas, suas
chamas atiçando-se e tremulando nos rostos por trás das janelas e portas.
Contudo, ninguém os seguiu e nenhuma palavra foi pronunciada quando eles
entraram na taberna, conquanto os olhos de cada um dos homens se voltassem
para fitá-los.
— Bom dia, cavalheiros! — cumprimentou monsieur Defarge.
A saudação funcionou como uma espécie de sinal para que as línguas se
soltassem, provocando uma resposta em coro:
— Bom dia!
— O tempo está péssimo, cavalheiros — Defarge observou, sacudindo a
cabeça.
Diante disso, cada homem olhou para seu vizinho e todos baixaram a
cabeça, calados. Todos, com exceção de um, que se levantou e saiu da taberna.
— Mulher — disse Defarge em voz alta, dirigindo-se à madame Defarge
—, viajei muitas léguas com esse bom reparador de estradas. Chama-se Jacques.
Encontrei-o durante a jornada, por acaso, a um dia e meio de Paris. É um bom
rapaz, esse reparador de estradas chamado Jacques. Sirvalhe algo para beber,
mulher!
Outro homem, então, ergueu-se e saiu da taberna. Madame Defarge
colocou um copo cheio diante do reparador de estradas chamado Jacques, que
tirou o barrete e bebeu um trago de vinho. No interior de sua camisa, ele
carregava uma côdea de pão preto. Comeu-a aos poucos, sentando-se junto de
madame Defarge, mastigando e tomando longos goles de vinho. Um terceiro
indivíduo se levantou e saiu como os outros dois.
Defarge também se refrescou com um trago de vinho — serviu-se, porém,
de menos do que fora ofertado ao forasteiro, já que, para ele, a bebida não era
uma raridade — e permaneceu de pé, esperando que o companheiro terminasse
seu almoço. Não olhava para ninguém e ninguém olhava para ele, nem mesmo
madame Defarge, que retomara seu tricô.
— Acabou seu repasto, amigo? — ele perguntou, quando viu que não havia
mais pão.
— Sim, obrigado.
— Então, siga-me. Verá o quarto que eu lhe disse que poderia ocupar. Acho
que lhe convém perfeitamente.
Saíram para a rua, dirigiram-se ao pátio, de lá subiram pela escada íngreme
e encontraram-se finalmente num sótão onde outrora havia um homem de
cabelos brancos, que costumava sentar-se num banco baixo, inclinado para a
frente, empenhado na manufatura de sapatos.
Agora não se via nenhum homem de cabelos brancos ali, mas sim os três
indivíduos que tinham saído da taberna, cada qual por seu turno. Entre eles e o
homem de cabelos brancos, que estava tão distante, existia apenas um pequenoelo, constituído pelo fato de que os três rapazes certa vez o haviam espreitado
pelas frestas da parede.
Defarge fechou a porta cuidadosamente e disse em voz baixa:
— Jacques primeiro, Jacques segundo, Jacques terceiro, esta é a testemunha
localizada por mim, Jacques quarto. Ele lhes contará tudo. Fale, Jacques quinto.
O reparador de estradas enxugou o suor da testa com o barrete azul e
indagou:
— Por onde deverei começar, monsieur?
— Comece pelo começo — foi a ponderada resposta de Defarge.
— Vi-o então, messieurs — principiou o reparador de estradas —, um ano
antes do verão corrente, sob a carruagem do marquês, pendurado numa
corrente. Exatamente deste jeito como lhes mostro. Eu já ia deixar o trabalho, o
sol se deitava[140], a carruagem do marquês subia a colina devagar, e ele
arrastado pela corrente, desta maneira.
Mais uma vez, o reparador de estradas exibiu o número completo de seu
espetáculo. No qual decerto já atingira a perfeição, pois sua pantomima
representara a única fonte de indispensável entretenimento do vilarejo ao longo
do ano.
Jacques primeiro interrompeu-o para inquirir se havia visto o homem antes.
— Nunca — respondeu o reparador de estradas, retornando à posição
perpendicular. Jacques terceiro quis saber como o reconheceu, mais tarde.
— Por sua elevada estatura — replicou o reparador de estradas com
simplicidade, tocando a ponta do nariz com o dedo. — Quando monsieur marquês
me perguntou aquela noite: “Como era ele?”, eu respondi: “Alto como um
fantasma”.
— Podia ter dito que era pequeno como um anão — interveio Jacques
segundo.
— Que sabia eu? A coisa não estava feita ainda, nem ele confiava em mim.
Observe que, naquelas circunstâncias, nem sequer ofereci meu testemunho.
Monsieur marquês apontou-me com o dedo, eu estava perto da pequena fonte, e
esbravejou: “Traga-me aqui aquele sujeito!” Juro-lhes, messieurs, que tive de
obedecer, mas não lhe ofereci nada.
— Ele está certo, Jacques — murmurou Defarge ao que aparteara. —
Continue!
— Ótimo! — exclamou o reparador de estradas com ar de mistério. — O
homem alto fugira e deram-lhe busca... há quantos meses? Nove, dez, onze?
— O número não importa — disse Defarge. — Ele estava bem escondido,
mas, infelizmente, acabaram por encontrálo. Adiante!
— Bem. Estou eu de novo trabalhando no alto da colina e o sol se deitando
outra vez. Guardo as ferramentas para descer até minha casa na aldeia, onde já
escureceu, quando levanto os olhos e vejo seis soldados subindo o morro. No
meio deles segue um homem alto, com os braços amarrados ao lado do corpo,
assim.
Com o auxílio do indispensável barrete, imitou o homem com os cotovelos
bem presos aos quadris por cordas atadas com nós nas costas.
— Eu me escondi, messieurs, atrás da minha pilha de pedras, para ver ossoldados e seu prisioneiro passarem, pois é uma estrada tão deserta que qualquer
coisa serve de distração, e, a princípio, quando se aproximavam, só pude
constatar que eram seis soldados levando um homem alto amarrado. Pareciam
quase negros para a minha vista, exceto do lado onde o sol se deitava, onde tudo
se avermelhava, messieurs. Vi, também, que as suas sombras se alongavam pelo
lado oposto da estrada e subiam a colina, como sombras de gigantes. Reparei
depois que estavam cobertos de pó e que a poeira do caminho se movia com eles
à medida que marchavam. Mas, quando chegaram bem perto de mim,
reconheci o homem alto e ele me reconheceu também. Ah, como o homem
teria ficado contente se tivesse descido a encosta como naquela tarde em que o
encontrei, quase no mesmo lugar.
O camponês descrevia a cena como se a tivesse diante dos olhos, o que
evidenciava que observara tudo de maneira vívida. Talvez ele não houvesse visto
muitas coisas em sua vida.
— Não demonstrei aos soldados que conhecia o homem alto, nem ele
mostrou reconhecer-me. Mas nós nos reconhecemos, sabíamos disso e nos
comunicamos através dos olhos. “Vamos”, ordenou o chefe da companhia,
indicando a aldeia, “levem-no depressa à sua sepultura”, e os soldados
apressaram a marcha. Eu os segui. Os braços do prisioneiro tinham inchado
porque as cordas estavam muito apertadas; seus sapatos de madeira eram
grandes e pesados e faziam-no coxear. Como coxeasse, ia mais devagar, e, por
isso, os soldados o empurravam com as armas, assim! E imitou os movimentos
de um homem sendo impelido para a frente pelos cabos de arcabuzes.
— Quando desciam a colina correndo como loucos, ele caiu. Os soldados
riram e o puseram de pé outra vez. A poeira grudara-se em seu rosto
ensangüentado, mas o homem não podia limpá-lo. Então, riram de novo.
Chegaram finalmente à aldeia. Todo o mundo correu para ver. Passaram pelo
moinho e subiram até a prisão. O vilarejo inteiro presenciou o portão abrir-se
para o negrume da noite e tragálo, assim!
O aldeão escancarou a boca o mais que pôde e fechou-a em seguida,
rangendo sonoramente os dentes. Notando que ele não queria abrir a boca para
não estragar o efeito da pantomima, Defarge instou:
— Prossiga, Jacques.
— Toda a aldeia — continuou o reparador de estradas, baixando a voz e
pisando na ponta dos pés —, toda a aldeia rumou para a fonte; toda a aldeia
cochichou; depois, toda a aldeia dormiu e sonhou com o infeliz trancafiado atrás
das grades da prisão no desfiladeiro, de onde não sairia senão para morrer. Na
manhã seguinte, quando ia para o trabalho com as ferramentas sobre o ombro e
comendo a minha fatia de pão preto pelo caminho, dei uma volta pelo cárcere.
Lá o vi, bem no alto, atrás das barras de uma gaiola de ferro, ensangüentado e
empoeirado como na noite anterior, olhando para mim. Tinha ainda os braços
atados e não pôde fazer-me um aceno. Seus olhos me fitaram como os de um
morto.
Defarge e os outros três trocaram olhares sombrios. Durante a narrativa do
camponês, o semblante de cada um mostrava-se soturno, contido e vingativo. A
atitude de todos, agora que estavam protegidos pelo sigilo, era autoritária.Ostentavam o aspecto de juízes implacáveis. Jacques primeiro e Jacques segundo
estavam sentados sobre a enxerga, com o queixo apoiado na mão. O terceiro,
não menos atento, ajoelhado por detrás, acariciava com os dedos crispados os
lábios e o nariz. Defarge, de pé entre os três e o narrador, que se colocara perto
da janela, olhava ora para este, ora para os outros.
— Continue, Jacques — insistiu Defarge.
— Ele ficou lá, em sua gaiola de ferro, por alguns dias. O povo da aldeia o
espiava de longe, porque tinha medo. Mas sempre espiava a distância a prisão
sobre o penhasco. Ao anoitecer, terminada a tarefa do dia, nós nos reuníamos na
fonte e todos os rostos se voltavam para o cárcere. Antes, eles se voltavam para a
casa da posta, agora, para o cárcere. Tagarelava-se muito ao redor da fonte. Uns
diziam em voz baixa que ele não seria executado; diziam que haviam sido
apresentadas petições, provando que enlouquecera com a morte do filho; diziam
até mesmo que uma dessas petições havia chegado às mãos do próprio rei. Que
sei eu? É possível. Talvez sim, talvez não.
— Então, ouça, Jacques — interpôs o número um do nome severamente
imposto: — Saiba que uma das petições foi apresentada ao rei e à rainha. Todos
nós, com exceção de você, vimos o rei recebê-la, na sua carruagem, ao lado da
rainha. Foi Defarge quem, pondo em risco a vida, lançou-se na frente dos
cavalos com a petição nas mãos.
— E mais uma vez, ouça, Jacques — aparteou o Jacques que estava
ajoelhado atrás dos companheiros, seus dedos vagando de um lado para o outro
convulsivamente, com avidez, como se buscassem alguma coisa que nada tinha a
ver com comida ou bebida —, a guarda real com seus cavalos e pés cercou-o e o
agrediu. Está ouvindo, Jacques?
— Estou sim, messieurs.
— Então, continue — interveio Defarge.
— Nas conversas da fonte — prosseguiu o camponês —, havia outros que
diziam que ele fora trazido à aldeia a fim de ser levado à morte no mesmo local
do crime, e que certamente seria executado. Comentavam até que, por ter
assassinado monseigneur e sendo monseigneur o pai de seus feudatários, ou
servos, como preferirem, seria executado na qualidade de parricida. Um dos
velhos do vilarejo afirmou que a mão direita do prisioneiro, armada com o
punhal, seria queimada sob a vista dele. Em seguida, nas feridas que lhe fariam
nos braços, peito e pernas, derramariam azeite fervente misturado com chumbo
derretido, resina, cera e enxofre, e finalmente o esquartejariam com a ajuda de
quatro cavalos fortes. Segundo o velho, tudo isso fora feito com um homem que
atentara contra a vida do rei Luís XV[141]. Mas como eu poderia saber se estava
mentindo, se não sou letrado?
— Nesse caso, ouça ainda uma vez, Jacques — replicou o homem da mão
irrequieta e de aspecto ávido. — O nome do prisioneiro era Damiens e o
executaram desse modo em plena luz do dia, nas ruas desta cidade de Paris.
E nada foi mais notado, na vasta platéia que assistiu ao espetáculo, do que a
multidão de damas distintas e elegantes que permaneceram ali, atentas, até o
final, até o final Jacques, quando já a noite caía e ele, tendo perdido as duas
pernas e um braço, ainda respirava! Isso aconteceu há... qual é a sua idade?— Trinta e cinco anos — respondeu o reparador de estradas, que aparentava
sessenta.
— Isso aconteceu quando você contava mais de dez anos. Podia ter assistido.
— Basta! — gritou Defarge, impaciente. — Com os diabos! Continue.
— Está bem. Uns cochichavam isto, outros cochichavam aquilo. Não se
falava de outra coisa. Até a fonte parecia murmurar sobre o caso. Por fim, numa
noite de domingo, quando toda a aldeia dormia, vários soldados desceram da
prisão arrastando as armas pelas pedras da pequenina rua. Lavradores cavaram,
os carpinteiros manejaram suas ferramentas, os soldados riram e cantaram. De
manhã, junto à fonte, erguia-se uma forca de doze metros de altura,
envenenando-lhe a água.
O reparador de estradas olhou através do teto do sótão, e não para ele, e
apontou como se avistasse a forca em algum ponto do céu.
— Toda a atividade cessou. Ninguém levou as vacas para o pasto e estas
ficaram ali com as pessoas reunidas em torno da fonte. Ao meio-dia, ouviu-se o
rufar de tambores. Os soldados, que haviam marchado de volta para a prisão
durante a madrugada, retornavam com o condenado. Ele vinha amarrado como
antes, e em sua boca havia uma mordaça apertada de tal forma que ele parecia
rir — o camponês fez a mímica, pregueando as faces com os polegares dos
cantos da boca às orelhas. — No alto da forca, tinham colocado o punhal, com a
lâmina virada para cima, com a ponta para o ar. Ele foi enforcado ali, a doze
metros de altura, e lá ficou dependurado, envenenando a água da fonte.
Os quatro ouvintes olharam uns para os outros, enquanto o reparador de
estradas usava o barrete azul para enxugar o rosto, que se banhara de suor
quando ele recordou o espetáculo.
— É assustador, messieurs. Como podem as mulheres e as crianças tirar
água da fonte? Quem consegue conversar ao anoitecer, sob a sombra do
enforcado? Sob aquela sombra, compreendem? Quando deixei o vilarejo,
segunda-feira à tarde, o sol se deitava. Chegando ao alto da colina, voltei o rosto e
vi a sombra sobre a igreja, sobre o moinho, sobre o cárcere. Parecia alcançar,
messieurs, até o ponto onde a terra se junta com o céu.
O homem faminto roía as unhas, fitando os companheiros, e os seus dedos
crispavam-se com a avidez que o devorava.
— Isso é tudo, messieurs. Saí da aldeia ao pôr-do-sol, como me haviam
instruído, e andei durante toda a noite e metade do dia seguinte, até que encontrei
esse camarada, como me avisaram que encontraria. Junto com ele, continuei o
caminho, ora a pé, ora a cavalo, pelo resto do dia de ontem e pela noite passada.
E aqui estou!
Depois de um lúgubre silêncio, o primeiro Jacques observou:
— Muito bom! O senhor contou e representou com fidelidade. Poderia sair e
esperar por nós do lado de fora da porta um momento?
— Com prazer — replicou o reparador de estradas, a quem Defarge
acompanhou até o topo da escada, deixou-o lá sentado e regressou. Os outros três
se haviam levantado e conversavam, bem próximos, quando Defarge entrou.
— Que lhe parece, Jacques? — perguntou o número um. — Deve ser
registrado?— Deve, sim — respondeu o taberneiro. — Como condenação à destruição.
— Magnífico! — cacarejou o homem ávido.
— O castelo e toda a família? — indagou Jacques primeiro. — O castelo e
toda a família — retorquiu Defarge. —
Extermínio. O homem faminto repetiu, num cacarejo extasiado:
— Magnífico! — roendo as unhas da outra mão.
— Tem certeza — inquiriu o segundo Jacques a Defarge
— de que nosso modo de manter os registros não nos trará nenhum
problema? Sem dúvida, o método é seguro, pois ninguém, além de nós, pode
decifrar os registros. Mas... será que saberemos sempre decifrá-los... será que
ela conseguirá?
— Jacques — replicou Defarge com orgulho —, se madame, minha esposa,
foi capaz de memorizar cada registro, ela não perderá uma só palavra, nem uma
sílaba sequer. Gravados nos pontos de tricô em símbolos que ela mesma criou,
serão para madame claros como o sol. Confie em madame Defarge. É mais
fácil o último dos covardes apagar sua própria existência do que apagar-se da
malha de minha mulher uma letra do seu nome ou da lista dos seus crimes. Um
murmúrio de aprovação e confiança acolheu essas palavras, e o homem ávido
indagou:
— Devemos mandar logo esse camponês de volta ao vilarejo? Espero que
sim. Ele é muito simplório. Não seria um tanto perigoso?
— O homem não sabe de nada — ponderou Defarge —. Ao menos, nada
além do que poderia facilmente içá-lo para uma forca da mesma altura que
descreveu. Encarrego-me dele. Deixe-o comigo. Tomarei conta do pobre diabo e
o mandarei embora quando convier. Ele deseja ver o rei, a rainha e toda a corte.
Proponho-me a dar-lhe esse prazer no domingo.
— O quê? — exclamou o homem ávido, arregalando os olhos. — Não seria
um mal sinal, esse desejo de ver a realeza e a nobreza?
— Jacques — disse Defarge —, se quer que um gato tenha sede, acene-lhe
com leite; e ponha um cão diante da presa, se quiser que ele a ataque um dia.
Nada mais foi dito. Ao saírem, encontraram o camponês cochilando no topo
da escada. Aconselharam-no a ir deitar-se na enxerga para repousar. O homem
não necessitava de persuasão e logo caiu num sono profundo.
Havia em Paris alojamentos piores do que a taberna de Defarge para um
escravo tacanho como aquele. Exceto por um misterioso receio de madame
Defarge, que o assombrava constantemente, a nova vida do reparador de
estradas agradava-o plenamente. Entretanto, a dona da casa permanecia o dia
inteiro na taberna sem lhe prestar a menor atenção, tão determinada a não
perceber que a presença dele ali tivesse conexão com qualquer coisa oculta sob a
superfície, que ele estremecia em seus sapatos de madeira sempre que seus
olhos se fixavam nela. Refletia com seus botões que era impossível prever o que
a dama simularia em seguida e convencera-se de que, se lhe desse na cabeça
afirmar que o tinha visto matar e esfolar alguém, não vacilaria em coisa alguma
até o fim e continuaria a afirmar o mesmo até vê-lo enforcado.
Assim, pois, quando chegou o domingo, o reparador de estradas não ficou
satisfeito, embora declarasse o contrário, ao descobrir que madame Defarge osacompanharia a Versalhes[142]. Era desconcertante ter a seu lado, durante todo
o caminho, uma mulher tricotando ininterruptamente em público; e ainda mais
desconcertante era aquele tricô nas mãos dela no meio da multidão que esperava
para ver a chegada do rei e da rainha.
— A senhora trabalha bastante — observou um homem que estava por
perto.
— Sim — respondeu madame Defarge —, tenho muito o que fazer.
— Que tipo de malhas a senhora tece?
— Vários tipos.
— Quais?
— Por exemplo — ripostou madame Defarge, tranqüilamente —,
mortalhas.
O homem afastou-se assim que pôde, e o reparador de estradas começou a
abanar-se com o barrete azul, sentindo o tempo subitamente quente e opressivo.
Se ele precisava de um rei e uma rainha para restabelecer-se, teve sorte em
encontrar o remédio à mão, pois, pouco depois, o rei com uma grande mandíbula
e a rainha com um belo rosto chegaram em sua carruagem dourada, escoltados
pelo resplandecente “Olho de Boi” de sua corte[143], uma cintilante multidão de
damas sorridentes e lordes elegantes. Diante de tantas jóias e tanta seda, de tantas
figuras empoadas, esplendorosas, luxuosamente trajadas, e dos rostos belos e
desdenhosos dos nobres de ambos os sexos, o camponês ficou a tal ponto
entusiasmado que, no meio da sua exaltação, ergueu vivas ao rei, à rainha, aos
grandes senhores, a tudo e a todos, como se não tivesse ouvido os estranhos
Jacques. Em seguida, admirando os jardins, as galerias, os terraços, as fontes e os
bancos de relva e contemplando novamente o rei, a rainha e toda a comitiva,
tornou a erguer vivas, ficando tão comovido que desatou a chorar. Durante três
horas, ele gritou e soluçou como criança. Defarge segurava-o pelo colarinho,
como para evitar que, levado por tão grande arrebatamento, ele se atirasse sobre
os objetos daquela devoção momentânea, rompendo-os em pedaços.
— Bravo! — elogiou o taberneiro, batendo-lhe no ombro, quando o
espetáculo terminou. — Você é um bom rapaz.
O reparador de estradas, voltando a si, ficou confuso, julgando ter cometido
um erro ao entregar-se àqueles arroubos. Mas, não... não cometera nenhum erro.
— Você é o companheiro que desejávamos — murmurou-lhe Defarge ao
ouvido. — Fez os idiotas pensarem que isso durará para sempre. Contudo, a
insolência deles está no fim.
— Ei! — exclamou o reparador de estradas com ar pensativo. — É verdade.
— Esses tolos não desconfiam de nada. Enquanto desprezam o ar que você
respira, e o impediriam de respirar para sempre, não só a você, mas a todos da
sua espécie, preferindo a morte de cem pessoas de sua classe à morte de um de
seus cavalos ou cães, eles só sabem o que o seu bafejo lhes conta. Que essas
manifestações os enganem. Não os enganarão por muito tempo mais.
Madame Defarge olhou para o hóspede com ar de superioridade e inclinou
a cabeça em confirmação.
— Quanto ao senhor — ela comentou —, creio que gritará e chorará por
qualquer coisa colorida e ruidosa. Estou enganada? Diga!— Para falar a verdade, madame, acho que tem razão. No momento.
— Se lhe apontassem uma porção de bonecas, para que as fizesse em
pedaços e as despojasse para seu proveito, o senhor escolheria a mais brilhante e
a mais rica. Não é?
— Decerto, minha senhora.
— E se o pusessem diante de um bando de pássaros que não pudessem voar
e o mandassem arrancar-lhes a plumagem para seu proveito, o senhor escolheria
os que tivessem a plumagem mais vistosa. Não é?
— É fato, minha senhora.
— Pois o senhor viu aqui magníficas bonecas e pássaros de rica plumagem
— declarou madame Defarge, indicando o lugar onde acabara de ser
representado o espetáculo. — Agora, volte para casa!XVI. Madame Defarge Continua a Tricotar
CAPÍTULO XVI
MADAME DEFARGE CONTINUA A TRICOTAR
Enquanto madame Defarge e monsieur seu marido regressavam amistosamente
ao coração de Santo Antônio, uma mancha com um barrete azul se movia por
entre as sombras e pela poeira, descendo as intermináveis alamedas na beira da
estrada, lentamente rumando para o ponto em que o castelo de monsieur
marquês, agora em seu túmulo, ouvia as árvores farfalhantes. Tão vastas horas
possuíam as faces pétreas para escutar as árvores e a fonte que os poucos
espantalhos da aldeia que, em busca de ervas para comer e pedaços de lenha
para queimar, extraviavam-se na direção do castelo e se viam diante do grande
pátio e da escadaria de pedra, julgavam perceber, em seu desvario de fome, que
as faces se haviam alterado. Acabara de correr no vilarejo o rumor, que teve ali
uma vida tão débil e curta quanto a dos aldeões, de que, quando a faca matou o
dono do castelo, a expressão daquelas faces deixou de ostentar orgulho para
mostrar raiva e dor. Também se dizia que, no dia em que o infeliz fora pendurado
na forca de doze metros de altura erguida ao lado da fonte, sua expressão tornara
a mudar, passando a exibir, desse momento em diante, um ar cruel de vingança
cumprida. Na pétrea face sobre a grande janela do aposento onde o assassinato
fora perpetrado, percebiamse duas rugas profundas que lhe sulcavam o nariz, as
quais, até então, ninguém havia notado; e, nas raras ocasiões em que dois ou três
camponeses maltrapilhos emergiam da multidão para espiar apressadamente o
rosto petrificado de monsieur marquês, estes logo fugiam espavoridos por entre
as folhas e o musgo, como as lebres mais afortunadas que conseguiam viver ali,
e tão rápido que um dedo descarnado não lhes teria apontado na direção por um
minuto sequer.
Castelos e cabanas, pétreas máscaras e esqueleto de enforcado, manchas de
sangue nas pedras do chão, água pura do poço da aldeia, milhares de acres de
terra, toda uma província da França, a própria França, jaziam sob o céu noturno,
condensados numa única e frágil linha. Assim o mundo inteiro, com sua grandeza
e insignificância, jaz numa estrela tremeluzente. Do mesmo modo como o
simples conhecimento humano é capaz de decompor um raio de luz[144] e
analisar-lhe a estrutura, assim também as inteligências mais sublimes podem ler,
no flébil cintilar desta nossa Terra, cada pensamento e ato, cada vício e virtude de
cada criatura que o concebeu.
Os Defarge, marido e mulher, chegaram, sacolejando sob as estrelas na
carruagem pública, àquele portão de Paris[145] ao qual sua jornada
naturalmente conduzia. Houve a parada habitual na barreira, e as habituais
lanternas iluminaram-lhes os rostos para a habitual inspeção e interrogatório.Defarge desceu da carruagem, pois conhecia um ou dois dos soldados da guarda
e um agente de polícia, com quem mantinha tão íntima amizade que o abraçou
afetuosamente.
Quando o bairro de Santo Antônio envolveu novamente o casal Defarge em
suas sombrias asas, e eles, tendo finalmente desembarcado perto dos limites do
Santo, faziam a pé o último trecho do percurso pela lama e detritos das ruas,
madame Defarge indagou ao marido:
— Diga, meu amigo, o que o Jacques da polícia lhe contou?
— Bem pouco, esta noite, mas era tudo quanto sabia. Há outro espião
comissionado para o nosso bairro. Ele imagina que haja muitos mais, porém não
conhece nenhum outro.
— É... — suspirou madame Defarge, erguendo as sobrancelhas com um
frio ar de negócios. — É necessário registrá-lo. Como chamam esse homem?
— É um inglês.
— Tanto melhor. Qual o nome?
— Barsad — informou o taberneiro, afrancesando o nome. Contudo, tivera
tanto cuidado para entendê-lo com precisão que pôde soletrá-lo com uma
exatidão perfeita.
Barsad — ecoou madame. — Bom. Nome de batismo?
— John.
— John Barsad — repetiu a mulher, depois de murmurá-lo para si mesma.
— Sabem que aparência tem?
— Idade, em torno de quarenta anos; altura, cerca de um metro e setenta e
cinco; cabelos negros, pele amorenada; em termos gerais, mais para bonito do
que para feio; olhos escuros, rosto fino, comprido e pálido; nariz aquilino e
ligeiramente torto, com uma tendência peculiar a inclinar-se para a bochecha
esquerda; fisionomia sinistra.
— Por Deus. É um verdadeiro retrato! — exclamou madame, rindo. —
Será registrado amanhã.
Entraram na taberna, que estava fechada, pois já era meia-noite. Madame
Defarge imediatamente assumiu seu posto atrás do balcão, contou as parcas
moedas que haviam sido recebidas na sua ausência, conferiu o estoque,
examinou as anotações no livro-caixa, acrescentou outras, interrogou o
empregado de todas as formas possíveis e finalmente dispensou-o para que se
recolhesse. Então, esvaziou pela segunda vez o jarro que continha as pequenas
moedas e amarrou-as num lenço, numa corrente de nós separados, para guardá-
las com maior segurança durante a madrugada. Nesse ínterim, Defarge, com o
cachimbo na boca, andava de um lado para o outro, admirando-a
complacentemente e em momento algum interferindo. Era, na verdade, com
essa postura de não interferência, no que se referia tanto aos negócios quanto aos
assuntos domésticos, que ele caminhava de um lado para o outro pela vida.
A noite estava quente e a taberna, fechada e cercada por tão imunda
vizinhança, cheirava mal. O olfato de monsieur Defarge não era nem um pouco
aguçado, porém o estoque de vinho apresentava um odor mais forte do que o
usual, o mesmo ocorrendo com o de rum, o de conhaque e o de anis. Soltando
uma baforada, espantou o fedor para longe e desfez-se do cachimbo apagado.— Você está fatigado — declarou madame, levantando os olhos enquanto
amarrava o dinheiro. — É o mesmo cheiro de todos os dias. Não há outro.
— É, estou um pouco cansado — admitiu o marido.
— E um pouco deprimido, também — prosseguiu madame, cujos olhos
argutos jamais se concentraram com tanta intensidade nas contas, embora se
desviassem uma vez ou duas para ele. — Oh, os homens, os homens!
— Mas, minha querida... — principiou Defarge.
— “Mas, minha querida”! — ecoou madame, balançando a cabeça com
firmeza. — “Mas, minha querida”! Você está medroso, esta noite, meu caro!
— E por que não? — confessou Defarge, num impulso de franqueza. — Está
demorando demais!
— Está demorando demais — madame repetiu. — E quando é que não
demora? A vingança exige tempo. É a regra.
— Não demora nada para um raio aniquilar um homem! — replicou
Defarge.
— Mas quanto tempo é preciso — inquiriu madame, pausadamente — para
se formar a tempestade? Diga-me.
Defarge ergueu a cabeça pensativamente, como se aquele ponto merecesse
uma profunda reflexão.
— Não demora muito — continuou madame — para um terremoto tragar
uma cidade. É... bem! Sabe dizer-me quanto tempo é necessário para preparar
um terremoto?
— Um longo período, suponho — ripostou o taberneiro.
— Entretanto, quando está pronto, destrói tudo o que existe à sua frente. Não
esqueça, contudo, que seus preparativos foram demorados e silenciosos.
Ninguém os viu nem ouviu. Que isso lhe sirva de consolo. Deu mais um nó no
lenço, com os olhos cintilando, como se tivesse acabado de estrangular um
inimigo.
— Eu lhe garanto — prosseguiu, estendendo a mão como para enfatizar as
palavras — que, malgrado se demore na estrada, está na estrada e a caminho.
Fique certo de que nunca retrocede, nunca pára, mas avança sempre. Olhe em
tor-no, considere as vidas em todo o mundo que conhecemos, considere as faces
em todo o mundo que conhecemos, considere a raiva e a insatisfação aos quais a
Jacquerie se dirige com mais e mais convicção a cada hora. Acha que essa
situação pode durar muito mais? Bah! Seu desânimo me faz rir!
— Minha corajosa esposa — retrucou Defarge, detendo-se diante dela com
a cabeça ligeiramente curvada e as mãos cruzadas atrás das costas, como um
catecúmeno dócil e atento perante seu catequista —, não questiono nada do que
disse. Mas a espera tem sido demasiado longa, e é possível... você sabe, minha
esposa, que é possível... que jamais aconteça durante nossas vidas.
— Ora... e daí? — inquiriu madame, fazendo outro nó como se estrangulasse
outro inimigo.
— Bem! — exclamou Defarge, sacudindo os ombros com ar de lamento e
desculpa. — Não testemunharemos o triunfo.
— Mas teremos participado dele — argumentou madame, estendendo a
mão energicamente. — Nada do que fizermos será em vão. Acreditofirmemente que testemunharemos o triunfo. Entretanto, mesmo que tal não
ocorra, e até se tivesse certeza de que não ocorreria, mostre-me o pescoço de
um aristocrata, de um tirano, e, ainda assim, eu... Então, madame, rangendo os
dentes, amarrou um nó verdadeiramente terrível.
— Espere! — bradou Defarge, corando um pouco como se a esposa o
houvesse acusado de covardia. — Eu tampouco recuaria diante de coisa alguma.
— Sim, é claro. Sua fraqueza, porém, é que, para sustentar a luta, por vezes
necessita ter diante dos olhos a sua vítima e a sua oportunidade. Sustente-a sem
isso. Quando chegar o momento, liberte o tigre e o demônio que existem em
você. Até lá, mantenha o tigre e o demônio enjaulados, e escondidos, embora
prontos para o combate.
Madame Defarge reforçou a conclusão de seu conselho batendo o lenço
cheio de moedas sobre o balcão como se lhe quisesse arrancar os miolos fora e,
então, guardando o lenço debaixo do braço com um movimento sereno, observou
que já era hora de irem dormir.
A manhã seguinte encontrou a admirável mulher em seu lugar costumeiro,
atrás do balcão da taberna, tricotando com afã. Uma rosa jazia ao seu lado, e
quando madame, de quando em vez, relanceava os olhos para a flor, fazia-o com
o habitual olhar absorto. Havia poucos fregueses espalhados pela taberna,
bebendo ou não, sentados ou de pé. O dia estava muito quente e nuvens de
moscas, que estendiam suas inquisitivas e aventurosas incursões até os copos
pegajosos colocados junto de madame, caíam no fundo deles, mortas. A sua
morte não produzia a menor impressão nas outras moscas aventureiras, que
olhavam as defuntas com frieza, como se elas mesmas fossem elefantes, ou
qualquer coisa assim diferente, até encontrarem destino idêntico. É interessante
notar quão irrefletidas são as moscas!, talvez refletissem tanto quanto se refletia
na corte, naquele ensolarado dia de verão.
Uma figura atravessou o umbral e lançou sobre madame Defarge uma
sombra, que ela sentiu pertencer a um estranho.
Pousou a malha sobre o balcão e prendeu a rosa no toucado antes de voltar o
rosto para o homem que acabara de entrar.
Fato curioso. No momento em que madame Defarge pegou na rosa, os
fregueses pararam de conversar e começaram a sair da taberna, um após o
outro.
— Bom dia, madame — o recém-chegado cumprimentou.
— Bom dia, monsieur.
Madame Defarge respondera em voz alta, mas acrescentou consigo
mesma, ao retomar o tricô: “Ha! Bom dia, quarenta anos, um metro e setenta e
cinco, cabelos negros, pele amorenada, olhos escuros, rosto comprido e pálido,
nariz aquilino e ligeiramente torto, com uma peculiar inclinação para a bochecha
esquerda que lhe confere uma fisionomia sinistra. Bom dia para todos!”.
— Tenha a bondade de servir-me um cálice de conha
que e um copo de água fresca, madame. Madame Defarge obedeceu com
polidez.
— Excelente conhaque, madame!
Era a primeira vez que aquele conhaque recebia um elogio, porém madameDefarge conhecia bem o que o motivara. Replicou, contudo, que o conhaque era
sempre elogiado e continuou a tricotar. O visitante observou-lhe os dedos por
alguns momentos e aproveitou a oportunidade para examinar a taberna em geral.
— É muito hábil no tricô, madame.
— Estou acostumada.
— E o desenho é lindo!
— O senhor acha? — redargüiu madame, fitando-o com um sorriso.
— Definitivamente. Pode-se perguntar a que se destina essa malha?
— É só um passatempo — respondeu madame Defarge, olhando-o ainda
com um sorriso enquanto movia os dedos com agilidade.
— Não será para uso?
— Depende. Pode ser que lhe dê um bom uso, qualquer dia desses. Se o
fizer... bem — ripostou madame, soltando um suspiro e balançando a cabeça
com rígido coquetismo —, eu o usarei!
Fato notável. O senso estético de Santo Antônio parecia decididamente opor-
se à rosa no toucado de madame Defarge. Dois homens que entraram separados
e estavam prestes a pedir vinho, ao se depararem com aquela novidade,
hesitaram; fingindo ter entrado para procurar algum amigo que não se
encontrava ali, foram embora. Como também não se encontrava ali nenhum dos
fregueses que estavam na taberna antes de o visitante chegar. Todos haviam
saído. O espião mantivera os olhos bem abertos, mas não detectara nenhuma
troca de sinais. Tinham saído um atrás do outro, de forma inocente, casual,
totalmente natural e impossível de impedir.
“John”, pensou madame, contando os pontos enquanto seus dedos
trabalhavam, e fixando os olhos no estranho. Refletiu com seus botões: “Fique
mais um pouco, para que eu possa tecer ‘Barsad’ antes que se vá”.
— A senhora tem marido, madame?
— Tenho.
— Filhos?
— Não.
— Os negócios vão mal?
— Vão muito mal. O povo é muito pobre.
— Ah, o desafortunado e miserável povo! Tão oprimido, como a senhora
diz.
— Como o senhor diz — madame corrigiu-o com maus modos, destramente
acrescentando ao nome de Barsad alguns pontos que nada de bom pressagiavam
para ele.
— Perdão. Decerto fui eu que disse, mas a senhora naturalmente pensa
como eu. É claro.
— Eu penso? — retrucou madame, alteando a voz. — Eu e meu marido
temos bastante o que fazer para conservar o nosso estabelecimento aberto. Não
há tempo para pensar, a não ser em nossa sobrevivência. Essa é a única coisa em
que nós pensamos, e já nos ocupa a cabeça de manhã até a noite, sem
precisarmos nos afligir com os problemas alheios. Eu pensar nos outros? Não e
não.
O espião, que fora até lá para recolher as migalhas que pudesse encontrarou fabricar, não se permitiu trair a própria frustração com uma expressão
sinistra. Manteve a postura de cordial tagarelice, apoiando o cotovelo no balcão
de madame Defarge e, ocasionalmente, sorvendo goles de seu conhaque.
— Que tristeza, madame, foi a execução de Gaspar. Ah! O pobre Gaspar!
— exclamou, com um suspiro piedoso.
— Ora essa! — replicou madame com serena indiferença. — Quando
alguém usa uma faca com esse propósito, tem de pagar. Ele sabia qual era o
preço, mas ainda assim quis dar-se ao luxo... pagou.
— Eu acredito — comentou o espião, abaixando a voz para um tom que
convidava a confidências, e exprimindo uma insultada suscetibilidade
revolucionária em cada músculo de sua maldosa face —, acredito que haja
muita compaixão e raiva neste bairro, por causa do infeliz sujeito. Aqui entre nós,
não é verdade?
— Há? indagou madame Defarge, com ar vago.
— E não há?
— Ah! Aí vem meu marido — madame Defarge anunciou.
Quando o taberneiro cruzou a porta, o espião tocou o chapéu à guisa de
saudação e cumprimentou, com um insinuante sorriso:
— Bom dia, Jacques! Defarge estacou e olhou fixamente para ele.
— Bom dia, Jacques! — repetiu o espião, já não tão confiante, o sorriso
empalidecendo nos lábios.
— Está enganado, monsieur — replicou o taberneiro.
— Confundiu-me com outra pessoa. Esse não é o meu nome. Eu sou Ernesto
Defarge.
— Dá na mesma — retrucou o espião, airosamente, mas também
desconcertado. — Bom dia!
— Bom dia — respondeu Defarge, com secura.
— Estava dizendo à madame, com quem tive o prazer de conversar um
pouco, que, segundo me contaram, há, o que não me espanta, muita comiseração
e raiva em Santo Antônio, por causa do infeliz destino do pobre Gaspar.
— Pois a mim não contaram nada — rebateu Defarge.
— Não sei de nada a respeito.
Dizendo isso, passou para trás do balcão e apoiou as mãos no espaldar da
cadeira da mulher, fitando por sobre essa barreira a pessoa a quem ambos se
opunham e que teriam varado com um tiro com a maior satisfação.
O espião, hábil no seu ofício, não mudou de atitude, mas esvaziou o cálice,
tomou um gole de água e pediu outro conhaque. Madame Defarge serviu-o e,
apanhando de novo o tricô, cantarolou baixinho.
— O senhor parece conhecer muito bem este bairro. Será que o conhece
melhor do que eu? — observou Defarge.
— De modo algum; mas espero conhecê-lo melhor. Interesso-me
profundamente por seus miseráveis habitantes.
— Ah! exclamou Defarge.
— O prazer que sinto em conversar com o senhor, monsieur Defarge, me
traz à lembrança — prosseguiu o espião — que eu andei fazendo umas
associações interessantes com o seu nome.— É mesmo? — redargüiu Defarge com grande indiferença.
— É, sim. Quando o doutor Manette foi libertado, sei que o senhor, seu
antigo criado, passou a tomar conta dele. Na verdade, ele foi direto da masmorra
para a sua casa. Vê como estou bem informado?
— Esses são os fatos — admitiu Defarge. Um leve empurrão do cotovelo de
sua mulher, que continuava trabalhando, indicara a Defarge que era melhor
responder, embora sem se alongar muito.
— Foi ao senhor — continuou o espião — que a filha dele recorreu. E foi de
seus cuidados que a moça o retirou, acompanhada por um distinto cavalheiro...
como se chamava? Usava uma peruca curta e um terno marrom... ah! Seu nome
era Lorry, do Banco Tellson, de Londres.
— Tudo isso é exato — confirmou Defarge.
— São recordações muito interessantes! — comentou o espião. — Conheci o
doutor Manette e sua filha na Inglaterra.
— Ah, é? — disse Defarge.
— O senhor recebe notícias deles com freqüência? — perguntou o espião.
— Não, senhor — respondeu Defarge.
— Na realidade — interveio madame, erguendo os olhos do tricô e
interrompendo a canção que cantarolava —, nunca recebemos nenhuma notícia
deles. Soubemos que chegaram com segurança a Londres e depois chegaram
umas duas cartas da senhorita Manette. A partir daí, eles começaram a cuidar de
suas vidas, e nós, da nossa, e a correspondência cessou.
— Perfeitamente, madame — replicou o espião. — A senhorita Manette vai
se casar.
— Vai se casar? — ecoou madame. — Ela era muito bonita, já devia ter-se
casado há muito tempo. Vocês, ingleses, são muito frios, parece-me.
— Oh! A senhora sabe que sou inglês.
— Percebi pela sua língua — volveu madame. — E o que a língua é,
suponho que seu dono também seja.
Ele não acatou a identificação como um cumprimento. Contudo, procurou
lidar com a situação da maneira mais adequada possível, soltando uma
gargalhada. Depois de beber um gole de conhaque, acrescentou:
— A senhorita Manette vai se casar, mas não com um inglês, e sim com um
rapaz que, como ela, é francês de nascimento. Mas, por falar em Gaspar, ah,
pobre Gaspar!, não é uma coincidência que a senhorita Manette vá desposar
justamente o sobrinho de monsieur marquês, por cuja morte Gaspar foi
dependurado naquela forca de tantos metros de altura, por conseguinte, o atual
marquês? Ele, porém, vive incógnito na Inglaterra. Lá, o nosso marquês não usa
nenhum título, sendo conhecido como senhor Charles Darnay. Deve ser uma
adaptação do nome da família de sua mãe, D’Aulnais.
Madame Defarge tricotava, impassível, mas a informação exercera um
efeito perceptível sobre seu marido. Não importava o que fizesse atrás do
pequeno balcão, como, por exemplo, acender o cachimbo, ele se mostrava
visivelmente perturbado, e suas mãos tremiam. O espião não seria digno de sua
profissão se deixasse de perceber e de registrar aquela reação.
Feita ao menos essa descoberta, que só o tempo diria se possuía algum valor,e não vendo mais fregueses que o auxiliassem a encontrar novos indícios, o
senhor Barsad pagou a conta e preparou-se para ir embora, aproveitando a
oportunidade para dizer, com muita amabilidade, que ansiava por encontrar
monsieur e madame Defarge outra vez. Por alguns minutos depois que o espião
atravessou a porta e imergiu em Santo Antônio, marido e mulher permaneceram
na mesma posição em que ele os deixara, para o caso de Barsad retornar.
— Será verdade — inquiriu Defarge em voz baixa, fitando a esposa e
fumando com a mão apoiada no espaldar de sua cadeira — o que ele disse sobre
Mam’selle Manette?
— Vindo a informação de quem veio — replicou madame, erguendo
ligeiramente as sobrancelhas —, provavelmente é mentira. Mas talvez não o
seja.
— Se for verdade... — principiou Defarge, e parou.
— Se for verdade? — repetiu a esposa.
— E se chegarmos a ver o triunfo da nossa causa... espero, em consideração
a ela, que o destino mantenha seu marido longe da França.
— O destino de seu marido — retrucou madame Defarge com sua habitual
serenidade — o conduzirá ao lugar certo, onde encontrará o fim que lhe cabe. É
só o que sei.
— Contudo, não é estranho... embora, talvez, não seja tão estranho assim —
ponderou Defarge, mais suplicando do que induzindo a esposa a admitir —, que,
a despeito de toda a nossa compaixão para com monsieur doutor e para com ela
mesma, o nome do marido esteja sendo condenado por suas mãos neste exato
instante, junto com o desse cão do inferno que acabou de sair?
— Coisas muito mais estranhas acontecerão quando chegar o momento —
ripostou madame. — Tenho os dois nomes aqui, é certo. E ambos foram inscritos
em minha malha por merecimento próprio. E é o bastante.
Enrolou o trabalho e tirou a rosa do lenço que lhe servia de toucado. Ou
Santo Antônio descobriu por instinto que o desagradável adorno fora descartado
ou soube-o por aguardar vigilante o seu desaparecimento. Fosse como fosse, o
Santo armou-se de coragem para entrar na taberna pouco depois, e o
estabelecimento retomou seu aspecto habitual.
Ao anoitecer, hora em que todos em Santo Antônio saíam de suas casas e se
sentavam nas soleiras e no parapeito das janelas, quando não iam vasculhar as
esquinas e pátios imundos à procura de um ar mais puro para respirar, madame
Defarge também costumava sair com o seu trabalho debaixo do braço,
passeando de grupo em grupo, falando em voz baixa: era uma verdadeira
missionária, e havia muitos como ela, da espécie que o mundo faria bem em
jamais abrigar novamente. Todas as mulheres tricotavam. Tricotavam malhas
sem valor, mas o trabalho mecânico substituía mecanicamente a bebida e a
comida, já que as mãos se moviam em vez das mandíbulas e do aparelho
digestivo; se os dedos magros se imobilizassem, a fome reclamaria mais alto nos
estômagos vazios.
Contudo, à medida que os dedos se moviam, carregavam junto os olhos e os
pensamentos. Enquanto madame Defarge ia de um grupo a outro, dedos, olhos e
pensamentos corriam mais depressa e com maior ferocidade entre as mulherescom quem ela havia conversado e deixado para trás.
O marido fumava na porta, contemplando a esposa com admiração.
— Extraordinária mulher! — murmurava ele. — Que mulher forte,
grandiosa e assustadora! A noite caiu de todo e ouviu-se então o soar dos sinos e o
rufar distante dos tambores militares[146] no pátio do palácio. As mulheres
continuavam sentadas a tricotar, a tricotar, envolvidas pelas trevas noturnas.
Trevas ainda mais profundas se fechariam a seu redor quando os sinos das
igrejas, que naquele instante badalavam alegremente em toda a França,
fundissem-se num trovejante canhão[147], quando os tambores militares
retumbassem para abafar uma lamentosa voz[148] que seria tão potente quanto a
voz do Poder, da Fartura, da Liberdade e da Vida. Eram tantas as sombras que se
adensavam em torno daquelas mulheres que tricotavam, tricotavam, que elas
próprias se fechavam ao redor de uma estrutura ainda por construir, diante da
qual se sentariam a tricotar, a tricotar e a contar o número de cabeças
decepadas. XVII. Uma Noite
CAPÍTULO XVII
UMA NOITE
Jamais o sol se ocultara com um brilho mais radioso, naquela esquina tranqüila
do Soho, do que naquele memorável entardecer em que o médico e sua filha
sentaram-se juntos debaixo do plátano. Jamais a lua surgira derramando um
esplendor mais suave sobre a grande Londres do que naquele anoitecer em que
iluminou os rostos de pai e filha através da folhagem.
Lucie se casaria no dia seguinte. Havia reservado para seu pai aquela última
tarde e ali estavam os dois sozinhos, sob a árvore.
— Está contente, meu querido pai?
— Muitíssimo, minha criança.
Tinham falado pouco, conquanto estivessem ali havia um longo tempo.
Mesmo quando havia luz bastante para trabalhar e ler, ela não se dedicara a seu
trabalho costumeiro nem lera para seu pai. Sob aquela mesma árvore, fizera as
duas coisas muitas e muitas vezes. Aquele dia, porém, era diferente de todos os
outros e nada poderia torná-lo igual.
— E eu estou muito contente esta noite, pai querido. Sinto-me
profundamente feliz pelo amor com que o céu me abençoou, meu amor por
Charles e o dele por mim. Todavia, se não pudesse mais dedicar-me ao senhor,
ou se meu casamento ameaçasse separar-nos, ainda que fosse uma distância de
algumas poucas ruas, minha infelicidade seria maior do que sou capaz de
descrever. Mesmo como é...
Mesmo como era, não lhe foi possível prosseguir.
Sob o tristonho luar, atirou-se nos braços do pai e mergulhou o rosto em seu
peito. Sob o luar, que é sempre tão tristonho como a luz do próprio sol, e como a
da própria vida humana, com suas idas e vindas.
— Oh, meu querido, querido! Diga-me, pela última vez, se está realmente
convencido de que nenhuma afeição nova, nenhum dos meus novos deveres,
nada se interporá entre nós. Eu tenho absoluta certeza disto, mas será que o
senhor partilha da minha convicção? Em seu coração, está tão seguro quanto eu?
O pai respondeu com uma firmeza jovial que lhe foi difícil adotar:
— Inteiramente seguro, querida! Mais do que isso — acrescentou, beijando-
a ternamente —, o meu futuro me parece muito mais radioso com o seu
casamento, Lucie, do que seria caso este não ocorresse.
— Se eu pudesse ter certeza...
— Acredite, querida. É realmente assim. Considere o quanto é evidente e
lógico que assim o seja, minha criança. Tão jovem e devotada, você ainda nãosabe avaliar a minha apreensão diante da perspectiva de vê-la desperdiçar sua
vida...
Ela aproximou a mão de seus lábios para interrompêlo, porém o pai tomou-
a nas suas e repetiu a palavra.
— Desperdiçar, sim, minha filha, subtraindo-se à ordem natural das coisas
por minha causa. Em seu altruísmo, você não pode compreender a que ponto
esse receio me atormentava. Contudo, pergunte a si mesma: seria completa a
minha felicidade se a sua não o fosse?
— Se eu jamais houvesse conhecido Charles, teria sido completamente feliz
com o senhor. O doutor sorriu ao ouvir-lhe a admissão inconsciente de que,
depois de ter conhecido Charles, seria infeliz sem ele.
— Mas você o conheceu, criança. Se não fosse Charles, teria sido outro. Se
não tivesse havido ninguém, teria sido eu o culpado disso. A parte obscura da
minha vida teria projetado a sua sombra para além de mim mesmo, fazendo-a
recair sobre você.
Era a primeira vez, não contando o julgamento de Charles, que ela o ouvia
aludir ao seu período de cativeiro. Essas palavras lhe produziram uma sensação
nova e estranha, e as recordaria por muito tempo.
— Veja! — exclamou o doutor Manette, erguendo a mão para a lua. — Eu a
contemplei através das grades do meu calabouço quando não lhe podia suportar a
luz. Contemplei a quando me torturava tanto a idéia de que brilhava sobre o que
eu havia perdido que eu batia com a cabeça pelas paredes da prisão. Contemplei-
a depois, quando, abismado numa letargia profunda, já não pensava senão em
contar as linhas transversais com que poderia cobri-la, quando cheia, e as
perpendiculares com que a cortava nas outras fases — acrescentou com seu ar
introspectivo: — De um extremo a outro, eu me lembro, havia apenas vinte
linhas, e era difícil traçar a vigésima.
Lucie sentiu aprofundar-se a sensação de estranheza à medida que o pai
discorria sobre o passado. Contudo, nada havia a temer naquelas reminiscências.
Ele parecia apenas contrastar a felicidade do presente com o sofrimento que
findara.
— Contemplei-a pensando mil vezes no filho que me fora arrancado antes
de nascer — prosseguiu o médico. — Se estaria vivo. Se teria morrido em
conseqüência do terrível abalo sofrido pela mãe. Se seria um varão que um dia
me vingaria. Houve uma época em que meu desejo de vingança era intolerável.
Se, caso estivesse vivo, saberia um dia da história do pai. Se acreditaria que eu
tivesse partido por minha própria vontade. Se seria uma filha que, um dia, se
tornaria uma mulher. Lucie aproximou-se do pai, beijou-lhe a face e a mão.
— Imaginei minha filha como alguém que se esqueceu de mim, pior, que
nem sequer tinha consciência da minha existência. Visualizava a sua vida, ano
após ano. Via-a casada com um homem que nada sabia sobre meu infortúnio. Eu
fora inteiramente banido da lembrança, de forma que a geração seguinte nem
sequer veria um vácuo no lugar que eu ocupara.
— Papai! Só de ouvir que o senhor acalentou tais pensamentos sobre uma
filha que jamais existiu, sinto-me tão perturbada como se eu tivesse sido essa
filha.— Você, Lucie? Não. O consolo e a recuperação que me proporcionou nada
têm a ver com essas recordações que surgem e passam entre nós e a lua, nesta
última tarde... que dizia eu, minha filha?
— Que ela nada sabia sobre o senhor. Que não se importava.
— Isso! Em outras noites enluaradas, entretanto, quando a tristeza e o
silêncio me afetavam de outro modo, conferindo-me uma sensação melancólica
de paz, como confere qualquer emoção baseada na dor, eu a imaginava entrando
no calabouço e levando-me de volta para a liberdade. Vi com freqüência a sua
imagem ao resplendor da lua, como a vejo neste instante, exceto que eu jamais a
tomava em meus braços. Ficava entre a porta e as grades da janela.
Compreende agora que não era a filha de que eu falava?
— A figura não era; a... a... imagem; a fantasia?
— Não, era outra coisa. Ficava em pé e eu a via com a vista turvada. Mas
não se movia. O fantasma que a minha imaginação perseguia era outro, de uma
criança mais real. De suas feições, sabia apenas que se pareceria com a mãe. A
outra também apresentava essa semelhança, como você, minha filha, mas não
era a mesma. Consegue entender-me Lucie? Acho difícil. É preciso ter sido um
prisioneiro solitário para apreender essas distinções sutis. O modo calmo e
controlado do pai não a impediu de sentir o sangue gelar em suas veias enquanto
ele tentava dissecar essas antigas impressões.
— Nesse estado de maior serenidade, imaginava-a ao luar, via-a chegar e
levar-me consigo para mostrar-me que o seu lar estava cheio de recordações do
pai que perdera. Tinha o meu retrato em seu quarto, e eu figurava em suas
preces. A sua vida era ativa, alegre e útil, mas ainda assim a minha infeliz história
impregnava tudo.
— Essa filha era eu, meu pai. Não possuo as suas virtudes, porém tenho todo
o seu amor.
— Ela mostrou-me os filhos — prosseguiu o doutor de Beauvais. — Eles
haviam ouvido a meu respeito e tinham aprendido a compadecer-se de mim.
Quando passavam por uma prisão do Estado, afastavam-se dos seus sombrios
muros, erguiam os olhos para as grades e falavam em voz baixa. Ela não podia
libertar-me. E eu imaginava que sempre me trazia de volta à prisão, depois de
me ter mostrado todas essas coisas. Mas então, aliviado pela bênção das
lágrimas, eu caía de joelhos e abençoava minha filha.
— Essa filha era eu, meu pai. Oh, meu querido, o senhor me abençoará
amanhã com igual fervor?
— Se evoco hoje essas tristes recordações, Lucie, é que tenho esta tarde
para amá-la mais do que as palavras podem traduzir e para agradecer a Deus
por minha grande alegria. Meus pensamentos mais delirantes nunca chegaram
nem perto de conceber a felicidade que você me tem dado e que se estende
diante de nós.
Ele a abraçou, encomendando-a solenemente ao céu e humildemente dando
graças a Deus por tê-la enviado. Alguns momentos depois entravam em casa.
Ninguém fora convidado para o casamento, exceto o senhor Lorry, e não
haveria dama de honra além da senhorita Pross. Os noivos não mudariam da
casa, mas passariam a ocupar o andar superior, habitado até então por uminquilino invisível, e esse arranjo lhes bastava.
O doutor Manette mostrou-se muito alegre durante a ceia. Eram apenas três
à mesa, incluindo a senhorita Pross. Ele lamentou, entretanto, a ausência de
Charles e, censurando a conspiração afetuosa que o mantivera afastado, ergueu
um brinde afetuoso em sua homenagem.
Assim, chegou o momento de ele despedir-se da filha e ambos se
separaram. Contudo, na quietude da terceira hora da madrugada, Lucie tornou a
descer as escadas e entrou no quarto do pai, tomada por um medo vago e
repentino.
Todas as coisas, porém, encontravam-se em seus devidos lugares. Tudo
estava tranqüilo. Ele dormia, os cabelos brancos espalhados sobre o travesseiro
onde não se via uma prega, as mãos repousando serenamente sobre a coberta.
Lucie colocou o desnecessário castiçal num canto distante do aposento,
aproximou-se do leito do pai e, depois de depositar-lhe um beijo na fronte, ficou
a contemplá-lo por um longo tempo.
Naquele belo rosto, haviam secado as águas amargas do cativeiro[149]. Mas
as marcas que estas lhe imprimiram nas faces, ele as ocultava com tal
determinação que não se podia distingui-las nem mesmo quando dormia. E não
havia rosto mais impressivo durante o sono do que aquele, em sua silenciosa,
resoluta e incessante batalha contra um inimigo invisível.
Lucie pousou brandamente a mão sobre seu peito querido e murmurou uma
oração para conservar-se sempre tão fiel ao pai quanto anelava o amor que lhe
dedicava e quanto ele merecia por tudo o que sofrera. Então, afastou a mão,
beijou-lhe a fronte ainda uma vez e retirou-se. Assim, o sol nasceu e as sombras
das folhas do plátano tocaram a fronte do médico, suaves como os lábios da filha
ao rezar pelo pai. XVIII. Nove Dias
CAPÍTULO XVIII
NOVE DIAS
O dia do casamento amanhecera radioso. O doutor Manette, encerrado em seu
quarto, conversava com Charles Darnay. Do lado de fora, prontos para rumarem
para a igreja, estavam à espera a linda noiva, o senhor Lorry e a senhorita Pross,
para quem o evento, graças a um processo gradual de reconciliação com o
inevitável, teria sido motivo de absoluto êxtase não fosse a idéia de que o noivo
perfeito seria Solomon, seu irmão.
— Então — disse o senhor Lorry, que não se cansava de admirar a noiva,
rodeando-a para apreciar todos os detalhes de seu encantador vestido —, então,
foi para conduzi-la a este momento que eu a trouxe no colo, quando criança,
através do canal! Por Deus! Eu nem podia imaginar a repercussão do que fazia!
Estava longe de desconfiar que prestaria tamanho favor a meu amigo Charles!
— O senhor não tinha essa intenção — comentou em tom casual a senhorita
Pross —, e, portanto, como poderia adivinhar? Bobagem!
— É mesmo? Bem, não chore — murmurou o senhor Lorry com gentileza.
— Não estou chorando — retrucou a senhorita Pross.
— O senhor é que está.
— Eu, minha Pross? — (A essa altura, o senhor Lorry já se atrevia a
gracejar com ela, de quando em vez.)
— Estava chorando ainda há pouco; eu vi, mas não estranhei. O faqueiro de
prata com que presenteou os noivos é digno de levar lágrimas aos olhos de
qualquer um. Ontem à noite, depois que o presente chegou, não houve um garfo
nem uma colher que não me fizessem chorar até não conseguir mais enxergá-
los.
— Declaro-me profundamente gratificado — respondeu o senhor Lorry —,
embora eu lhe dê minha palavra de que, ao ofertar esses artigos tão
insignificantes, não pretendi que se tornassem invisíveis para ninguém. Valha-me
Deus! É em ocasiões como esta que um homem reflete sobre tudo quanto
perdeu. Que pena! Pensar que podia ter existido uma senhora Lorry nestes quase
cinqüenta anos!
— De modo algum! — exclamou a senhorita Pross.
— Não concorda que poderia ter existido uma senhora Lorry? — indagou
com gentileza o cavalheiro que portava esse nome.
— Bah! — a senhorita Pross replicou. — O senhor já era um celibatário
quando estava no berço.
— Bem, parece provável — assentiu o senhor Lorry com um sorriso,enquanto ajustava a pequena peruca.
— E o senhor já estava talhado para ser um celibatário
— prosseguiu a senhorita Pross — antes mesmo de ser colocado no berço.
— Neste caso — ripostou o senhor Lorry —, creio que se portaram muito
mal comigo, pois me deviam ter consultado quanto ao molde com que me
talhariam. Mas basta disso! Agora, minha querida Lucie — ele enlaçou-lhe a
cintura —, ouço um rumor no quarto vizinho, e a senhorita Pross e eu, como
pessoas práticas que somos, estamos ansiosos para aproveitar esta última
oportunidade de lhe dizer algo que gostará de ouvir. Deixará seu bom pai, minha
querida, em mãos tão sinceras e carinhosas quanto as suas. Cuidaremos dele com
todo o desvelo. Durante os próximos quinze dias, enquanto estiverem em
Warwickshire e imediações, até mesmo o Tellson sucumbirá, mera força de
expressão, naturalmente, perante seu pai. E quando, terminada a quinzena, o
doutor Manette partir para reunir-se ao jovem casal para a excursão de quinze
dias pelo País de Gales, a senhorita verá que o mandamos gozando de perfeita
saúde e muito feliz. Mas eis que escuto passos se aproximando da porta. Deixe-
me beijá-la, minha querida menina, e dar-lhe as bênçãos de um celibatário
antiquado antes que alguém venha reclamar seu tesouro.
Por um instante, segurou-lhe o lindo rosto para contemplar a familiar
expressão em sua fronte, e, então, encostou sua curta peruca marrom nos
brilhantes cabelos dourados com genuína ternura e com delicadeza, sentimentos
esses que, antiquados ou não, eram próprios do Homem desde o tempo de Adão.
A porta do quarto se abriu e o doutor Manette saiu junto com Charles
Darnay. O médico estava tão mortalmente pálido, ao contrário de quando entrara
no aposento com o futuro genro, que não se notava nenhum vestígio de cor em
sua face. Contudo, na compostura de seus modos o médico parecia inalterado,
embora o olhar perspicaz do senhor Lorry percebesse que aquele antigo ar de
ausência e medo havia perpassado por seu semblante como um vento frio.
Ele deu o braço à filha e conduziu-a através da escada até o coche leve[150]
que o senhor Lorry alugara especialmente para a ocasião. Os demais seguiram
numa carruagem e, dali a pouco, chegaram à igreja da vizinhança[151], onde, a
salvo do olhar de estranhos, Charles Darnay e Lucie Manette se uniram por
felizes laços matrimoniais.
Além das lágrimas que brilhavam entre os sorrisos do pequeno grupo
quando a cerimônia terminou, alguns diamantes cintilavam na mão da noiva, os
quais haviam recentemente emergido das profundezas sombrias de um dos
bolsos do senhor Lorry.
Retornaram a casa para o café da manhã, as horas transcorreram alegres e,
no devido tempo, os cabelos dourados que se haviam confundido com as cãs do
pobre sapateiro, na água-furtada de Paris, tornaram a unir-se a elas sob o sol
matinal, no limiar da porta, ao chegar o momento da partida.
Malgrado a brevidade da separação, a despedida foi muito difícil. Mas o
doutor Manette consolou a filha e, por fim, desprendendo-se dos braços que o
estreitavam, disse ao genro:
— Leve-a, Charles! Ela é sua! Lucie acenou-lhes com a mão trêmula pela
janela da caleça[152] e se foi.Como a esquina situava-se fora do caminho dos vadios e dos curiosos, e
como os preparativos haviam sido simples e poucos, o doutor, o senhor Lorry e a
senhorita Pross ficaram completamente sozinhos. Foi no momento em que
voltaram à bem-vinda sombra e ao frescor do velho saguão que o senhor Lorry
observou a grande mudança que se operara no médico. Era como se o braço
dourado que se erguia sobre a porta o tivesse ferido com uma seta envenenada.
O doutor Manette naturalmente se controlara muito e era de prever que
sofresse alguma reação quando já não houvesse necessidade de se controlar.
Contudo, era aquela antiga expressão perdida e atemorizada que preocupava o
senhor Lorry. E, ao ver a forma alheada com que ele apertou a cabeça nas mãos
e lugubremente afastou-se na direção de seu quarto depois de subirem as
escadas, o senhor Lorry recordou-se de Defarge, o taberneiro, e da viagem sob a
luz das estrelas.
— Eu acho — cochichou para a senhorita Pross, após uma ansiosa reflexão
— que é melhor não falarmos com o doutor agora, para não perturbá-lo. Preciso
resolver alguns assuntos no Tellson, mas irei num passo e voltarei noutro. Então,
nós o levaremos para um passeio no campo, jantaremos por lá e tudo correrá
bem.
Era mais fácil para o senhor Lorry ir ao Tellson do que sair de lá. O trabalho
o reteve por duas horas. Quando regressou, subiu a escada sozinho, sem ter feito
nenhuma pergunta à criada. Rumava diretamente para o quarto do doutor quando
foi detido pelo ruído surdo de marteladas.
— Deus do céu! — exclamou, assustado. — O que é isso?
A senhorita Pross, com um semblante aterrorizado, estava a seu lado.
— Valha-nos Deus! Está tudo perdido! — lamentou-se, torcendo as mãos. —
O que diremos à menina? Ele não me reconhece, e voltou a fazer sapatos!
O senhor Lorry murmurou-lhe tudo o que podia para acalmá-la e entrou no
quarto. O banco estava virado na direção da luz de modo idêntico ao da primeira
vez em que o vira naquela atividade; a cabeça do médico curvava-se para baixo
e ele parecia muito atarefado.
— Doutor Manette. Meu querido amigo, doutor Manette!
O doutor fitou-o por um instante, um tanto curioso e um tanto como que
aborrecido por lhe terem dirigido a palavra, e tornou a curvar-se sobre o
trabalho.
Tirara a casaca e o colete. Tinha a camisa aberta sobre o peito, como era
seu costume quando se dedicava àquela ocupação. E até seu rosto parecia
reassumir aquele velho ar desfigurado. Ele trabalhava com ardor,
impacientemente, como se quisesse recuperar o tempo que perdera com a
interrupção.
O senhor Lorry relanceou os olhos para o sapato nas mãos dele e reparou
que era do mesmo formato e tamanho daquele que manufaturava no sótão em
Paris. Apanhou o outro que estava no chão e indagou que tipo de sapato era.
— É feminino, para passeio — resmungou, sem erguer o olhar. — Já devia
estar pronto há muitos anos. Deixe-me em paz.
— Mas, doutor Manette... olhe para mim!
Ele obedeceu, com a mesma submissão mecânica, sem parar o trabalho.— O senhor me reconhece, meu querido amigo? Tente lembrar-se. Essa não
é a sua profissão. Lembre-se, meu caro amigo.
Nada, porém, o induziria a falar novamente. Porque lhe pediram, levantou a
cabeça uma única vez, por um momento. Contudo, nenhum esforço de persuasão
conseguiria extrair-lhe mais uma palavra que fosse. Ele trabalhou, e trabalhou,
em silêncio, as palavras caíam sobre ele como se batessem numa parede sem
eco ou se perdessem no ar. O único raio de esperança que o senhor Lorry pôde
descobrir era que ele, às vezes, levantava furtivamente o olhar sem que lhe
pedisse. Nesse olhar, parecia haver uma leve expressão de curiosidade ou de
espanto, como se o doutor Manette tentasse dissipar algumas dúvidas que lhe
invadiam o espírito.
De pronto, duas coisas chamaram a atenção do senhor Lorry como as mais
importantes de todas. A primeira, que deviam esconder de Lucie aquela recaída.
E a segunda, que deviam esconder aquela recaída de todos os que o conheciam.
Em conjuminância com a senhorita Pross, tomou providências imediatas,
espalhando que o doutor não passava muito bem e necessitava de alguns dias de
repouso. Para colaborar com o piedoso plano de poupar-lhe a filha de tal
dissabor, a senhorita Pross encarregou-se de escrever a Lucie, comentando de
passagem que seu pai fora chamado para atender um paciente fora da cidade e
que recebera dele uma carta apressada.
Essas medidas, de qualquer modo aconselháveis, foram adotadas na
esperança de uma breve recuperação do doutor Manette. Se assim fosse, o
senhor Lorry já refletira sobre o curso de ação que deveria seguir, que seria
obter uma determinada opinião que ele julgava ser a melhor a respeito do caso.
Portanto, com a esperança de um rápido restabelecimento, e para tornar
praticável o curso de ação que resolvera seguir, o senhor Lorry decidiu vigiá-lo
detidamente da maneira mais discreta possível. Arranjou para ausentar-se do
Tellson pela primeira vez em sua vida e instalou seu posto de observação no
mesmo quarto, perto da janela.
Não tardou a descobrir que era totalmente inútil dirigir-lhe a palavra, já que,
quando pressionado, o doutor Manette se inquietava demais. Desistiu, pois, no
primeiro dia, de tentar atraí-lo para conversações, optando por manter-se sempre
diante dele, num silencioso protesto contra o delírio em que havia mergulhado, ou
estava mergulhando. Permaneceu lá, acomodado perto da janela, lendo e
escrevendo, demonstrando, por todos os meios agradáveis e naturais que pôde
conceber, que aquele era um lugar livre, e não uma prisão.
O doutor Manette comeu e bebeu tudo o que lhe deram e trabalhou, no
primeiro dia, até ficar tão escuro que não era possível enxergar, e ainda assim
continuou, só parando meia hora depois que o senhor Lorry depusera a leitura.
Quando pousou as ferramentas de lado como inúteis até o dia seguinte, o senhor
Lorry ergueu-se e indagou-lhe:
— Gostaria de sair?
Ele olhou o chão de um lado e de outro com aquele antigo jeito, levantou a
cabeça com aquele antigo jeito e repetiu naquele antigo tom baixo de voz:
— Sair?
— Sim, para um passeio. Por que não?Sem fazer nenhum esforço para dizer por que não, ele não disse mais nada.
Contudo, o senhor Lorry julgou ver, quando ele se curvou para a frente em seu
banco, na penumbra, apoiando os cotovelos sobre os joelhos e deitando a cabeça
nas mãos, que, de alguma forma nebulosa, ele continuava a repetir a pergunta:
“Por que não?”. Com a perspicácia de um homem de negócios, ele vislumbrou
ali uma vantagem e resolveu aproveitá-la.
A senhorita Pross e o senhor Lorry dividiram a noite em dois turnos de
vigilância, e observavam-no do aposento vizinho. O doutor Manette vagou de um
canto ao outro do quarto por um longo tempo antes de se deitar. Todavia, quando
finalmente se deitou, adormeceu instantaneamente. Na manhã seguinte, acordou
cedo e foi direto sentar-se no banco, retomando o trabalho.
Nesse segundo dia, o senhor Lorry saudou-o alegremente pelo nome e
discorreu sobre assuntos que lhe eram familiares. Ele não respondia, mas era
evidente que ouvia tudo e meditava a respeito, embora de forma confusa. Isso
encorajou o senhor Lorry a pedir à senhorita Pross que fosse trabalhar no quarto
várias vezes ao longo do dia. Nessas ocasiões, conversavam sobre Lucie e sobre
seu pai ali presente, da maneira usual, como se nada houvesse de errado. Tudo
isso era feito sem grande alarde, por poucos minutos de cada vez e de modo
espaçado, para não perturbá-lo. Alegrava o coração afetuoso do senhor Lorry
acreditar que o amigo levantava a cabeça com maior freqüência, parecendo
movido por algum tipo de percepção das contradições que o circundavam.
Quando anoiteceu de novo, indagou-lhe como na véspera:
— Prezado doutor, gostaria de sair? Como na véspera, ele ecoou: “Sair?”.
— Sim, para um passeio comigo. Por que não?
Dessa vez, o senhor Lorry, não obtendo resposta, fingiu sair e, depois de
permanecer ausente por uma hora, retornou. Nesse intervalo, o médico se havia
mudado para a poltrona junto da janela, de onde contemplava o olmo no jardim.
Contudo, ao vê-lo entrar, regressou ao banco de sapateiro.
O tempo transcorreu com extrema lentidão, e as esperanças do senhor
Lorry se tornaram sombrias. Sentia o coração mais pesado a cada momento. O
terceiro dia veio e se foi, o quarto, o quinto. Cinco dias, seis, sete, oito, nove dias.
Com a esperança se apagando e o coração mais e mais pesado, o senhor
Lorry atravessava esse período de profunda aflição. O segredo estava bem
mantido e Lucie, ignorando a doença do pai, era feliz. Contudo, o senhor Lorry
não podia deixar de notar que o sapateiro, cujas mãos a princípio se mostraram
ineptas, adquiriam uma assustadora habilidade, e que o doutor jamais se
empenhara tanto no trabalho, nem com tamanha agilidade, do que no anoitecer
do nono dia. XIX. Uma Opinião
CAPÍTULO XIX
UMA OPINIÃO
Fatigado pela ansiosa vigília da noite, o senhor Lorry adormeceu em seu posto.
Na décima manhã de seu suspense, despertou, assustado, com o sol que invadia a
sala, onde reinara a obscuridade que o embalara durante a madrugada.
Esfregou os olhos e levantou-se. Ainda assim, duvidou que estivesse
inteiramente acordado. Pois, ao chegar ao quarto do médico e espreitar seu
interior pela porta, percebeu que o banco e as ferramentas de sapateiro
encontravam-se de novo encostados no canto e o doutor Manette lia junto da
janela. Ele usava os trajes matinais de costume, e seu semblante, que o senhor
Lorry pôde distinguir com clareza, embora muito pálido, mostrava-se calmo e
concentrado na leitura.
Mesmo depois de convencer-se de que não mais dormia, o senhor Lorry
sentiu-se atordoado e, por alguns momentos, julgou que o episódio do sapateiro
não passara de um pesadelo que o assaltara durante a noite. Afinal, seus olhos
não lhe revelavam o amigo em sua roupa habitual, entregue a uma atividade
também habitual? E havia algum vestígio de que a mudança que tanto o
impressionara ocorrera de verdade?
Aquelas indagações eram fruto de sua confusão e perplexidade iniciais, e as
respostas eram evidentes. Se sua preocupação não tivesse uma causa real e
suficiente, como então explicaria a presença dele, Jarvis Lorry, ali? Como
explicaria o fato de ter adormecido, completamente vestido, no divã do
consultório do doutor Manette e de estar agora debatendo essas questões do lado
de fora do quarto dele àquela hora da manhã?
Logo em seguida, a senhorita Pross cochichou qualquer coisa em seu
ouvido. Se lhe tivesse restado a mais pequena dúvida, as palavras dela
necessariamente a dissipariam. Contudo, a lucidez lhe voltara, trazendo consigo a
compreensão do que se passara. O senhor Lorry advertiu a governanta para que
deixasse o doutor sossegado até a hora usual do desjejum, quando o
encontrariam e tratariam como se nada de estranho houvesse acontecido. Se ele
estivesse em condições normais, o senhor Lorry o sondaria, cautelosamente, em
busca da opinião que tanto ansiava obter.
Tendo a senhorita Pross se submetido à decisão do banqueiro, o estratagema
foi combinado com todo o cuidado. Dispondo, assim, de bastante tempo para suas
metódicas abluções matinais e para vestir-se, o senhor Lorry apresentou-se para
o desjejum com sua costumeira camisa de linho branco e com as costumeiras
meias irrepreensíveis. O médico foi chamado, como de hábito, e não tardou aaparecer.
O senhor Lorry questionou-o até onde podia sem ultrapassar os limites da
prudência, e compreendeu que, para o médico, o casamento da filha tivera lugar
na véspera. Uma alusão casual, feita de propósito pelo banqueiro, ao dia da
semana e do mês em que estavam, deixou-o pensativo e visivelmente
perturbado. Quanto a todos os outros aspectos, entretanto, ele demonstrava
tamanha lucidez que o senhor Lorry resolveu pedir a ajuda de que necessitava. E
a ajuda era para o próprio doutor.
Assim, depois que terminaram a refeição e a mesa foi arrumada, quando
ele e o doutor ficaram sozinhos, disselhe com voz afetuosa:
— Meu caro Manette, estou ansioso por ouvir a sua opinião confidencial
acerca de um caso muito curioso no qual estou sobremaneira interessado. Quero
dizer, é curioso para mim, mas para o senhor, com todos os seus conhecimentos,
talvez não seja tanto.
Olhando para as próprias mãos, que se haviam manchado com o trabalho
recente, o doutor pareceu desnorteado e ouviu atentamente. Já observara várias
vezes as mãos.
— Doutor Manette — continuou o senhor Lorry, tocando-lhe
carinhosamente o braço —, trata-se do caso de um amigo que me é
particularmente querido. Peço-lhe que me preste toda a atenção, tanto por ele
como, acima de tudo, por sua filha, meu caro Manette.
— Se bem compreendo — replicou o médico, em voz baixa —, esse caso
refere-se a alguma desordem mental?
— Precisamente.
— Seja explícito — rogou o médico — e não poupe detalhes. O senhor
Lorry viu que se compreendiam mutuamente e prosseguiu:
— Meu caro Manette, trata-se de uma antiga e prolongada desordem
mental, um mal de grande agudeza e severidade, que lhe abalou profundamente
as afeições, os sentimentos, e a... a... — como o senhor definiria — a própria
mente[153]. A mente, pois. É um caso de desordem que afligiu o doente por um
período de tempo impossível de precisar, pois nem meu amigo saberia calculá-lo
e não conheço outro meio de obter a informação. Ele também não saberia
descrever seu processo de recuperação, conforme ouvi-o declarar publicamente
de maneira incisiva. Mas meu amigo venceu o terrível transtorno mental que o
assaltara e é hoje um homem de elevada inteligência, capaz de grandes esforços,
tanto morais quanto físicos, e aumenta diariamente a sua soma de conhecimentos
que, antes da doença, já era bastante grande. Infelizmente, porém — o senhor
Lorry fez uma pausa e respirou fundo —, houve uma ligeira recaída.
O médico, em voz baixa, inquiriu:
— Quanto tempo durou?
— Nove dias e nove noites.
— Qual foi o sintoma com que se manifestou? Suponho
— disse o doutor, fitando novamente as mãos — que o doente voltou a
dedicar-se a uma antiga atividade obsessiva relacionada à desordem mental.
— De fato.
— Alguma vez antes o senhor o viu — indagou, em tom firme e tranqüilo,mas sempre em voz baixa — nessa atividade?
— Uma vez.
— E, na presente recaída, a atitude dele foi, em algum aspecto ou em todos,
igual à antiga?
— Creio que em todos os aspectos.
— O senhor mencionou uma filha. Ela soube que o pai sofreu essa recaída?
— Não, guardou-se segredo e espero que ela o ignore sempre. Somente eu e
uma outra pessoa, absolutamente digna de confiança, tivemos conhecimento
disso.
O doutor Manette apertou a mão do banqueiro e murmurou:
— Foi muita bondade sua. Muito atencioso de sua parte!
O senhor Lorry apertou-lhe também a mão e nenhum dos dois falou durante
alguns momentos.
— Agora, veja, meu caro Manette — disse por fim o senhor Lorry, em seu
tom mais discreto e afetuoso —, sou um simples homem de negócios,
despreparado para lidar com problemas tão intricados e complexos. Não
disponho da instrução nem da inteligência necessárias para essas coisas. Preciso
de orientação. Não existe nenhum homem neste mundo em quem eu possa
confiar e pedir orientação como o senhor. Responda-me, por favor, em sua
opinião, qual foi a causa dessa recaída? Existe o risco de que se repita? Será
possível impedir isso? Qual o tratamento que se deve seguir, em caso de recaída?
Como acontecem essas crises, afinal de contas? O que posso fazer por meu
amigo? Ninguém jamais desejou tanto ser útil a um amigo como eu, se ao menos
soubesse de que modo. Nem imagino de que forma proceder. Se a sua
sagacidade, conhecimentos e experiência me pusessem no caminho certo, eu
poderia fazer muito. Sozinho e desorientado, contudo, posso fazer tão pouco!
Rogolhe que discuta o caso comigo, que me ajude a compreendêlo com maior
clareza e que me ensine a ser mais útil ao meu amigo.
Vendo que o doutor Manette entregou-se à reflexão depois que suas ansiosas
súplicas foram enunciadas, o senhor Lorry não insistiu.
— Creio ser provável — disse o médico, rompendo o silêncio com esforço
— que o seu amigo previsse a recaída de que falou.
— Receava-a? — perguntou o banqueiro.
— Sim, muito — respondeu o médico, estremecendo involuntariamente. —
Não pode avaliar o tremendo peso que esse receio representa para o espírito do
doente, nem como é difícil, quase impossível, para ele, proferir uma palavra que
seja sobre esse assunto.
— Posso deduzir que seria — inquiriu o senhor Lorry —, para o meu amigo,
um verdadeiro alívio se conseguisse partilhar com alguém esse secreto
desespero?
— Creio que sim. Todavia, como acabo de lhe dizer, seria quase impossível.
Acredito mesmo que, em alguns casos, seria absolutamente impossível.
— Agora — indagou o senhor Lorry após uma pausa, tornando a pousar de
leve a mão no braço do médico —, a que atribui essa recaída?
— Julgo — ripostou o doutor Manette — ter havido um forte e extraordinário
ressurgimento da corrente de pensamentos e lembranças que constituíram acausa primeira da doença. Eu diria que algumas intensas associações de natureza
altamente perturbadora foram revivificadas. É provável que sua mente fosse
assaltada pelo temor de que essas associações ressurgissem, o senhor sabe, sob
certas circunstâncias ou sob uma determinada circunstância. Em vão ele tentou
preparar-se para essa eventualidade e talvez o próprio esforço de se preparar o
tenha incapacitado para suportar a crise.
— Acha que ele se recorda do que se passou durante a última recaída? —
inquiriu o senhor Lorry, compreensivelmente hesitante.
O médico lançou um olhar desolado em torno do quarto, sacudiu a cabeça e
respondeu em voz baixa:
— Não, de nada.
— Quanto ao futuro... — insinuou o senhor Lorry.
— Quanto ao futuro — retrucou o médico, recobrando a firmeza —, eu me
mostraria confiante. Já que o céu permitiu, na sua infinita misericórdia, que ele
se restabelecesse tão depressa, em seu lugar eu teria esperança. Mesmo
submetido a terrores tão temidos e vagamente previstos há tanto tempo, seu
amigo recuperou-se, o que me induz a crer que o pior já passou.
— Ainda bem! Reconforta-me saber disso. Sou-lhe muito grato —
agradeceu o senhor Lorry.
— Sou-lhe muito grato — ecoou o médico, inclinandose numa reverência.
— Restaram ainda dois pontos sobre os quais desejaria que me esclarecesse
— declarou o banqueiro. — Posso prosseguir?
— O senhor não lhe poderia prestar maior serviço — o doutor Manette
estendeu-lhe a mão.
— Então, vamos ao primeiro ponto. Meu amigo é um homem estudioso e
extraordinariamente ativo. Dedica-se com empenho ao aperfeiçoamento de seus
conhecimentos profissionais, à realização de experiências científicas, enfim, a
várias ocupações. Acha que ele trabalha em demasia?
— Não me parece. Talvez essa necessidade singular de ocupação seja uma
característica de sua mente. Resulta, em parte de sua própria natureza e, em
parte, das aflições pelas quais passou. Quanto menos se entregar a ocupações
saudáveis, maior é o risco de que suas faculdades se extraviem numa falsa
direção. Talvez seu amigo tenha observado o próprio comportamento e
constatado esse fato.
— Tem certeza de que ele não se expõe a um esforço exagerado?
— Estou absolutamente certo disso.
— Meu caro Manette, se ele trabalhar além de suas forças agora...
— Meu caro Lorry, duvido que isso aconteça tão facilmente. A energia dele
foi violentamente desviada numa direção e necessita de um contrapeso.
— Desculpe-me, mas sou um persistente homem de negócios. Suponhamos,
por um momento, que o trabalho seja superior às suas forças. Como
conseqüência, poderia haver uma recaída?
— Não o creio — discordou o doutor Manette com convicção. — Somente
uma corrente de associações poderia conduzir a uma nova crise. E posso
afirmar-lhe que, de agora em diante, seria necessário fazer vibrar uma corda
extraordinariamente dissonante para que essa corrente se restabelecesse. Depoisdo que sucedeu, e depois de se ter curado, acho difícil imaginar que essa corda
torne a soar. Tenho esperança, e chego quase a acreditar, que as circunstâncias
capazes de produzir o ressurgimento de uma crise já se esgotaram.
O doutor Manette falava com a cautela de um homem que não ignorava
quão frágil é a organização da mente humana e, não obstante, com a convicção
de quem lentamente conquistou a segurança através do sofrimento e da
tenacidade. Não cabia ao senhor Lorry abater-lhe essa confiança. Em vez disso,
declarou-se mais aliviado e encorajado do que de fato se sentia e preparou-se
para abordar o segundo e último ponto que o preocupava. Aquele seria o mais
difícil. Contudo, lembrando-se de uma antiga conversa que tivera com a
senhorita Pross, numa manhã de domingo, e recordando-se, principalmente, do
que vira nos últimos nove dias, decidiu que devia enfrentar o desafio.
— A atividade retomada sob a influência da aflição passageira da qual meu
amigo felizmente se recobrou — o senhor Lorry principiou, pigarreando para
aclarar a voz —, era a de um... ferreiro. Vamos chamá-la de um trabalho próprio
de um ferreiro. Digamos, a título de ilustração, que ele se habituou, naquela
época em que a doença primeiro o acometeu, a trabalhar numa pequena forja.
Digamos, também, que ele inesperadamente tornou a encontrar a forja. Não lhe
parece inadequado que ele a guarde em sua casa? O médico cobriu os olhos com
a mão e bateu com os pés no soalho, nervosamente.
— Ele sempre guardou a forja consigo — insistiu o senhor Lorry, lançando-
lhe um olhar ansioso. — Não lhe parece que seria melhor se meu amigo se
desfizesse dela?
De novo, o médico, com os olhos cobertos, pisoteou nervosamente o chão.
— Acha difícil aconselhar-me sobre este ponto? — inquiriu o senhor Lorry.
— Sei que se trata de uma questão delicada. E, contudo, penso que... —
interrompeu-se, sacudindo a cabeça.
— O senhor vê — retorquiu o doutor Manette, voltando-se para ele depois de
uma pausa constrangida —, é muito difícil explicar de maneira satisfatória a luta
que se trava na alma desse pobre homem. Houve um tempo em que desejou
com tanto ardor dedicar-se a esse trabalho, ficou tão contente quando isso lhe foi
concedido! Sem dúvida, a ocupação aliviou-lhe tanto o medo, substituindo a
perplexidade da mente pela perplexidade dos dedos e, à medida que adquiria
prática, substituindo a tortura mental pela habilidade manual, que ele jamais
suportou afastar-se de suas ferramentas. Mesmo agora, quando acredito que ele
sinta maior confiança em si próprio do que jamais sentira antes, e fale a seu
respeito com uma espécie de segurança, a idéia de que poderia precisar de seus
instrumentos de trabalho e não os ter à mão o enche de um pavor súbito, igual ao
que deve enregelar o coração de uma criança perdida.
A expressão em seu semblante ilustrava-lhe as palavras, quando ergueu os
olhos para o rosto do senhor Lorry.
— Mas, será que... pense bem! Eu só lhe peço orientação, como um
laborioso homem de negócios que só lida com objetos materiais, libras e notas de
banco, será que reter tais objetos não significa reter a idéia que está por detrás?
Se os objetos desaparecessem, meu caro Manette, será que o temor não
desapareceria junto com eles? Em suma, não acha que manter as ferramentasrepresenta uma concessão ao medo? De novo, o silêncio reinou.
— O senhor vê, também — respondeu o médico com voz trêmula —, que
esses objetos são companheiros tão antigos...
— Eu não os guardaria — argumentou o senhor Lorry sacudindo a cabeça,
pois a sua firmeza aumentava diante da perturbação do doutor. — Aconselharia o
meu amigo a sacrificá-los. Espero apenas que me autorize. Estou certo de que
essa forja não lhe faz bem. Vamos! Dê-me a sua autorização, como um bom
homem. Pelo bem de sua filha, meu caro Manette!
Era curioso ver a luta que se travava na alma do doutor Manette.
— Em nome dela, então, que isso seja feito. Eu autorizo. Entretanto, em seu
lugar eu não me desvencilharia da forja na presença do seu amigo. Remova os
objetos quando ele estiver fora. Proceda de tal maneira que sua ausência o
prepare para a perda de seus antigos companheiros.
O senhor Lorry apressou-se em concordar com aquele pedido e assim
terminou a conferência. Passaram o dia no campo e o médico se restabeleceu
por completo. Nos três dias seguintes ele continuou perfeitamente bem, e, no
décimo quarto dia, ele viajou para reunir-se a Lucie e seu marido. Como lhe
haviam falado sobre o estratagema de que se tinham servido para ocultar de
Lucie o que sucedera, ele lhe escreveu para anunciar que partiria em breve, para
evitar que ela suspeitasse de alguma coisa.
Na noite que se seguiu à partida do médico, o senhor Lorry entrou no
gabinete do doutor Manette munido de escopo, serra e martelo, acompanhado da
senhorita Pross, que levava uma vela. Uma vez lá, com as portas fechadas, com
um ar de mistério e culpa, o senhor Lorry destruiu o banco de sapateiro,
reduzindo-o a pedaços, enquanto a governanta segurava o castiçal como se
assistisse a um assassinato, do qual, em sua aspereza, ela não destoava. A
incineração do corpo (que fora reduzido a pedaços com esse propósito) teve
início sem demora, no fogão da cozinha. As ferramentas, o couro e os sapatos
foram queimados no jardim. Tão perversos a destruição e o segredo parecem
para os espíritos honestos que o senhor Lorry e a senhorita Pross, enquanto se
empenhavam em levar a cabo aquele feito e em remover seus vestígios, quase
se sentiram cúmplices de algum crime horrendo. XX. Uma Defesa
CAPÍTULO XX
UMA DEFESA
Depois que os recém-casados regressaram da viagem de núpcias, Sydney
Carton foi o primeiro a visitá-los para apresentar-lhes suas congratulações. Fazia
poucas horas que o casal retornara ao lar quando ele chegou. Nada havia
melhorado em seus hábitos, nem em seu aspecto, tampouco em suas maneiras,
mas havia nele um certo ar de devoção, embora rude, que Charles Darnay
jamais tinha percebido antes.
Carton aproveitou um momento em que lhe foi possível levar Darnay a uma
das janelas, para lhe poder falar sem ser ouvido.
— Senhor Darnay — principiou ele —, gostaria que fôssemos amigos.
— Já não o somos, senhor Carton?
— O senhor afirma isso por amabilidade, por gentileza. Eu não me refiro a
meras fórmulas de cortesia. Na verdade, desejo ser seu amigo de fato. Charles
Darnay, como era de esperar, indagou-lhe, num bem-humorado tom de
camaradagem, o que ele queria dizer com aquilo.
— Em toda a minha vida — replicou Carton, sorrindo —, sempre achei mais
fácil compreender do que explicar. Contudo, deixe-me tentar. Lembra-se de uma
certa ocasião especial em que eu estava mais embriagado do que... do que o
usual?
— Lembro-me de uma ocasião especial em que me obrigou a declarar que
o senhor estava embriagado.
— Também me recordo. A desgraça dessas ocasiões pesa sobre mim de tal
modo que jamais as esqueço. Espero que isso seja levado em consideração
quando chegar o meu último dia! Não se assuste, não pretendo pregar sermão
algum.
— Não estou nem um pouco assustado. A sua sinceridade pode ser tudo,
menos assustadora para mim.
— Ah! — exclamou Carton, movendo a mão como se afastasse o assunto
com aquele gesto. — Na ocasião da embriaguez de que falávamos, apenas uma
entre muitas, como sabe, eu estava intoleravelmente indeciso entre gostar ou não
do senhor. Espero que esqueça o que aconteceu naquela noite.
— Já o esqueci há muito.
— Mera cortesia, novamente! Ora, senhor Darnay, o esquecimento não é
fácil para mim como finge ser para o senhor. Eu não eliminei o incidente de
minha memória, e duvido que uma resposta superficial como a sua ajude-me a
eliminá-lo.— Se a resposta foi superficial — retrucou Darnay —, rogo-lhe que me
perdoe. Minha intenção foi apenas a de encerrar um assunto que, para minha
surpresa, parece perturbá-lo tanto. Como um cavalheiro, dou-lhe minha palavra
de honra de que há muito apaguei essa noite da minha lembrança. Bom Deus,
como eu me poderia ater a esse incidente sem importância, depois do grande
serviço que me prestou aquele dia?
— Quanto a esse “grande serviço” — ripostou Carton —, devo confessar-
lhe, já que o menciona com tanta admiração, que não passou de parlapatice
profissional. Não sei se me importava, na época, com o que lhe poderia
acontecer. Entenda! Eu disse na época. Isso foi no passado.
— O senhor minimiza a gratidão que lhe devo — rebateu Darnay —, mas
eu não discutirei a superficialidade da sua resposta.
— Superficial? Não, é a mais pura verdade, senhor Darnay, acredite.
Contudo, nós nos desviamos da questão. Eu falava acerca de sermos amigos.
Ouça-me: sabe que não sou o mais capaz entre os homens. Se duvida, pergunte a
Stryver e ele confirmará.
— Prefiro formar minhas próprias opiniões sozinho, sem a ajuda de
ninguém.
— Está bem. De qualquer modo, o senhor me conhece como dissoluto, que
jamais fez ou fará nada digno de nota.
— Não creio que “jamais fará”.
— Mas eu, sim. E o senhor deveria aceitar a minha palavra. Todavia, se
puder suportar que um indivíduo imprestável e de má reputação visite a sua casa
ocasionalmente, peço-lhe que me conceda o privilégio de visitar a sua casa vez
por outra. Que eu seja encarado como um traste inútil, não fosse pela incrível
semelhança física que detectei entre nós dois, eu acrescentaria “como uma peça
não ornamental do mobiliário, à qual não se presta muita atenção mas que se
tolera pela antiga serventia”. Prometo não abusar de sua generosidade. Poderia
apostar cem contra um como só me aproveitarei dela três ou quatro vezes por
ano. Seria um grande prazer para mim, ouso afirmar, saber que conto com a sua
permissão.
— Que tal experimentar?
— Essa é uma forma de dizer que aceita o meu pedido. Sou-lhe muito grato,
Darnay. Sob a autoridade do seu nome posso então gozar dessa permissão?
— Desde já, Carton.
Trocaram um aperto de mão e Sydney se retirou. Um minuto depois, seu
aspecto exterior voltou a parecer tão insubstancial como sempre.
Depois que ele se foi, no decurso da noite em companhia da esposa, bem
como da senhorita Pross, do doutor Manette e do senhor Lorry, Charles Darnay
mencionou a conversa que mantivera com o advogado, referindo-se a Sydney
Carton como um homem que sofria com a própria indiferença e negligência.
Falou a seu respeito, porém, sem amargura nem rigor, mas como alguém que o
vira da maneira como ele se mostrara.
Charles não fazia idéia de que seus comentários calavam fundo nas
reflexões da jovem esposa. Entretanto, quando, mais tarde, reuniu-se a ela no
quarto, encontrou-a à sua espera com a encantadora fronte vincada de linhas deexpressão.
— Estamos tão pensativos esta noite — observou Charles, abraçando-a.
— Sim, meu querido Charles — ela concordou, apoiando as mãos no peito
do marido e fitando-o com intensidade. — Estou especialmente pensativa esta
noite, porque uma preocupação me ronda a mente.
— De que se trata, Lucie?
— Promete não insistir quando eu não quiser responder?
— Se prometo? Que é que não prometo à minha amada?
Nada, com efeito, poderia negar àquela criatura encantadora. Darnay
afastou uma mecha de cabelos dourados de sua face e pousou a mão sobre
aquele coração que batia por ele.
— Creio, Charles, que esse pobre senhor Carton merece mais consideração
e respeito do que você expressou por ele esta noite.
— É mesmo, querida? E por quê?
— Essa é uma das perguntas a que não posso responder. Mas eu acho, eu sei,
que ele merece.
— Se você sabe, é o quanto me basta. O que deseja que eu faça, minha
vida?
— Queria pedir-lhe, meu querido, que seja generoso com o senhor Carton,
que aceite suas falhas com indulgência e que o defenda quando ele não estiver
presente. Acredite-me quando lhe digo que esse homem possui, embora
raramente o mostre, um coração sensível, mas profundamente ferido. Oh, meu
amor, eu já vi esse coração sangrar.
— Para mim, é doloroso pensar — replicou Darnay, abismado — que fui
injusto com ele. Porém, eu nunca o enxerguei por essa perspectiva.
— E, no entanto, meu marido, essa é a verdade sobre o senhor Carton.
Receio que não se possa salvá-lo, que já não haja esperança de que seu caráter e
sua sorte se modifiquem. Todavia, estou certa de que ele é capaz de grandes
gestos, de atitudes gentis e magnânimas.
Estava tão linda na pureza da sua confiança naquele homem perdido que
Charles poderia passar horas a contemplá-la.
— Oh, meu amado! — ela exclamou com ansiedade. Aconchegou-se mais
em seus braços, deitou a cabeça em seu peito e ergueu os olhos para ele. —
Lembre-se de como somos fortes em nossa felicidade, e do quanto ele é frágil
em sua miséria! A súplica comoveu-o.
— Eu me lembrarei sempre, minha querida! Não esquecerei enquanto
viver!
Inclinando-se sobre a cabeça dourada, aproximou os lábios dos seus lábios
rosados, e estreitou o abraço. Se o homem solitário que, naquele momento,
vagava pelas ruas escuras tivesse ouvido essa terna confidência, se tivesse visto
as lágrimas de piedade que brotavam dos olhos azuis que o marido enxugava
com beijos, certamente teria exclamado, e não pela primeira vez:
— Que Deus a abençoe por sua doce compaixão! XXI. Passos Ecoando
CAPÍTULO XXI
PASSOS ECOANDO
Como já observamos, era um lugar prodigioso por seus ecos, aquela esquina
onde o doutor vivia. Sempre ocupada enovelando o fio de ouro com o qual ligava
seu marido, seu pai, ela própria, e sua velha governanta e companheira, a uma
vida de serena felicidade, Lucie integrava-se na atmosfera de quietude dessa
casa, naquela esquina tranqüila e ressoante, ouvindo os passos dos anos ecoando.
A princípio, embora ela fosse uma jovem esposa perfeitamente feliz, havia
momentos em que seu trabalho tombava lentamente de suas mãos, e seus olhos
se turvavam, pois havia alguma coisa chegando nos ecos, um leve rumor, muito
longínquo, e ainda quase inaudível, que fazia seu coração confranger-se com
uma angústia indefinível. Esperanças e dúvidas palpitantes, esperança de um
amor como ela ainda não conhecera; dúvidas, de sua permanência na terra, para
desfrutar dessa nova felicidade, travavam um conflito em seu íntimo. Entre esses
ecos, então, distinguia o som de passos em seu jazigo precoce; e os pensamentos
sobre a desolação e os lamentos do marido que seria deixado para trás
lançavam-se sobre seus olhos, onde se quebravam como ondas.
O tempo passou, e sua pequena Lucie repousava em seu regaço. Então, em
meio ao ecos que avançavam, havia os passos de seus pequeninos pés e o som de
suas palavras balbuciadas. Por mais que ressoassem os maiores ecos, a jovem
mãe ao lado do berço podia sempre ouvir aqueles passos miúdos se
aproximando. Eles chegavam, e a casa nas sombras era iluminada com um riso
de criança, e o Divino amigo das criancinhas[154], a quem, em sua aflição, ela
havia confiado os entes queridos, parecia ter sua filha em Seus braços, da mesma
forma que Ele carregara os pequeninos de outros tempos, fazendo disso uma
exultação sagrada para ela.
Sempre ocupada enovelando o fio de ouro que os mantinha a todos juntos,
entretecendo a sua benévola influência na trama de suas vidas, e concentrando
nisso todos as suas forças, Lucie não ouviu durante anos senão ecos amigáveis e
tranqüilizadores. Os passos de seu marido soavam fortes e prósperos no meio
deles; também os de seu pai, firmes e regulares. Já a senhorita Pross, atrelada
com tais cadeias, despertava novos ecos, como um indócil cavalo de batalha
mantido sob chicote, relinchando e escavando o solo sob o plátano do jardim.
Mesmo quando havia sons lamentosos entre os demais, não havia neles
crueldade ou amargura. Mesmo quando cabelos dourados, como os seus
próprios, jaziam como uma auréola no travesseiro, envolvendo o rosto abatido de
um garotinho, que dizia, com um sorriso radiante: “Papai e mamãe, meusqueridos, eu lamento muito ter de deixá-los, e à minha linda irmãzinha; mas estou
sendo chamado, e devo partir!”, não eram lágrimas de agonia aquelas que
molharam seu rosto de jovem mãe, como se soubesse que o espírito que
abandonou os seus braços estivera ali apenas sob custódia. Sofreu por ele e não o
impediu. Eles viram a face do Senhor. Oh! Pai, abençoadas palavras!
Então, o rumorejar das asas de um anjo veio a misturar-se com os outros
ecos, que, assim, deixaram de ser apenas terrenos, passando a abrigar em seu
seio algo de celestial. Os sussurros das brisas que sopravam sobre um pequeno
sepulcro do jardim mesclaram-se com eles, e ambos eram ouvidos por Lucie,
num silencioso murmúrio, como o ressonar de um mar de verão adormecido
sobre as areias da praia, como também pela pequena Lucie, comicamente atenta
às tarefas da manhã, ou vestindo uma boneca aos pés de sua mãe, tagarelando
nos idiomas das duas cidades que estavam amalgamadas em sua vida.
Os ecos raramente respondiam aos passos verdadeiros de Sydney Carton.
Cerca de meia dúzia de vezes ao ano, quando muito, ele reclamava seu privilégio
de chegar sem ser convidado, e passar a tarde com eles, como fazia antes com
freqüência. Nunca veio alterado pela bebida. E outra coisa era sussurrada sobre
ele pelos ecos, a qual tem sido sussurrada por todos os ecos leais de todas as eras.
Nenhum homem já amou realmente uma mulher, perdeu-a, e preservou
esse amor inocente mas inabalável em seu espírito quando ela se tornou esposa e
mãe. Seus filhos, contudo, nutriam uma estranha compaixão por ele, uma
comiseração instintiva e delicada. Que invisível sensibilidade é tocada num caso
como esse, isso os ecos não revelam; mas é assim, e era assim aqui. Carton foi o
primeiro desconhecido para quem a pequena Lucie estendeu os bracinhos
gorduchos, e ele conservou seu lugar naquele coração mesmo depois de ela
crescer. O garotinho balbuciou a seu respeito quase até o último suspiro: “Pobre
Carton! Beije-o por mim!”
O senhor Stryver abria caminho com os ombros pelas trilhas da lei, como
um grande engenho esforçando-se em águas turbulentas, e arrastando o
indispensável amigo em seu agitado curso, feito um barco levado a reboque em
sua popa.
Como só os barcos que se encontram em apuros, a maioria já se tendo
afundado, são favorecidos dessa forma, assim Sydney vivia sempre à beira do
naufrágio. Contudo, um hábito cômodo e poderoso, infelizmente mais cômodo e
poderoso para ele do que qualquer estimulante senso do próprio mérito ou da
própria degradação, impunha-lhe aquela vida como a única possível; e ele não
mais pensava em emergir daquela condição de chacal diante do leão, da mesma
forma como jamais ocorre a um chacal de verdade transformar-se em leão.
Stryver estava rico. Desposara uma viúva espalhafatosa dotada de uma
propriedade e de três filhos que nada tinham de particularmente brilhante além
do cabelo liso que lhes escorria pelas cabeças rechonchudas.
Esses três jovens cavalheiros, o senhor Stryver, exsudando um
apadrinhamento da espécie mais ofensiva por todos os poros, conduziu, como a
três carneiros, ao sossegado recanto do Soho, oferecendo-os como pupilos ao
marido de Lucie, solicitando com sua proverbial delicadeza:
— Olá! Eis aqui três pedaços de pão com queijo para seu piqueniquematrimonial, Darnay!
A polida rejeição dos três pedaços de pão com queijo fez o senhor Stryver
inchar de indignação, a qual ele, mais tarde, transformou em vantagem que
enriquecia a educação dos rapazes, por meio de uma advertência para que estes
se conscientizassem do orgulho dos mendigos, do qual era exemplo a atitude do
professor. Ele também adquirira o costume de declamar para a senhora Stryver,
por sobre a garrafa de vinho que esvaziara, acerca das artimanhas de que a
senhora Darnay se valera para “agarrá-lo”, e sobre as preciosas artimanhas de
que ele tivera de lançar mão, madame, para não se deixar “agarrar”. Alguns de
seus colegas do Tribunal Superior de Justiça, que ocasionalmente o ajudavam a
esvaziar as garrafas de vinho e a mentir, desculpavam-no por esta última
alegando que ele contava aquela versão com tamanha freqüência que passara a
acreditar em sua veracidade, o que certamente é um inadmissível agravante de
uma ofensa originalmente grave, que justificaria que esse ofensor fosse levado
para algum lugar convenientemente retirado e lá enforcado.
Este era um dos ecos que Lucie, às vezes pensativa, outras vezes alegre e
sorridente, ouvia na esquina ressoante, até sua filhinha atingir os seis anos de
idade. Quão próximos de seu coração os ecos dos passos de sua filha chegavam,
bem como os de seu querido pai, sempre ativos e confiantes, e os de seu adorado
marido, não é preciso dizer. Nem é necessário mencionar que o mais leve dos
ecos de sua família unida, guiada por ela com tal sabedoria e parcimoniosa, que
era mais farta do que qualquer esbanjamento, elegância, soava-lhe como
música. Tampouco é preciso contar que havia ecos extremamente doces aos seus
ouvidos, como os do pai ao repetir que ela se tornara ainda mais devotada a ele
depois do casamento (se isso era possível), ou como os do marido, ao reiterar-lhe
que nenhum cuidado ou dever parecia dividir-lhe a atenção e o amor por ele, e
lhe perguntava:
— Qual é o segredo mágico, minha querida, que lhe permite dedicar-se tão
exclusivamente a todos e a cada um de nós, sem nunca se mostrar cansada,
apressada, ou demasiado ocupada?
Contudo, havia outros ecos, vindos de longe, que rugiam surda e
ameaçadoramente na esquina durante todo aquele espaço de tempo. E era agora,
por volta do sexto aniversário da pequena Lucie, que esses começaram a
ribombar de modo assustador, como se provenientes de uma grande tormenta na
França que fazia erguerem-se os mares.
Numa noite em meados de julho de 1789, o senhor Lorry chegou tarde do
banco e sentou-se ao lado de Lucie e do marido junto à janela. Era uma noite
quente e abafada, que os lembrou de uma outra noite, num domingo, quando
contemplaram os raios de uma tremenda tempestade naquela mesma sala.
— Eu já pensava — comentou o senhor Lorry, empurrando a peruca
marrom para trás — que teria de passar a noite no Tellson. Estivemos às voltas
com tantos negócios, hoje, que nem sabíamos por onde começar. Reina uma tal
inquietação em Paris que nós literalmente sofremos uma enxurrada de depósitos
e de transferências de fundos! Nossos clientes de lá parecem não conseguir
confiar suas propriedades aos nossos cuidados com rapidez suficiente. Creio que
se tornou uma verdadeira mania, entre eles, enviar seus bens para a Inglaterra.— É um mau prenúncio — observou Charles.
— Mau prenúncio, meu caro Darnay? Sim, mas não sabemos o que tem
causado esse transtorno. As pessoas são tão pouco razoáveis! Alguns de nós, do
Tellson, estamos envelhecendo, e não podemos ser sobrecarregados dessa forma
sem um bom motivo.
— Ainda assim — replicou Darnay —, o senhor sabe quão escuro e
ameaçador está o céu.
— Eu sei disso, por certo — anuiu o senhor Lorry, procurando persuadir-se
de que seu humor, usualmente bom, se havia destemperado, e resmungou: —
mas estou determinado a desabafar depois de um dia cheio de aborrecimentos.
Que é feito de Manette?
— Eis-me aqui — exclamou o médico, entrando naquele instante na sala
escura.
— Fico feliz que esteja em casa. Pois a azáfama de hoje e os maus
pressentimentos que me rondaram o dia inteiro enervaram-me sem razão. Não
pretende sair, pois não?
— Não. Pretendo jogar uma partida de gamão com o senhor, se a idéia lhe
agradar — propôs o doutor.
— Não creio que me agrade, se permite a franqueza. Não estou disposto a
ser derrotado pelo senhor, esta noite. A bandeja de chá ainda está por aí, Lucie?
Não a vejo.
— É claro que está. Eu a guardei para o senhor.
— Muito obrigado, minha querida. Nossa adorável garotinha está a salvo na
cama?
— Dormindo como um anjo.
— Perfeito. Todos a salvo e bem! Não sei por que estariam outra coisa que
não a salvo e bem, graças a Deus. É que me estafei tanto hoje... já não sou
jovem como antes! Meu chá, minha querida! Grato. Agora, venha e sente-se no
seu lugar. Fiquemos quietos e ouçamos os ecos sobre os quais você tem uma
curiosa teoria.
— Não se trata de uma teoria, mas de uma fantasia.
— Uma fantasia, que seja, minha sensata amiga — retrucou o senhor Lorry,
dando tapinhas carinhosos em sua mão —, esses ecos são muito numerosos e
altos, não? Escutem...
Precipitados, ensandecidos e perigosos passos abriam caminho à força na
vida de cada um, difíceis de purificar de novo, depois de terem manchado de
vermelho, os passos enfurecidos que vinham de longe, de Santo Antônio,
enquanto o pequeno grupo sentava-se à janela em Londres.
Santo Antônio havia sido, naquela manhã, uma grande e escurecida vastidão
de espantalhos ondulando de um lado para o outro, com freqüentes clarões
relampejando sobre as cabeças encapeladas, onde lâminas de aço e baionetas
reluziam ao sol. Um formidável rugido brotou da garganta de Santo Antônio, e
uma floresta de braços nus ergueu-se no ar como galhos de árvores crestados
pelo vento do inverno: todos os dedos convulsivamente apertados em torno de
cada arma ou improvisação de arma lançada das profundezas, não importando adistância.
Quem lhas havia dado, de onde vieram, onde foram fabricadas, através de
que ação elas tortuosamente estremeciam e se sacudiam, às vintenas de cada
vez, sobre as cabeças da multidão, como uma espécie de relâmpago, isso
ninguém da multidão saberia dizer; contudo, mosquetes eram distribuídos[155],
bem como cartuchos, pólvora e balas, barras de aço e de ferro, facas, machados,
picaretas e cada arma que a perturbada engenhosidade pudesse descobrir ou
imaginar. As pessoas que não pudessem munir-se de nenhuma outra coisa feriam
as mãos até sangrarem arrancando pedras e tijolos dos muros. Cada pulso e
coração em Santo Antônio batia tenso e febril. Cada criatura viva ali não dava
nenhum valor à própria vida, enlouquecida com uma apaixonada disposição de
sacrificá-la.
Assim as águas de um remoinho rodopiam em torno de um ponto central,
assim esse raivoso círculo voluteava ao redor da taberna de Defarge, e todos os
seres humanos que caíam naquele caldeirão tendiam ao vórtice onde Defarge, já
enegrecido de pólvora misturada com suor, distribuía or-dens e armas, mandava
um homem recuar, enviava outro para a frente, desarmava alguns para armar
outros, labutava e se empenhava em meio ao tumulto.
— Fique perto de mim, Jacques terceiro — bradou Defarge —, e vocês,
Jacques primeiro e segundo, separemse e coloquem-se na liderança de tantos
patriotas quantos conseguirem. Onde está minha mulher?
— Eh! Bem! Eis-me aqui! — disse madame, tranqüila como de hábito,
embora não tricotasse naquele dia. A resoluta mão direita de madame ocupava-
se de um machado, no lugar dos costumeiros implementos mais suaves, e em seu
cinto trazia uma pistola e uma faca impiedosa.
— Aonde vai, minha esposa?
— Eu vou — ripostou madame — com meu marido, por ora. Você me verá
à frente das mulheres dentro em pouco.
— Então, venha! — gritou Defarge, com voz tonitruante.
— Patriotas e amigos, estamos prontos! À Bastilha!!
Com um frêmito que ressoou como se todo o alento da França assumisse a
forma da execrada palavra, o mar humano ergueu-se, onda por onda,
profundeza por profundeza, e inundou a cidade até aquele ponto. Sinos de alarme
repicando, tambores rufando, o mar enfurecido estrondeando em sua nova
praia... o ataque teve início.
Fossos profundos[156], pontes levadiças duplas, muralhas maciças de pedra,
oito grandes torres, canhões, mosquetes, fogo e fumaça. Através do fogo e da
fumaça, no fogo e na fumaça, pois o mar arremessou-o para um canhão, e,
naquele instante, ele se tornou um canhoneiro, Defarge da taberna lutava como
um soldado intrépido já havia duas ferozes horas.
Fossos profundos, pontes levadiças simples, muralhas maciças de pedra, oito
grandes torres, canhões, mosquetes, fogo e fumaça. Uma ponte caiu!
Trabalhem, companheiros, todos ao trabalho! Trabalhem, Jacques primeiro,
Jacques segundo, Jacques terceiro, Jacques quarto, Jacques qüinquagésimo,
Jacques dois mil, Jacques vinte mil! Em nome de todos os santos e de todos os
demônios, como preferirem, trabalhem! — Assim comandava Defarge databerna, ainda em seu canhão, agora fervendo.
— Sigam-me, mulheres! — conclamou madame esposa dele. — Ora! Nós
poderemos matar tão bem quanto os homens, depois que o lugar for tomado! —
E atrás dela, com um estridente e sequioso alarido, seguiu uma tropa de mulheres
armadas das mais diversas maneiras, mas todas armadas com igual avidez e
desejo de vingança.
Canhões, mosquetes, fogo e fumaça. Mas, ainda, o fosso profundo, a ponte
levadiça dupla, as muralhas maciças de pedra e as oito grandes torres. Ligeiros
deslocamentos do mar bravio, causados pelos feridos que tombavam. Armas
lampejantes, tochas bruxuleantes, fumegantes carroças com fardos de feno
úmido, o trabalho árduo de erguer barricadas em todas as direções, gritos,
rajadas, imprecações, bravura sem limites, estrondos, colisões e estrépitos, e os
rugidos furiosos do mar humano. Mas, ainda, o fosso profundo, a ponte levadiça
simples, as muralhas maciças de pedra e as oito grandes torres, e ainda Defarge
da taberna em seu canhão, incandescente após quatro ferozes horas de serviço.
Uma bandeira branca dentro da fortaleza e uma conferência[157], esta mal
perceptível no fragor da tempestade. De repente, o mar eleva-se,
incomensuravelmente mais alto e maior, e impulsiona Defarge da taberna pela
ponte levadiça abaixada, para dentro das muralhas maciças de pedra, por entre
as oito grandes torres que afinal se renderam!
Tão irresistível era a força do oceano que o impelia que mesmo tomar
fôlego ou voltar a cabeça era impraticável como se ele se estivesse debatendo
nas ondas dos tempestuosos mares do sul. Lá, apoiado numa quina da muralha,
forcejou para olhar em torno. Jacques terceiro estava a seu lado. Madame
Defarge, ainda liderando algumas mulheres, encontrava-se a curta distância,
empunhando sua faca. Por toda a parte havia tumulto, exultação, ensurdecedora
e maníaca confusão, um barulho estarrecedor, uma furiosa pantomima.
— Os prisioneiros!
— Os arquivos!
— As celas secretas!
— Os instrumentos de tortura!
— Os prisioneiros!
Entre todos esses gritos, e dez mil incoerências, “Os prisioneiros!” era o
mais proclamado pelo mar que se precipitava para dentro como se houvesse
uma eternidade de pessoas, tanto quanto de tempo e de espaço. Quando os
primeiros vagalhões passaram, carregando os funcionários da prisão e
ameaçando-os todos de morte imediata se restasse um único recanto por revelar,
Defarge pousou a mão forte no peito de um desses funcionários, um homem
com cabelos grisalhos, que trazia uma tocha, separou-o dos demais e imprensou-
o contra a muralha.
— Mostre-me a Torre Norte! — ordenou Defarge. — Depressa!
— Eu o farei de bom grado — replicou o homem — se o senhor vier
comigo. Mas não há ninguém lá.
— O que significa Cento e cinco, Torre Norte? — indagou Defarge. —
Depressa!
— O que significa, senhor?— Será que designa um prisioneiro ou uma cela? Terei de matá-lo para que
me responda?
— Mate-o! — cacarejou Jacques terceiro, que se aproximara.
Monsieur, trata-se de uma cela.
— Mostre-me!
— Venha por aqui, então.
Jacques terceiro, com sua habitual avidez, e evidentemente desapontado
com o fato de o diálogo tomar um rumo que não prometia derramamento de
sangue, segurou o braço de Defarge, que segurara o do carcereiro. Os três
haviam juntado as cabeças durante a breve discussão, para que pudessem ouvir
uns aos outros, tão tremendo era o ruído do oceano humano em sua irrupção na
fortaleza, e em sua inundação dos pátios, dos corredores e escadarias. Fora,
também, as vagas chocavam-se contra as muralhas com um bramido profundo,
rouco, do qual, ocasionalmente, destacavamse gritos que se erguiam como a
espuma do mar.
Através de sombrias passagens abobadadas onde a luz do dia jamais
brilhava, das hediondas portas que trancavam covis e jaulas escuras, descendo
escadas escorregadias e subindo novamente por íngremes rampas de pedra e
tijolo, mais parecendo cachoeiras secas do que escadarias, Defarge, o carcereiro
e Jacques terceiro, unidos pelos braços, seguiram o mais depressa que podiam.
Aqui e ali, principalmente no início, a inundação os seguiu e passou adiante.
Contudo, depois que desceram, contornaram e subiram a torre, não cruzaram
com mais ninguém. Isolados ali pela maciça espessura dos muros e arcos, a
tempestade que rugia dentro e fora da fortaleza só era audível para eles de uma
forma abafada e longínqua, como se o barulho do qual tinham vindo quase lhes
houvesse destruído o sentido da audição.
O carcereiro parou diante de uma porta baixa, pôs a chave na rangente
fechadura, empurrou a porta com esforço e anunciou:
— Cento e cinco, Torre Norte.
Havia uma janela pequena e sem vidro no alto da parede, com um anteparo
de pedra na frente, de modo que só se podia ver o céu curvando-se e olhando
para cima; uma pequena chaminé fechada por uma grade de madeira, a poucos
metros; uma pilha de cinzas na lareira; um tamborete, uma mesa e uma enxerga
de palha. E havia as quatro paredes enegrecidas, numa das quais via-se uma
argola de ferro enferrujada.
— Ilumine devagar as paredes, para que eu possa vêlas — ordenou Defarge
ao carcereiro.
O homem obedeceu e Defarge, com os olhos, acompanhou a tocha de
perto.
— Pare! Olhe ali, Jacques.
— Um “A” e um “M” — cacarejou Jacques terceiro, lendo avidamente.
— Alexandre Manette — murmurou Defarge em seu ouvido, seguindo o
traçado das letras com seu dedo incrustado de pólvora. — E aqui, ele escreveu
“um pobre médico”. E foi ele, sem dúvida, que rabiscou um calendário nesta
pedra. O que é isso em sua mão? Uma barra de ferro? Passe-a para mim!
Ele ainda tinha o bota-fogo de sua arma na mão. Efetuou uma troca súbitados dois instrumentos e, voltando para o tamborete carcomido e para a mesa,
quebrou-os em pedaços.
— Levante a tocha! — comandou com irritação ao carcereiro. — Procure
bem por entre esses fragmentos, Jacques. E veja! Aqui está a minha faca —
atirou-a para ele —, corte o colchão e examine-lhe a palha. Você, levante mais a
tocha!
Lançou um olhar ameaçador ao carcereiro, introduziuse na chaminé,
rompeu a grade e bateu nas paredes. Desprendeu-se um pouco de pó e de cal e
ele baixou a cabeça para evitar que lhe caíssem nos olhos. Em seguida, revistou
minuciosamente as cinzas, as aberturas e as fendas mais insignificantes nas quais
a sua arma esbarrara.
— Nada na madeira nem na palha, Jacques?
— Nada.
— Vamos juntar tudo no meio da cela. Assim! Erga a tocha!
O carcereiro ateou fogo na pequena pilha, que ardeu alto e quente.
Curvando-se de novo para cruzar a porta arqueada e baixa, eles deixaram o fogo
crepitando e refizeram o caminho até o pátio, parecendo recobrar o sentido da
audição à medida que desciam, até imergirem-se de novo na torrente.
Encontraram-na ondulando e agitando-se em busca de Defarge. Santo
Antônio clamava pela presença de seu taberneiro, para que este se pusesse à
frente da tropa encarregada do governador que defendera a Bastilha e disparara
contra o povo. Do contrário, o governador não chegaria ao Palácio de Ville para
julgamento[158]. Do contrário, o governador escaparia e o sangue do povo (que,
subitamente, adquirira algum valor, após tantos séculos sem valor algum) não
seria vingado.
No uivante universo de paixão e luta que parecia circundar esse velho e
cruel oficial, conspícuo em sua casaca cinza guarnecida de vermelho, só havia
uma pessoa calma e impassível, e essa era uma mulher.
— Vejam, ali está meu marido! — ela bradou, apontando para ele. —
Vejam Defarge! — Ela se manteve imóvel junto dele através das ruas, enquanto
Defarge e os demais o carregavam; permaneceu imóvel junto dele quando se
aproximavam de seu destino e começaram a golpeá-lo por trás; imóvel junto
dele também quando a copiosa chuva de punhaladas e pauladas se abateu pesada
sobre o homem ferido; estava tão perto quando ele caiu morto que, subitamente
animada, ela pôs o pé sobre seu pescoço e, com sua cruel faca, havia muito
pronta para atacar, decepou-lhe a cabeça[159]. A hora chegara, quando Santo
Antônio executaria sua medonha idéia de dependurar homens em vez de
lampiões para mostrar o que podia ser e fazer. O sangue de Santo Antônio fervia,
e o sangue da tirania e da dominação por mão de ferro esfriara, esfriara nos
degraus do Palácio de Ville, onde o corpo do governador jazia, esfriara no sapato
de madame Defarge, que pisara o corpo para facilitar a mutilação.
— Baixem o lampião! — gritava Santo Antônio, depois de procurar em
redor um outro objeto de suplício. — Eis aqui um dos soldados dele para ficar de
guarda!
A sentinela se balançou nos ares e a onda seguiu o seu curso.O mar de águas escuras e ameaçadoras, cujas ondas destruidoras se
sucediam com fúria, cujas profundezas eram ainda insondáveis e cuja força era
ainda desconhecida. O mar sem remorso de formas turbulentamente
convulsionadas, de vozes que clamavam por vingança e de faces temperadas nas
fornalhas do sofrimento até que o toque da piedade não mais pudesse marcá-las.
Contudo, no oceano de faces em que cada expressão feroz e furiosa se
estampava em cores vivas, havia dois grupos de faces, com sete em cada um,
tão fortemente contrastantes com as demais que nunca o mar revolto arrojou de
suas águas restos mais memoráveis. Sete faces de prisioneiros[160], subitamente
libertados pela tormenta que lhes arrombara o sepulcro, foram carregadas nos
ombros: todas amedrontadas, perdidas, perplexas e intrigadas, como se o Juízo
Final houvesse chegado e aqueles que se regozijavam ao seu redor fossem
espíritos extraviados. Outras sete faces havia, carregadas nos ombros, sete faces
mortas, cujas pálpebras caídas e olhos semicerrados aguardavam o Juízo Final.
Faces impassíveis que, entretanto, exibiam uma expressão não destruída, mas
suspensa. Faces que pareciam estar numa temível pausa, como se fossem
levantar as pálpebras caídas e prestar testemunho com os lábios exangues: “Vós
fizestes isso!”.
Sete prisioneiros libertados, sete ensangüentadas cabeças nos mastros, as
chaves da amaldiçoada fortaleza das oito grandes torres, algumas cartas
descobertas e outras recordações de prisioneiros dos velhos tempos, havia muito,
mortos de desespero, todas essas coisas, e outras da mesma natureza, os passos
ressoantes de Santo Antônio escoltaram pelas ruas de Paris em meados de julho
de 1789. Agora, que os céus derrotassem a fantasia de Lucie Darnay e
mantivessem aqueles longínquos passos bem longe de sua vida! Pois eles são
precipitados, ensandecidos e perigosos. E, tantos anos depois de um barril de
vinho ter-se quebrado na porta da taberna de Defarge, eles não são tão fáceis de
purificar, por se terem uma vez manchado de vermelho. XXII. O Mar Ainda se Agita
CAPÍTULO XXII
O MAR AINDA SE AGITA
O bravio Santo Antônio tivera apenas uma exultante semana para suavizar ao
máximo sua côdea de pão duro e amargo com o doce sabor dos abraços
fraternais e congratulações, quando madame Defarge voltou a sentar-se atrás do
costumeiro balcão para atender seus clientes. Não havia rosas em seus cabelos,
pois a grande fraternidade de espiões se tornara, no curto espaço de uma
semana, extremamente relutante em entregar-se à clemência do santo. Além
disso, os lampiões nas ruas pareciam-lhes balançar de modo agourento.
Madame Defarge, com os braços cruzados, desfrutava da luz e do calor
matinais, observando a taberna e a rua. Em ambas, viam-se grupos de vadios
esquálidos e miseráveis, que agora ostentavam o halo do poder entronizado em
sua penúria. O mais esfarrapado barrete cingindo a mais miserável cabeça
exibia o desagradável significado: “Sei o quanto foi difícil para mim, que uso este
barrete, suportar a minha vida; mas saberá você o quanto ficou fácil para mim,
que uso este barrete, destruir a sua vida?”. Cada braço descarnado e nu que a
falta de trabalho imobilizara agora podia sempre contar com a ocupação de
atacar. Os dedos das tricoteiras tornaram-se cruéis ao descobrirem as malhas que
podiam tecer. Havia uma perceptível mudança no semblante de Santo Antônio.
Sua imagem vinha sendo forjada ao longo de centenas de anos, mas os últimos e
conclusivos golpes do martelo ressaltaram grandemente a sua expressão.
Madame Defarge, sentada atrás do balcão, observava a mudança com um
discreto ar de aprovação, como convinha à líder das mulheres do bairro de Santo
Antônio. Uma de suas companheiras tricotava ao lado dela. De baixa estatura e
um tanto roliça, esposa de um esfaimado merceeiro e mãe de duas crianças, a
“tenente” de Madame Defarge conquistara o honroso epíteto de “A
Vingança”[161].
— Ouça! — exclamou A Vingança. — Que burburinho é esse?
Como se um rastilho de pólvora, vindo de fora do bairro até a porta da
taberna, se tivesse inflamado, um rumorejo alastrou-se depressa, chegando até
ali.
— É Defarge — madame anunciou. — Silêncio, patriotas! O taberneiro
entrou ofegante, tirou o barrete vermelho da cabeça[162] e lançou um olhar em
torno. — Escutem, todos! — bradou novamente madame. — Escutem monsieur
Defarge!
Defarge, arquejando, destacava-se contra o fundo de olhares inflamados e
lábios entreabertos que se agrupavam do lado de fora da porta.— Conte-nos, meu marido. O que aconteceu?
— Trago notícias do outro mundo.
— Como assim — gritou madame com desdém —, “do outro mundo”?
— Todos aqui se lembram do velho Foulon[163], aquele que dizia aos
famintos que comessem capim, e que morreu e foi para o inferno?
— Sim! — a resposta soou em uníssono.
— As notícias são a seu respeito. Ele está entre nós!
— Entre nós! — o coro em uníssono, novamente. — E morto?!
— Vivo! Ele nos temia tanto, e com razão, que se fez passar por morto e
mandou celebrar um magnífico funeral de mentira. Mas foi encontrado com
vida, escondido no campo, e trazido para cá. Acabei de vê-lo a caminho do
palácio de Ville, como prisioneiro. Eu disse que ele tinha razão para nos temer.
Respondam! Eu estava certo?
Se o infeliz pecador, um velho de mais de setenta anos, houvesse duvidado
disso e estivesse ali naquele momento, com certeza sua dúvida se dissiparia ao
ouvir a imprecação que respondeu as palavras de Defarge.
Seguiu-se um momento de profundo silêncio. Defarge e a esposa trocaram
um olhar inflexível. A Vingança curvou-se, e ouviu-se o ruído do tambor que ela
empurrou com o pé, por trás do balcão. — Patriotas! — clamou Defarge, com
determinação. — Estamos prontos?
Imediatamente, madame Defarge pôs o punhal na cintura; o tambor foi
percutido pelas ruas como se instrumento e instrumentista houvessem voado num
passe de mágica; e A Vingança, soltando gritos formidáveis e erguendo os braços
acima da cabeça como se encarnasse todas as quarenta Fúrias[164], foi de casa
em casa alertar as mulheres.
Os homens, terríveis na ira sanguinária com que olhavam pelas janelas,
municiaram-se de todas as armas que possuíam e acorreram ao chamado. As
mulheres, contudo, constituíam uma visão capaz de gelar o sangue dos mais
audaciosos. Abandonaram as tarefas domésticas que a extrema pobreza lhes
impunha, deixaram os filhos, os pais velhos e os enfermos, que jaziam nus e
famintos no chão duro, e precipitaram-se, com os cabelos desgrenhados,
apressando umas às outras e a si mesmas, beirando a loucura com seus gritos e
modos selvagens: “Prenderam o odioso Foulon, irmã! Prenderam o velho Foulon,
minha mãe! O patife do Foulon foi preso, filha!”. Então, um outro grupo de
mulheres se misturou a elas, batendo no peito, puxando os cabelos e berrando:
“Foulon está vivo! Foulon, que mandou o povo faminto comer capim! Foulon,
que mandou meu velho pai comer capim quando eu já não tinha pão para lhe
dar! E mandou-me dar capim ao meu bebê quando meu leite secou! Oh, mãe de
Deus, aquele Foulon! Oh, céus, quanto sofremos! Ouçam-me, meu bebê morto e
meu debilitado pai: de joelhos nestas pedras, juro que os vingarei de Foulon!
Maridos, irmãos, rapazes, dêem-nos o sangue de Foulon, dêem-nos sua cabeça,
seu coração, seu corpo e sua alma, estraçalhem Foulon e enterrem-no, para que
dele brote o capim!”. Com esses gritos, inúmeras mulheres imergiram num furor
cego, e rodopiaram, agrediram e rasgaram as próprias amigas até que
tombaram desmaiadas e só escaparam de ser pisoteadas graças a seus homens.
Ainda assim, não perderam sequer um minuto. Nem um minuto! O talFoulon estava no palácio de Ville e podia ser posto em liberdade. Isso nunca, pois
Santo Antônio sabia bem dos sofrimentos, dos insultos e injustiças que padecera!
Homens armados e mulheres ensandecidas congregaram-se e, arrastando atrás
de si toda a escória que atraíam, marcharam para fora do bairro tão depressa
que, em apenas um quarto de hora, não havia mais uma criatura no coração de
Santo Antônio, com exceção de umas poucas velhas e as crianças de colo.
Não, ele não seria posto em liberdade. Àquela altura, a turbamulta já
entupira a sala de interrogatório onde se encontrava o velho feio e perverso, e se
espalhara pelas praças e ruas adjacentes. O casal Defarge, A Vingança e Jacques
terceiro ocupavam a fileira da frente, a pequena distância do prisioneiro.
— Vejam! — bradou madame, apontando com o punhal.
— Vejam o velho patife amarrado com cordas. Deviam amarrar-lhe os
braços atrás das costas com capim. Ha, ha! Seria bem feito. Dêem-lhe capim
para comer! — Madame colocou o punhal debaixo do braço e aplaudiu como se
estivesse num teatro.
As pessoas imediatamente atrás de madame Defarge explicaram a causa
de sua satisfação aos que vinham em seguida e estes aos que estavam atrás e
assim por diante, de forma que os aplausos se espalharam até retumbarem pelas
ruas das cercanias. Da mesma forma, ao longo das duas ou três horas de extenso
palavrório, as freqüentes expressões de impaciência de madame Defarge foram
transmitidas ao longe com prodigiosa ligeireza, graças a alguns homens que,
dotados de grande agilidade, haviam escalado a fachada do prédio para espiar
pelas janelas e, como conheciam bem madame Defarge, atuavam como um
telégrafo humano entre ela e a multidão.
Por fim, o sol se ergueu tão alto que generosamente lançou um raio, como
um sinal de esperança ou de proteção, sobre a cabeça do velho prisioneiro. Tal
benevolência era intolerável. Num átimo, a frágil barreira que se mantivera por
um tempo surpreendentemente longo desmoronou-se e Santo Antônio apoderou-
se do prisioneiro!
No mesmo momento, a notícia espalhou-se até os con-fins da turba.
Defarge saltara a balaustrada e a mesa e enlaçara o desventurado patife num
abraço mortal. Madame Defarge seguira o marido e agarrara uma das cordas
que o amarravam. A Vingança e Jacques terceiro ainda não se haviam
aproximado nem os homens nas janelas tinham saltado para o salão, lá ficando
como aves de rapina empoleiradas, quando o brado irrompeu e pareceu ressoar
por toda a cidade: “Tragam-no para fora! Levem-no ao lampião!”.
Arrojaram-no ao solo, arrastaram-no pela escadaria, ora de joelhos, ora
sobre as mãos, ora de cabeça para baixo, e centenas de mãos lhe atiraram na
cara punhados de feno e de palha. O infeliz, dilacerado, machucado, ofegando,
sangrando, mas sempre implorando e suplicando, agitou-se em agonia, com a
força que lhe concedia o desespero, assim que a turbamulta recuou para o
contemplar. Foi arrastado como uma tora de madeira podre através de uma
floresta de pernas. Empurraram-no até a esquina mais próxima, onde
balançavam os lampiões mortíferos, e ali madame Defarge o soltou, como um
gato teria feito a um rato, e, silenciosa e tranqüilamente, observou-o enquanto os
homens terminavam os preparativos e ele lhe rogava clemência. As mulheresatiraram-lhe insultos veementes e seus maridos gritaram desdenhosamente que
deveria morrer com a boca cheia de capim. Uma vez, suspenderam-no na
corda, mas esta se rompeu, e os homens apanharam-no com gritos raivosos...
Pela segunda vez, a corda se rompeu e os homens o apanharam com gritos
raivosos... Então, a corda mostrou-se misericordiosa e o estrangulou. Em seguida,
fincaram sua cabeça numa vara pontuda e encheram-lhe a boca de capim.
Diante dessa visão, todos de Santo Antônio se puseram a dançar.
Não terminara ainda a sanguinária tarefa do dia, pois Santo Antônio tanto
gritara e dançara em sua fúria que o sangue tornou a ferver em suas veias
quando, no final da tarde, anunciaram que o genro do executado[165], outro
entre os inimigos e ofensores do povo, estava chegando a Paris sob uma escolta
de quinhentos cavalos. Santo Antônio inscreveu seus crimes em tremeluzentes
folhas de papel, apoderou-se dele, e o teria arrebatado da proteção de um
exército, se fosse preciso, fincou-lhe a cabeça e o coração em outros chuços e
carregou os três troféus do dia pelas ruas numa feroz procissão.
Já era noite quando os homens e mulheres regressaram para seus filhos, que
choravam de fome. Então, formaram-se longas filas diante das miseráveis
padarias, todos aguardando pacientemente sua vez de comprar um pão de
péssima qualidade. E enquanto esperavam com o estômago vazio e debilitado,
matavam o tempo abraçando-se uns aos outros, trocando congratulações pelo
triunfo. Pouco a pouco, as filas de esfarrapados foram diminuindo até
desaparecerem por completo. E as pobres luzes começaram a brilhar através das
janelas; armaram-se fogueiras nas ruas, nas quais se cozinhou em comum, e
cearam diante das portas.
Ceias escassas e miseráveis, desprovidas de carne e de qualquer tipo de
molho que amaciasse o pão duro. Contudo, uma calorosa camaradagem tornava
nutritiva a magra refeição e acendia-lhes algumas centelhas de alegria. Pais e
mães que haviam tomado parte ativa nos horrores do dia brincavam gentilmente
com seus filhos esquálidos. Os namorados, com tão terrível mundo a seu redor e
à sua frente, amavam e acalentavam esperanças.
Já era quase manhã quando o último grupo de fregueses saiu da taberna, e
monsieur Defarge disse à madame sua esposa em tom rouquenho, enquanto
fechava a porta:
— Por fim, conseguimos!
— É... — concordou madame. — Quase.
Santo Antônio adormeceu. Os Defarge adormeceram. Até mesmo A
Vingança dormia com seu faminto merceeiro, e o tambor repousava. A voz do
tambor era a única que o açodamento e o sangue não haviam modificado. Como
sua guardiã, A Vingança poderia despertá-lo e obter o mesmo rufar de antes da
queda da Bastilha ou da captura do velho Foulon. O que não ocorria com as vozes
roucas dos homens e mulheres de Santo Antônio. XXIII. Ergue-se o Fogo
CAPÍTULO XXIII
ERGUE-SE O FOGO
Notava-se uma mudança na aldeia onde a fonte murmurejava e de onde o
reparador de estradas saía diariamente para extrair das pedras o escasso pão
com que mantinha unidos sua pobre e ignorante alma e seu pobre e esquálido
corpo. A prisão no alto do penhasco não parecia tão poderosa quanto antes. Havia
soldados para guardá-la, mas não muitos; havia oficiais para comandar os
soldados, mas nenhum deles tinha outra certeza do que seus homens fariam que
não esta: eles provavelmente não obedeceriam às suas ordens.
Por toda a parte os campos se estendiam, arruinados, nada produzindo além
de desolação. Cada folha verde de pasto ou de cereais mostrava-se tão murcha e
enfraquecida quanto o povo miserável. Tudo estava retorcido para baixo, abatido,
oprimido e despedaçado. Casas, valados, animais domésticos, homens, mulheres,
crianças, o solo sob seus pés, tudo estava exaurido.
Monseigneur (como indivíduo, quase sempre um perfeito cavalheiro) era
uma bênção nacional; conferia um tom cavalheiresco a tudo ao seu redor, era
um elegante exemplo da vida luxuosa e resplandecente e prestava-se a muitos
outros propósitos de igual natureza. Entretanto, como classe social, monseigneur
havia, de um modo ou de outro, conduzido a situação àquele estado de coisas. Era
estranho que a natureza e os homens, destinados exclusivamente a monseigneur,
estivessem tão confrangidos e esmagados! Certamente, devia haver alguma
falha de visão nos desígnios eternos! Contudo, assim era. E, tendo extraído das
pedras a última gota de sangue e apertado o último parafuso da cremalheira com
tanta freqüência que o espanou, fazendo-o agora girar em falso, monseigneur
começou a fugir[166] de um fenômeno tão abjeto quanto inexplicável.
Todavia, não era essa a mudança na aldeia, e em muitas aldeias como
aquela, a que nos referíamos. Por vintenas de anos, monseigneur a havia
confrangido e esmagado, raramente agraciando-a com a sua presença, exceto
para os prazeres da caça, encontrados ora na caça às pessoas, ora na caça aos
animais, para cuja preservação monseigneur edificantemente mandava reservar
extensas áreas, assim condenadas a permanecerem incultas e estéreis. Não. A
mudança consistia mais no aparecimento de estranhos rostos da classe baixa do
que no desaparecimento das cinzeladas, nobres, beatíficas e beatificadas faces de
monseigneur.
Pois nesses tempos, quando o reparador de estradas trabalhava, solitário, no
pó, quase nunca parando para refletir que do pó viera e ao pó retornaria[167], já
que estava quase sempre pensando, em vez disso, no pouco que teria para comere no quanto seria capaz de comer, se pudesse dispor de mais comida, nesses
tempos, quando erguia os olhos de seu trabalho solitário para contemplar o
panorama, veria uma figura rude aproximar-se a pé, figura outrora tão rara, mas
que, agora, era uma presença constante. À medida que o forasteiro avançava, o
reparador de estradas constataria sem surpresa que se tratava de um homem
com cabelos desgrenhados, de aspecto quase selvagem, alto, calçando sapatos de
madeira que pareciam toscos até mesmo aos olhos de um reparador de estradas,
sinistro, grosseiro, amorenado, impregnado de lama e de poeira de muitas
estradas, molhado pela travessia de tantos charcos, coberto de espinhos, folhas e
musgo de muitos atalhos pelas florestas.
Um homem com essa descrição aproximou-se dele, como um espectro, por
volta do meio-dia, sob as intempéries de julho, no momento em que se sentava
em sua pilha de pedras debaixo de uma escarpa, abrigando-se como podia da
chuva de granizo.
O homem olhou para ele, olhou para a aldeia no vale, para o moinho e para
a prisão no penhasco. Depois de ter identificado esses alvos em sua mente
inculta, disse, num dialeto apenas inteligível:
— Como vai, Jacques?
— Vou bem, Jacques.
— Então, aperte aqui!
Ele se apertaram as mãos e o homem sentou-se sobre a pilha de pedras.
— Não vai almoçar?
— Eu, agora, só janto — replicou o reparador de estradas, com ar faminto.
— É a moda — resmungou o homem. — Não vejo ninguém almoçar em
parte alguma.
Ele apanhou um cachimbo enegrecido, encheu-o, acendeu-o com
pederneira e aço e chupou até que o fumo ardeu completamente. Então, afastou-
o de si e, com o polegar e o indicador, jogou em seu interior alguma coisa que
chamejou e apagou-se numa coluna de fumaça.
— Aperte aqui — foi a vez de o reparador de estradas propor um aperto de
mãos, depois de observar essas operações. Os dois tornaram a apertar-se as
mãos. — Esta noite? — indagou.
— Esta noite — confirmou o homem, colocando o cachimbo na boca.
— Onde?
— Aqui.
Ele e o reparador de estradas, sentados sobre a pilha de pedras, fitaram-se
em silêncio, enquanto o granizo caía entre ambos como uma carga minúscula de
baionetas, até que o céu começou a clarear sobre a aldeia.
— Mostre-me — pediu, então, o viajante, subindo até o alto da colina.
— Veja — começou a explicar o reparador de estradas, com o dedo
estendido. — Você desce por ali e segue direto pela rua, passa a fonte...
— Para o diabo com tudo isso! — interrompeu o outro, correndo os olhos
pelo horizonte. — Eu não vou passar por ruas e fontes. Então?
— Bem. Terá de caminhar mais ou menos duas léguas até o topo daquela
montanha do outro lado da aldeia.
— Ótimo. Quando deixa o trabalho?— Ao anoitecer.
— Pode acordar-me antes de ir? Andei duas noites seguidas sem parar para
descansar. Vou terminar meu cachimbo e dormir como uma criança. Você me
acorda?
— Claro.
O caminhante fumou o cachimbo, pousou-o sobre o peito, tirou seus toscos
sapatos de madeira e deitou-se de costas sobre a pilha de pedras. Adormeceu
imediatamente.
Enquanto o reparador de estradas realizava sua poeirenta tarefa, e as nuvens
de granizo se afastavam, revelando luminosas faixas e listras de céu que
correspondiam a cintilações prateadas ao longo da paisagem, o homenzinho (que
agora usava um barrete vermelho, em substituição ao azul) parecia fascinado
pela figura sobre a pilha de pedras. Seus olhos se voltavam em sua direção com
tanta freqüência que suas ferramentas eram movidas mecanicamente e, pode-se
dizer, de modo pouco produtivo. A face brônzea, os cabelos negros e a barba
desgrenhados, o surrado barrete vermelho, a áspera mistura de tecido grosseiro e
felpudas peles de animais das roupas que vestia, a compleição robusta debilitada
pela fome, os lábios comprimidos de forma carrancuda e desesperada,
inspiravam ao reparador de estradas uma grande admiração.
O viajante vinha de longe. Seus pés estavam feridos e seus tornozelos
esfolados sangravam: os sapatos enormes, cheios de folhas, tornaram-se pesados
por tanto se arrastarem ao longo de tantas léguas, e seus trajes exibiam tantos
buracos quantas eram as chagas em seu corpo. Curvando-se sobre ele, o
reparador de estradas procurou descobrir se ele trazia armas secretas escondidas
no peito; em vão, pois ele dormia com os braços cruzados sobre o tórax, tão
apertados como os lábios. As cidades fortificadas com as suas trincheiras, seus
corpos de guarda, seus portões e pontes levadiças pareciam ao reparador de
estradas insignificantes em comparação com aquela figura. E, quando ergueu os
olhos para o horizonte e olhou em torno, o camponês viu, na sua escassa
imaginação, figuras semelhantes, que não se detinham diante de nenhum
obstáculo, dirigindo-se a todos os pontos da França.
O viajante continuou a dormir, indiferente às intermitentes tempestades que
despejavam granizo sobre seus braços e pernas, nem ao sol que, a intervalos,
pousava sobre seu rosto, fazendo as pequenas pedras de gelo cintilarem como
diamantes, até descer no lado oeste, incandescendo o céu. Então, o reparador de
estradas, tendo recolhido as ferramentas e seus demais pertences, acordou-o.
— Ótimo! — disse o homem, erguendo-se sobre os cotovelos. — Duas
léguas até o topo da montanha”.
— Mais ou menos isso.
— Mais ou menos. Ótimo!
O reparador de estradas foi para casa, precedido pelo pó conforme a
direção do vento, e logo chegou à fonte, comprimindo-se por entre as esquálidas
vacas que ali tinham sido levadas para beber água, parecendo cochichar para
elas quando cochichou para toda a aldeia. Depois que a aldeia fez sua magra
refeição, não se recolheu para dormir, como de costume, mas saiu novamente
para a rua e lá permaneceu. Os aldeões haviam adquirido a curiosa mania decochichar, bem como o hábito de, quando se reuniam junto da fonte à noite, fitar
de maneira expectante o mesmo ponto no céu. Monsieur Gabelle, funcionário-
chefe do lugar, ficou inquieto. Subiu sozinho para o telhado de sua casa e também
olhou naquela direção; postado atrás da chaminé, contemplou as faces lá
embaixo, perto da fonte, e mandou um recado ao sacristão, que guardava as
chaves da igreja, prevenindo-o de que talvez fosse necessário tocar a rebate.
A noite avançava. As árvores que cercavam o velho castelo, mantendo-o
solitariamente afastado, agitavam os galhos sob o vento como se ameaçassem o
edifício maciço e sombrio na escuridão. Sobre os dois lances da escadaria de
pedra, a chuva desabou com violência, açoitando a porta principal como um
mensageiro que precisa despertar os moradores; lufadas de vento atravessaram o
salão por entre os chuços e os punhais, lamentaram-se escada acima e
sacudiram o cortinado do leito onde o último marquês havia dormido. Do leste,
do oeste, do norte e do sul, através das florestas, quatro figuras rudes andavam
com passos vigorosos, esmagando a grama alta e despedaçando os galhos,
marchando cautelosamente para reunirem-se no pátio. Quatro luzes irromperam
ali e moveram-se em sentidos diferentes, e tudo voltou a mergulhar nas trevas.
Não por muito tempo, porém. O castelo começou a fazer-se estranhamente
visível por alguma luz própria, como se seu interior se estivesse tornando
luminoso[168]. Então, um raio tremeluziu na arquitetura da fachada, realçando
áreas translúcidas e mostrando onde se encontravam suas balaustradas, arcos e
janelas. Então, elevou-se ainda mais alto e coruscante. Em pouco, das grandes
janelas brotaram chamas bruxuleantes, e as faces pétreas despertaram e
contemplaram o fogo.
Um débil murmúrio ergueu-se em frente ao casarão, vindo das poucas
pessoas que haviam sido esquecidas lá, e ouviu-se o ruído de um cavalo, selado
às pressas, que partiu a galope. Barulho de esporas e de respingos na escuridão, e
as rédeas foram arrastadas pela fonte na aldeia; o cavalo parou, espumando, na
porta de monsieur Gabelle.
— Socorro, Gabelle! Acudam, todos!
O toque a rebate soou, impaciente, mas qualquer outro tipo de ajuda (se
houve alguma) resultou nulo. O reparador de estradas e os seus duzentos e
cinqüenta amigos perfilaram-se junto à fonte com os braços cruzados,
observando a coluna de fumaça no céu.
— Deve ter uns doze metros de altura — comentaram, em tom implacável.
E não se moveram.
O cavaleiro que viera do castelo e seu espumante cava-lo atravessaram a
aldeia estrepitosamente e galoparam escarpa acima, rumo à prisão no penhasco.
No portão, um grupo de oficiais admirava o incêndio. Num grupo separado,
estavam os soldados.
— Socorro, cavalheiros oficiais! O castelo está em chamas; muitos objetos
valiosos podem ser salvos do fogo se corrermos para apagá-lo! Socorro, socorro!
Os oficiais olharam para os soldados, que olhavam para o fogo. Não deram
nenhuma ordem. E responderam, sacudindo os ombros e mordendo os lábios:
— Deixe queimar.
Quando o cavaleiro desceu o morro e novamente percorreu a rua, a aldeiaachava-se resplandecente. O reparador de estradas e seus duzentos e cinqüenta
amigos, inspirados, como se fossem uma única pessoa, pela idéia de iluminar a
noite, tinham disparado até suas casas e estavam colocando velas em todas as
janelas. A escassez geral de tudo os levara a tomar emprestadas, de uma forma
um tanto peremptória, as velas de monsieur Gabelle; num momento de relutância
e hesitação deste, o reparador de estradas, outrora tão submisso à autoridade,
ressaltou que suas carruagens dariam uma excelente lenha para fogueiras, e que
os cavalos de posta ficariam torrados.
O castelo foi abandonado à voracidade das chamas. Em meio aos fragores
da conflagração, um vento quente e rubro, como que saído direto dos abismos
infernais, parecia querer explodir o edifício. Ao fulgor das chamas que lambiam
as paredes, as faces pétreas retorciam-se, como se atormentadas. Quando
grandes pedaços de pedra e madeira caíam, a face com duas marcas no nariz
obscureceu-se: logo, porém, voltou a destacar-se por entre a fumaça, como se
fosse o rosto cruel do marquês queimando na fogueira e lutando contra as
labaredas.
O castelo ardeu. As árvores mais próximas, capturadas pelo fogo, se
chamuscavam e encolhiam. As árvores mais distantes, incendiadas pelas quatro
figuras ferozes, cingiam o prédio em chamas com uma nova floresta de fumaça.
O ferro e o chumbo liquefeitos fumegavam sobre a bacia de mármore da fonte.
A água secara. Os tetos dos torreões se derreteram como gelo sob o efeito do
calor e precipitavam-se como quatro cascatas de fogo. Grandes fendas e
rachaduras cristalizavam-se nas sólidas paredes; pássaros estupefatos voejavam
e caíam na fornalha; as quatro ferozes figuras caminhavam para leste, oeste,
norte e sul, ao longo das estradas amortalhadas pela noite, guiadas pelo farol que
haviam acendido, rumo a seu próximo alvo. O vilarejo iluminado se apropriara
do sino e substituíra o obrigatório toque a rebate por um alegre badalar.
Não apenas isso. A aldeia, entorpecida pela fome, pelo fogo, pelo tocar dos
sinos, e lembrando-se da ligação de monsieur Gabelle com a coleta de aluguéis e
de impostos, embora ultimamente ele recebesse apenas prestações irrisórias a
título de impostos e absolutamente nenhum aluguel, tornou-se impaciente por
entrevistá-lo e, assim, cercou-lhe a casa e solicitou-lhe que descesse para uma
conferência pessoal. Diante do convite, monsieur Gabelle aferrolhou a porta e
recolheu-se para uma reunião consigo mesmo. O resultado dessa reunião foi que
Gabelle retirou-se para o teto da casa e escondeu-se atrás da chaminé, dessa vez
determinado a, caso sua porta fosse arrombada (era um homenzinho do sul, de
temperamento vingativo), atirar-se do parapeito e esmagar um ou dois homens
com sua queda.
Provavelmente, monsieur Gabelle passou uma longa noite lá em cima, tendo
por candeeiro o distante castelo em chamas, embalado pelo som de batidas em
sua porta e pelos gritos de regozijo; para não mencionar o malfadado lampião
que balançava diante do portão de sua estalagem, o qual a multidão demonstrava
uma certa inclinação para substituir por ele. Que doloroso suspense, passar uma
noite inteira de verão à margem de um oceano negro, pronto para imergir em
seu negrume, como era a resolução de monsieur Gabelle! Contudo, a benfazeja
aurora por fim despontou, e, apagadas as velas acendidas às pressas na aldeia, opovo felizmente se dispersou e monsieur Gabelle pôde descer são e salvo, por
ora.
Num raio de centenas de quilômetros, e sob a luz de outros incêndios, havia
outros funcionários menos afortunados, naquela e em outras noites, a quem os
primeiros raios de sol encontravam dependurados em outrora pacíficas ruas, nos
vilarejos onde haviam nascido e crescido. Havia, também, outros aldeões e
camponeses menos afortunados do que o reparador de estradas e seus amigos,
sobre os quais os funcionários e soldados investiam com êxito, e a quem
dependuravam, por seu turno. Mas as ferozes figuras prosseguiam rumo ao leste,
oeste, norte e sul, fosse como fosse. E, não importando quem fosse dependurado,
o fogo ardia. E a altura que os patíbulos deveriam ter para se converter em água
suficiente para apagar tanto fogo, nenhum funcionário, por meio de nenhuma
operação matemática, seria capaz de calcular. XXIV. Atraído pelo Abismo
CAPÍTULO XXIV
ATRAÍDO PELO ABISMO[169]
Foram três anos de tempestade. Três anos em que se ergueram chamas
devoradoras e ondas furiosas de um mar bravio, em que a terra estremeceu,
convulsionada pela maré de um oceano que subia e subia, para o terror de todos
os que o contemplavam da praia.
Três aniversários da pequena Lucie somaram-se ao fio dourado com que
Lucie Darnay tecia a vida serena do seu lar.
Os moradores do lugar de acústica prodigiosa haviam passado muitas noites
escutando ecos assustadores, pois não ignoravam que os passos que lhes
chegavam aos ouvidos eram os de um povo em tumulto, que, agindo sob uma
bandeira vermelha[170], declarava a pátria em perigo[171] e que, por obra de
um terrível encantamento, se havia transformado em um bando de feras.
Monseigneur, tomado em sentido figurado, como classe, estava assombrado
por ver que seu país o prezava tão pouco que não somente o arrojara do solo
pátrio como também gostaria de expulsá-lo deste mundo[172]. A exemplo
daquele camponês da fábula que, depois de tanto trabalho para invocar o
demônio[173], ficou tão espantado que fugiu em vez de lhe fazer perguntas, sua
excelência, depois de ter lido durante tantos anos o livro de orações de trás para a
frente[174], e de valer-se de todos os meios mágicos para obrigar o demônio a
aparecer-lhe, mal o avistou ficou tão aterrorizado que deitou a correr.
O “Olho de Boi” da corte se dispersara, para não servir de alvo a uma
saraivada de patrióticas balas. Nunca fora prudente enxergar através daquele
olho, que unia à arrogância de Lúcifer as paixões de Sardanapalo e a cegueira de
uma toupeira[175]. Toda a corte empreendera a fuga, desde o centro, constituído
pelo círculo mais íntimo, até os limites apodrecidos onde imperavam a corrupção
e a hipocrisia. A realeza já não existia; fora presa e sitiada em seu palácio e
acabava de ser “suspensa”[176]no momento em que as últimas notícias
chegaram à Inglaterra.
Era o mês de agosto[177] de 1792 e monseigneur, a essa altura, já se
encontrava em completa dispersão. Naturalmente, o Banco Tellson e Companhia,
de Londres, era o seu quartel-general. Existe a crença de que os espíritos,
preferencialmente, freqüentam os lugares por onde seus corpos antes
transitavam e sua excelência, agora com os bolsos vazios, dirigia-se sempre à
casa onde tinha estado o seu dinheiro. Aquele era o lugar que dispensava maior
consideração a esses franceses, e, além disso, o Tellson era um estabelecimento
magnífico, demonstrando grande liberalidade para com os antigos clientes quehaviam caído de sua elevada posição; mais ainda, alguns nobres, prevendo o
saque ou a confisco de seus bens, tinham transferido seus fundos para Londres
desde os primeiros dias da tempestade. Por todas essas razões, todos os que
chegavam da França acorriam ao Tellson, o que tornava o banco, em termos de
informações, uma espécie de bolsa privilegiada. E esse fato era tão conhecido do
público, sendo tão numerosas as pessoas que iam ali em busca de notícias, que o
Tellson havia tomado a providência de anotar numa folha de papel as últimas
novidades recebidas e afixá-lo nas janelas do prédio para que todos os que
passavam por Temple Bar pudessem ler.
Charles Darnay, numa tarde abafada e úmida, com os cotovelos apoiados
sobre a mesa do escritório do senhor Lorry, conversava com ele em voz baixa.
Aquela espécie de “câmara dos condenados”, outrora reservada às entrevistas
com “A Casa”, servia agora de departamento de notícias e encontrava-se repleta
de curiosos. Faltava apenas meia hora para se fecharem as portas do banco.
— Mas, embora o senhor seja a pessoa mais cheia de vitalidade que eu
conheça... — disse Charles, um tanto hesitante — eu ainda devo sugerir que...
— Compreendo. Que sou demasiado velho? — perguntou o senhor Lorry.
— Uma estação rigorosa, uma longa jornada, a incerteza dos meios de
transporte, um país desorganizado, uma cidade onde nem mesmo o senhor estará
seguro...
— Meu caro Charles — rebateu o senhor Lorry com descontraída
segurança —, a sua argumentação não me desaconselha a partir, mas sim a
permanecer lá. Creia-me, não correrei riscos. Ninguém se importará com um
velho de quase oitenta anos quando há tantas pessoas bem mais interessantes para
atrair-lhes a atenção. Quanto à desorganização de Paris, não fosse por esta, não
haveria necessidade de enviar alguém que conheça bem a cidade e os negócios e
que, além disso, seja de confiança do Tellson. E quanto às incertezas da viagem,
a longa jornada e o frio do inverno[178], se, depois de todos esses anos, eu não
estivesse preparado para submeter-me a algumas poucas inconveniências pelo
bem do Tellson, quem estaria?
— Desejaria tanto ir — revelou Charles, agitado e como se pensasse em voz
alta.
— Não diga! E ainda me faz um sermão sobre prudência! — exclamou o
senhor Lorry. — Desejaria ir, é? Um francês de nascimento? Você é mesmo um
sábio conselheiro!
— Meu caro senhor Lorry, é porque sou francês que a idéia (que, entretanto,
eu nem pretendia mencionar aqui) me tem ocorrido com freqüência. É
impossível alguém não pensar, tendo nutrido uma certa compaixão por um povo
desafortunado e tendo lhe deixado alguma coisa — ele retomou o ar pensativo
anterior —, que talvez lhe fosse possível ser ouvido, que talvez tivesse o poder de
persuadir esse povo a controlar-se. Ontem à noite, depois que o senhor saiu,
quando eu conversava com Lucie...
— Quando conversava com Lucie — o senhor Lorry repetiu. — Imagino se
você não sente remorso ao mencionar o nome de Lucie enquanto acalenta o
desejo de ir para a França!
— Contudo, eu não irei — replicou Charles Darnay, com um sorriso. — Maso senhor, sim.
— Com toda a certeza. A verdade, meu caro Darnay — o senhor Lorry
lançou um olhar à distante “Casa” e baixou a voz —, é que você nem avalia a
dificuldade com que se fazem as nossas transações e o perigo que correm os
nossos livros e documentos de além-mar. Só Deus sabe as comprometedoras
conseqüências que sofreriam inúmeras pessoas, se alguns desses documentos
fossem destruídos ou confiscados. E isso pode ocorrer a qualquer momento,
como não ignora, pois ninguém pode assegurar que Paris não esteja em chamas
hoje ou que não seja saqueada amanhã![179]Agora, a providência de, sem
perda de tempo, selecionar criteriosamente e queimar esses papéis, ou, ao
contrário, trazê-los de lá em segurança, não está ao alcance de ninguém além de
mim. Devo recusar-me, se o Tellson sabe disso, o Tellson, cujo pão me tem
alimentado nos últimos sessenta anos, só porque minhas juntas estão um pouco
enrijecidas? Ora, eu não passo de um garoto para muitos de meus colegas!
— Como admiro a coragem de seu espírito jovem, senhor Lorry.
— Bobagem. E devo lembrá-lo, meu caro Charles — o senhor Lorry tornou
a fitar “A Casa” —, que é praticamente impossível tirar o que quer que seja de
Paris, no presente momento. Hoje nos foram trazidos documentos preciosos (o
que lhe estou contando é estritamente confidencial. Eu não deveria comentar
sobre esse assunto nem com você) pelos mais estranhos portadores que pode
imaginar. Cada um deles esteve a um triz de ter a cabeça decepada, ao
atravessar as barreiras. Em outros tempos, nossa correspondência ia e vinha com
a mesma facilidade que havia na velha e prática Inglaterra. Atualmente, porém,
tudo é retido.
— O senhor partirá mesmo esta noite?
— Oh, sim. A urgência é demasiado grande para admitir atrasos.
— Não levará ninguém com o senhor?
— Propuseram-me toda sorte de acompanhantes, mas nenhum deles me
convém. Pretendo levar Jerry. Jerry tem sido, há muitos anos, meu guarda-
costas nas noites de domingo e me acostumei com ele. Ninguém suspeitará de
que seja mais do que um buldogue inglês, ou que tenha outro desígnio senão o de
morder quem quer que ouse tocar-lhe no amo.
— Devo repetir que admiro a coragem de seu espírito jovem.
— E eu repito que isso é bobagem. Depois que tiver cumprido a minha
pequena missão, talvez aceite a proposta do Tellson de aposentar-me e viver em
paz. Já é tempo de pensar em envelhecer.
Esse diálogo se passara diante da escrivaninha habitual do senhor Lorry, a
dois passos de distância de onde monseigneur se vangloriava de como, em breve,
se vingaria daquela plebe ordinária. Era próprio de sua excelência, em meio aos
revezes da vida de refugiado, e era muito próprio da ortodoxia britânica, falar
dessa terrível Revolução como se esta fosse a única safra, sob o céu, colhida sem
jamais ter sido semeada, como se nada jamais tivesse sido feito ou deixado de
fazer que conduzisse a tal resultado, como se os observadores dos milhões de
miseráveis da França e de seus desviados e malbaratados recursos, que, de outra
forma, os teriam tornado prósperos, não houvessem, anos antes, percebido a sua
inexorabilidade e não tivessem registrado com todas as letras tudo o queviram[180]. Tal fatuidade, combinada com os extravagantes projetos de
monseigneur para a restauração de uma ordem que se havia totalmente exaurido,
exaurindo também a terra e os céus, era intolerável para qualquer homem
sensato que conhecesse a verdade. Tanta fatuidade encheu os ouvidos de Charles
Darnay e zumbiu perturbadoramente em seu cérebro, misturando-se à latente
inquietação que ultimamente o vinha perseguindo.
Entre os presentes, encontrava-se o senhor Stryver, advogado do Tribunal
Superior de Justiça, já bem avançado em sua carreira rumo a um posto oficial,
que discorria em voz alta sobre o tema. Expunha ele a monseigneur as estratégias
que concebera para exterminar o povo e eliminá-lo da face da Terra, que
passaria muito bem sem aquela ralé, e para a consecução de diversos objetivos
afins, estratégias essas semelhantes, em sua natureza, à abolição das águias por
meio do espargimento de sal nas caudas de toda a espécie[181]. A ele, Charles
escutava com especial antagonismo, dividido entre o impulso de sair para não
ouvir mais nada e o desejo de ficar para contestar o que diziam, quando o
inevitável aconteceu, pondo fim ao conflito.
“A Casa” aproximou-se do senhor Lorry e, colocando sobre a sua
escrivaninha um sujo envelope fechado, indagou-lhe se já havia descoberto
quem era o destinatário daquela carta. “A Casa” pousou o envelope tão perto de
Darnay que este, rapidamente, leu o sobrescrito, pois ali constava seu verdadeiro
nome. O endereço, traduzido para o inglês, rezava: “Urgentíssimo. Ao senhor
outrora marquês de St. Evrémonde[182], da França, aos cuidados dos senhores
Tellson & Cia., banqueiros, Londres, Inglaterra”.
Na manhã do casamento, o doutor Manette lhe impusera a promessa de
manter em segredo a sua verdadeira identidade, a menos que ele, o doutor, o
desobrigasse do juramento. Ninguém mais, além dos dois, conhecia seu nome. A
própria esposa não alimentava nenhuma desconfiança. Muito menos o senhor
Lorry.
— Não — respondeu o senhor Lorry à “Casa”. — Perguntei a todos os
presentes, mas ninguém soube informar quem é e onde se pode encontrar esse
cavalheiro.
Como os ponteiros do relógio aproximavam-se da hora de fechar o banco,
havia uma grande movimentação entre os palradores visitantes, que, no caminho
para a porta, passavam pela mesa do senhor Lorry, que lhes exibia o envelope
com uma expressão interrogativa no semblante. Monseigneur contemplou a
carta, na pessoa dos maquinadores e indignados refugiados; e Este, Aquele e
Aquele Outro, todos tinham um insulto na ponta da língua, em inglês ou em
francês, a respeito do desaparecido marquês.
— Ele é sobrinho, suponho, em todo o caso, um degenerado sucessor, do
ilustre marquês assassinado — declarou um deles. — Felizmente, jamais o
conheci.
— Um covarde que abandonou seu posto há alguns anos — acusou-o
monseigneur, que acabara de chegar, esbaforido, de Paris.
— Contaminado com as novas doutrinas — acrescentou um terceiro,
examinando o sobrescrito com o monóculo grudado no olho —, desafiou o antigo
marquês, abandonou as propriedades que herdou e deixou-as para a horda dedesordeiros. Eles o recompensarão, espero, do modo como merece.
— O quê? — espantou-se o palreiro Stryver. — Ele fez isso? Então é assim o
tal sujeito? Vejamos qual é o seu infame nome.
Darnay, incapaz de conter-se por mais tempo, tocou o ombro do senhor
Stryver e anunciou:
— Eu conheço o tal sujeito.
— Por Júpiter! Conhece? — replicou Stryver. — Lamento muito.
— Por quê?
— Como “por quê”, senhor Darnay? Não ouviu o que disseram? Nos dias de
hoje, é melhor nem fazer esse tipo de pergunta.
— Mas eu insisto. Por quê?
— Nesse caso, terei de repetir-lhe que lamento muito. Lamento ouvi-lo
formular perguntas tão disparatadas. Estamos falando de um sujeito que,
infectado pelos mais pestilentos e blasfemos preceitos da crueldade, abandonou
sua propriedade para a mais torpe gentalha do mundo, que pro-move assassinato
por atacado, e ainda me pergunta por que lamento o fato de um homem
responsável pela instrução dos nossos jovens conhecer esse velhaco? Bem, eu lhe
responderei. Lamento porque acredito que o patife é capaz de contaminar o
ambiente.
Cônscio da necessidade de manter segredo, Darnay, com grande
dificuldade, controlou-se e ripostou:
— Talvez o senhor não tenha compreendido o cavalheiro.
— Mas compreendo os meios de colocá-lo num beco sem saída, senhor
Darnay — retrucou Stryver —, e o farei. Se o tal sujeito é um cavalheiro, tem
razão, eu não o compreendo. Pode transmitir-lhe isso, com os meus
cumprimentos. Também pode transmitir-lhe, de minha parte, que eu imagino se
ele, depois de abandonar seus bens materiais e sua posição por essa corja
sanguinária, não se tornou um de seus líderes. Mas, não, cavalheiros — discursou
Stryver, olhando em torno e estalando os dedos. — Conheço alguma coisa da
natureza humana, e lhes garanto que não existe ninguém que se entregue ao
arbítrio de tão preciosos protégés. Não, cavalheiros. Ele sempre se esquivará da
briga, sendo o primeiro a pôr o pé na estrada para fugir. Com essas palavras, e
um último estalar de dedos, o senhor Stryver abriu caminho com os ombros para
a rua Fleet, sob a aprovação geral de seus ouvintes. O senhor Lorry e Charles
Darnay ficaram a sós, após a debandada geral que ocorreu no banco.
— Poderia encarregar-se da carta? — o senhor Lorry solicitou. — Sabe
onde entregá-la?
— Sei.
— Se puder explicar que recebemos o envelope há vários dias, mas não
conseguimos localizar o destinatário, eu lhe agradeço.
— Não há problema. Partirá daqui ou de sua casa?
— Daqui, às oito horas.
— Eu voltarei para despedir-me do senhor.
Profundamente aborrecido consigo mesmo, com Stryver e com a maioria
dos homens, Darnay esperou até chegar a Temple para abrir e ler a carta. Seu
conteúdo era o seguinte:
“Prisão de l’Abbaye, Paris.[183]
21 de junho de 1792.
SENHOR OUTRORA MARQUÊS.
Depois de ter sofrido por um longo tempo o perigo de
morrer nas mãos dos habitantes da aldeia, fui preso, com
grande violência e indignidade, e obrigado a fazer a pé a longa
jornada até Paris. Na estrada, infligiram-me um grande
sofrimento. E isso não é tudo. Demoliram minha casa,
destruíram-na até os alicerces.
O crime pelo qual me prenderam, monsieur outrora
marquês, e pelo qual serei levado perante o tribunal e perderei
minha vida (sem o seu generoso auxílio), é, segundo me
disseram, o de traição contra a majestade do povo, por ter agido
contra seus interesses e em benefício de um emigrado[184]. Em
vão argumentei que agi em favor do povo, e não o contrário, ao
seguir as ordens que recebi do senhor. Em vão argumentei
que, antes de confiscarem a propriedade do emigrado, eu tinha
remitido os impostos que me haviam cessado de pagar; que eu
deixara de coletar as rendas e que jamais tomara qualquer
providência legal contra os devedores. A única resposta que
obtive foi que agi em benefício do emigrado, e ƒonde está o
emigrado?”
Ah! Digníssimo monsieur outrora marquês, onde está
esse emigrado? Até enquanto durmo, eu me pergunto, onde
está esse emigrado? Indago aos céus, será que ele não me virá
libertar? Mas não obtenho resposta. Ah, monsieur outrora
marquês, envio meu desolado lamento para além-mar, na
esperança de que este talvez o alcance através dos ouvidos do
grande banco de Tilson, tão conhecido aqui em Paris!
Pelo amor de Deus, da justiça, da generosidade, da honrade seu nobre nome, eu lhe suplico, monsieur outrora marquês,
que me socorra e me liberte. Meu único erro foi ter sido leal ao
senhor. Oh, monsieur outrora marquês, rogo-lhe que também
seja leal comigo!
Dos horrores desta prisão, donde a cada hora me
aproximo mais e mais da morte, eu me coloco, monsieur outrora
marquês, aos seus dolorosos e infelizes serviços.
Seu aflito
GABELLE.”
A latente inquietação que perseguia Darnay veio à tona com todo o vigor
após a leitura da carta. A situação de perigo em que se encontrava um velho e
bom criado, cujo único crime consistia em se ter mantido fiel ao seu senhor e à
sua família, fazia o sentimento de culpa transbordar em sua mente. Caminhando
pelo Temple, ruminava sobre o que deveria fazer, era tão grande sua humilhação
que quase ocultou o rosto para que os transeuntes não o vissem.
Ele sabia muito bem que, em sua abominação pelo ato que culminou em
outros terríveis atos e granjeou uma péssima reputação para toda a família, em
suas ressentidas suspeitas em relação ao tio, e na repugnância com a qual sua
consciência encarava uma estrutura que desmoronava, mas que, no entanto,
esperava-se que ele preservasse, não atuara de maneira correta. Ele sabia muito
bem que, em seu amor por Lucie, sua renúncia às próprias prerrogativas sociais,
embora a idéia de renunciar não fosse de forma alguma recente em seus
pensamentos, se dera de forma apressada e incompleta. Sabia que devia ter
sistematicamente dirigido e supervisionado o processo, e que até desejara fazêlo,
porém jamais o fizera.
A felicidade que experimentava em seu adotivo lar inglês, a necessidade de
trabalhar para garantir o próprio sustento, as mudanças aceleradas e os
problemas que se sucediam com tanta rapidez que os eventos de um semana
anulavam os planos formulados na semana anterior, eram circunstâncias sob as
quais, ele sabia bem, acabara cedendo, embora não sem inquietação, mas ainda
sem uma contínua e acumulativa resistência à inércia. Era verdade que
aguardara a hora certa para agir, mas, na França, o povo se ergueu e lutou e a
hora passou sem que a aproveitasse. A nobreza fugia em bandos da França por
todas as estradas e atalhos, enquanto suas propriedades eram confiscadas e
destruídas e seus nomes, enlameados. De tudo isso ele sabia, como decerto
saberiam as novas autoridades francesas que tinham o poder de acusá-lo.
Contudo, não oprimira ninguém e a ninguém aprisionara. Em momento
algum exigira que lhe pagassem seus direitos, dos quais abriu mão por livre e
espontânea vontade para ingressar num mundo onde não contava com quaisquer
privilégios e onde conquistou um espaço próprio e o pão de cada dia à custa de
seu trabalho e esforço. Monsieur Gabelle havia mantido a empobrecidapropriedade conforme as instruções que lhe deixara por escrito, segundo as quais
devia poupar o povo e dar-lhe o pouco que houvesse para dar, coisas como lenha
para o inverno que os credores lhes deixassem, e o que restasse da colheita, no
verão, e, sem dúvida, cuidara para que tudo fosse formalmente registrado, para a
sua própria segurança, de forma que agora pudesse servir-lhe de defesa.
A carta favorecia a desesperada resolução para a qual Charles Darnay já se
vinha inclinando. A de ir a Paris.
Sim. Como aconteceu com o marinheiro da lenda, os ventos e as correntezas
impeliam-no na direção da pedraímã, que o atraía inexoravelmente para o
abismo. E para o abismo todas as reflexões que lhe assaltavam a mente
arrastavam-no, com uma velocidade e uma força cada vez mais terríveis. A
inquietação latente se devia ao fato de que objetivos perversos se engendravam
em sua própria e infeliz pátria através dos meios mais cruéis, enquanto ele, que
não podia deixar de considerar-se melhor do que seus pares, não estava lá para
tentar deter a carnificina e defender os clamores por misericórdia e humanidade.
Com a inquietação a sufocá-lo e a acusá-lo, ele se viu conduzido àquela situação
comparável ao do bravo marinheiro cujo senso de dever era tão intenso. Sob o
efeito dessa comparação (que lhe era prejudicial), dera ouvidos ao sarcasmo de
monseigneur, que o aferroara dolorosamente, e ao de Stryver, que, mais do que o
dos outros, fora grosseiro e irritante, por motivos muito antigos. Para culminar,
havia a carta de Gabelle, prisioneiro inocente cuja vida estava em risco, que
apelava para sua justiça, honra e bom nome.
Sua decisão estava tomada. Ele devia ir a Paris.
Sim. A pedra-ímã atraía-o e ele tinha de navegar até que o abismo o
tragasse. Darnay não enxergava a pedra e vislumbrava quase nenhum risco. O
intento que o levara a proceder como procedera, mesmo não havendo
completado a tarefa, afigurava-se-lhe como um fato que mereceria o
reconhecimento e a gratidão de seus compatriotas quando chegasse à França.
Então, a gloriosa visão de praticar o bem, que freqüentemente constitui a
encorajadora miragem de tantas boas almas, formou-se diante dele, que se
imaginou, em sua ilusão, dotado de alguma influência para guiar os caminhos da
Revolução, a qual se perdia nos desvios da fúria, tornando-se a cada instante mais
aterradoramente selvagem.
Enquanto caminhava de um lado para o outro com a resolução já tomada,
refletia que nem Lucie nem o pai deveriam saber de nada até ele estar longe.
Era preciso poupar Lucie da dor da separação. Quanto ao doutor Manette,
sempre relutante em dirigir seus pensamentos para o que ocorria em sua pátria,
deveria tomar conhecimento de sua partida como um fato consumado e não
como um projeto que se pudesse discutir. Além disso, não tinha idéia do quanto
poderia desabafar com o sogro acerca do desconforto de sua situação sem
reavivar-lhe antigas e dolorosas associações, as quais já o havia influenciado em
outros tempos.
Ele caminhou de um lado para o outro, com a mente fervilhando, até
aproximar-se a hora de regressar ao Tellson e despedir-se do senhor Lorry.
Embora pretendesse procurar o velho amigo assim que chegasse a Paris,
preferia não lhe revelar suas intenções por enquanto.Uma carruagem atrelada a cavalos de posta estava pronta na porta do
banco, e Jerry aguardava, de botas e vestido para viagem.
— Entreguei a carta — anunciou Darnay ao senhor Lorry. — O destinatário
deu-me a resposta, mas não consenti que a mandasse por escrito. Será que o
senhor a transmitiria verbalmente?
— Com muito gosto — aquiesceu o senhor Lorry —, se não for perigoso.
— De modo algum. Embora se destine a um prisioneiro do cárcere de
Abbaye.
— Como se chama? — perguntou o senhor Lorry, abrindo o caderninho de
notas.
— Gabelle.
— Gabelle. E qual é a mensagem para o infeliz Gabelle na prisão?
— Diga-lhe simplesmente que ele recebeu a carta e irá vê-lo.
— A visita tem hora marcada?
— Não. Ele partirá amanhã à noite.
— Devo mencionar alguma outra pessoa?
— Não.
Darnay auxiliou o amigo a envolver-se em casacos e mantas e saíram da
atmosfera aquecida do velho banco para o ar nevoento da rua Fleet.
— Abraços a Lucie e à pequena — disse o senhor Lorry ao partir. — E
cuide bem das duas durante a minha ausência. Charles Darnay sacudiu a cabeça
e sorriu, enquanto a carruagem se afastava.
Naquele noite, era 14 de agosto[185], Darnay recolheu-se tarde,
demorando-se na sala para escrever duas fervorosas cartas. Uma era para
Lucie, explicando o imperioso dever que o obrigava a ir a Paris e expondo, por
fim, as razões pelas quais tinha certeza de que não se envolveria em nenhum
perigo pessoal. A outra era para o doutor, confiando Lucie e a filha a seus
cuidados e repetindo as mesmas palavras convictas para tranqüilizá-lo. A ambos,
avisou que lhes escreveria imediatamente após a chegada, como prova de sua
segurança.
Foi um dia terrível, aquele em que ficou entre as pessoas que amava, com a
primeira restrição a separá-lo delas desde o início de sua vida em comum. Era
penoso preservar a inocente farsa, da qual eles nem de longe suspeitavam.
Contudo, um olhar afetuoso à esposa, tão feliz e ocupada com seus afazeres
domésticos, fortaleceu-lhe a decisão de não lhe revelar seu plano; estivera
tentado a contar-lhe tudo, tanto lhe era estranha a situação de agir sem seu apoio,
e o dia transcorreu rapidamente. No começo da noite, ele a abraçou e tomou no
colo a homônima não menos querida, fingindo que retornaria logo (inventara um
compromisso como desculpa para ausentar-se, tendo deixado arrumada uma
valise de roupas), e mergulhou na névoa pesada das ruas, sentindo o coração
ainda mais pesado.
A força invisível atraía-o aceleradamente, agora, e todas as ondas e ventos o
impeliam para o abismo. Ele deixara as duas cartas com um mensageiro de
confiança, encarregando-o de entregá-las meia hora depois da meia-noite e nem
um minuto antes. Alugou um cavalo até Dover. E principiou a jornada. “Pelo
amor de Deus, da justiça, da generosidade e da honra de seu nobre nome!” foi asúplica do pobre prisioneiro, com a qual fortalecia o coração desfalecido ao
deixar para trás tudo o que lhe era caro no mundo, e deixava-se arrastar para a
pedra-ímã.TERCEIRA PARTE — OS CAMINHOS DA TORMENTA
TERCEIRA PARTE
OS CAMINHOS DA TORMENTA I. Em Segredo
CAPÍTULO I
EM SEGREDO[186]
Avançaria lentamente em sua jornada o viajante que fosse da Inglaterra a Paris
no outono[187] do ano de 1792. Não lhe faltariam obstáculos para retardá-lo,
como péssimas estradas, péssimos coches e péssimos cavalos, mesmo que o
desafortunado e deposto rei da França ainda reinasse em toda a sua glória;
contudo, os novos tempos mostravam-se pródigos em outros empecilhos além
desses. Em cada portão das cidades e coletorias das aldeias havia bandos de
patriotascidadãos[188], com seus mosquetes nacionais no mais explosivo estado
de prontidão, que retinham todos os que chegavam e saíam, interrogavam-nos,
inspecionavam-lhes os documentos, procuravam-lhes os nomes em listas,
mandavamnos de volta ou em frente ou prendiam-nos, de acordo com o que seus
caprichosos julgamentos ou fantasias considerassem melhor para a nascente
República Una e Indivisível da Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte.
[189]
Poucas léguas francesas de sua jornada haviam sido percorridas quando
Charles Darnay começou a perceber que, ao longo daquelas estradas campestres
não havia, para ele, esperança de retorno enquanto não fosse declarado um bom
cidadão em Paris. Não importando o que acontecesse daí em diante, tinha de
prosseguir a viagem até o fim. Embora nenhum pequeno vilarejo, nenhuma
barreira comum, nada fechasse o caminho atrás de si, sabia que era como se
portões de ferro se interpusessem entre ele e a Inglaterra. A “vigilância
universal” circundava-o de tal modo que, se o houvessem aprisionado numa
rede, ou se o conduzissem numa gaiola, não teria sentido sua liberdade mais
completamente cerceada.
Essa vigilância universal não apenas o parava na estrada vinte vezes em
cada trecho, mas retardava seu avanço vinte vezes ao dia, seguindo-o e
enviando-o de volta, precedendo-o para interceptá-lo mais adiante, marchando a
seu lado e mantendo-o sob custódia. Ele já havia perdido vários dias de jornada
só na França, quando, exausto, resolveu pernoitar numa aldeia à beira da estrada,
ainda bem distante de Paris.
Nada senão a carta que o aflito Gabelle lhe enviara da prisão de Abbaye o
teria levado tão longe. Suas dificuldades na barreira na entrada do vilarejo foram
tantas que ele sentiu que sua jornada atingira um ponto crítico. E, por isso, não
ficou tão surpreso ao ser despertado, na estalagem, no meio da noite.
Foi acordado por um tímido funcionário local acompanhado por três
patriotas armados, todos de barrete vermelho e cachimbo na boca, que sesentaram na beira da cama.
— Emigrado — declarou o funcionário —, vou enviá-lo a Paris sob escolta.
— Cidadão, não desejo outra coisa além de ir a Paris, embora preferisse
dispensar a escolta.
— Silêncio! — vociferou um barrete vermelho, revirando a coberta com a
ponta de seu mosquete. — Paz, aristocrata!
— É como diz o bom patriota — observou o funcionário tímido. — O senhor
é um aristocrata, portanto deve ter uma escolta, e pagar por ela.
— Não disponho de escolha — replicou Charles Darnay.
— Escolha! Escutem só! — exclamou o mesmo vociferante barrete
vermelho. — Como se não lhe prestássemos um favor protegendo-o para que
não o dependurem no lugar de um lampião!
— É sempre como diz o bom patriota — observou o funcionário. —
Levante-se e vista-se, emigrado.
Darnay obedeceu e foi conduzido de volta à barreira, onde outros patriotas
de barrete vermelho fumavam, bebiam e dormiam junto ao fogo aceso durante
a noite. Dali, depois de pagar uma grande soma pela escolta, ele e seus
acompanhantes embrenharam-se pelas úmidas estradas às três horas da
madrugada.
A escolta era composta por dois patriotas montados, ambos de barrete
vermelho guarnecido com a fita tricolor[190], armados com os mosquetes
nacionais e sabres, que cavalgavam cada um de um lado de sua montaria. O
escoltado ia em seu próprio cavalo, mas haviam amarrado uma corda à rédea,
cuja extremidade um dos patriotas cingira à cintura. Nessas condições, iniciaram
a jornada debaixo de uma chuva forte que lhes açoitava os rostos: retinindo num
trote pesado sobre o pavimento irregular da aldeia e sobre as estradas cheias de
profundas poças de lama. E nessas condições seguiram sem mudanças, exceto
de cavalos e de velocidade, por todas as enlameadas léguas que jaziam entre eles
e a capital.
Viajavam à noite, parando uma ou duas horas depois do amanhecer e
descansando até o crepúsculo. Os homens estavam tão miseravelmente vestidos
que tinham de colmar os ombros maltrapilhos e enrolar palha nas pernas
despidas para protegê-las da umidade. Afora o constrangimento de ser
conduzido, e o perigo que representava um dos patriotas, o qual,
permanentemente embriagado, portava seu mosquete de modo negligente,
Charles Darnay não permitia que a restrição que ora lhe era imposta despertasse
sérios temores em seu coração. Ponderava consigo mesmo ser impossível que tal
restrição tivesse qualquer relação com o mérito de um caso em particular ainda
não submetido à justiça, nem com declarações, confirmáveis pelo prisioneiro de
Abbaye, que ainda não haviam sido produzidas.
Contudo, quando chegaram à aldeia de Beauvais, o que aconteceu ao
entardecer, quando as ruas se mostravam apinhadas, não pôde mais esconder de
si próprio que o aspecto da situação era alarmante. Uma sinistra multidão
formouse para vê-lo desmontar no pátio da estalagem e muitas vozes berraram:
— Abaixo o emigrado!
Ele interrompeu o movimento de desmontar, preferindo ficar a salvo sobrea sela, e se defendeu:
— Emigrado, meus amigos?! Não me vêem aqui na França, para onde vim
de livre e espontânea vontade?
— Você é um maldito emigrado — gritou um ferreiro, avançando
furiosamente por entre a turba com um martelo na mão —, e um amaldiçoado
aristocrata!
O estalajadeiro se interpôs entre esse homem e as rédeas do cavalo de
Darnay (das quais o ferreiro evidentemente pretendia apoderar-se) e disse em
tom conciliador:
— Deixe-o em paz! Ele será julgado em Paris.
— Julgado! — repetiu o ferreiro, brandindo o martelo.
— E condenado como traidor! Diante disso, a turba rugiu em aprovação.
Detendo o estalajadeiro, que virava o cavalo na direção da cocheira para levá-lo
dali (o patriota bêbado permanecia sobre a sela, observando, com a corda
amarrada em sua cintura), Darnay retorquiu, assim que se pôde fazer ouvir:
— Amigos, estão equivocados ou alguém os enganou. Não sou um traidor.
— Mentira! — bradou o ferreiro. — É um traidor desde o decreto. Sua vida
será confiscada pelo povo. A sua maldita vida não lhe pertence[191].
No instante em que Darnay percebeu o lampejo nos semblantes de todos na
multidão, revelando o ódio que os impeliria, no momento seguinte, a lançar-se
sobre ele, o estalajadeiro guiou o cavalo ladeado pela escolta até o pátio, e
fechou e aferrolhou os portões. O ferreiro golpeou a porta com o martelo e a
turba grunhiu. As hostilidades, porém, cessaram aí.
— Que decreto é esse que o ferreiro mencionou? — Darnay indagou ao
estalajadeiro, depois de agradecer-lhe.
— Na verdade, trata-se de um decreto sobre a venda de propriedades dos
emigrados.
— Quando foi estabelecido?
— No dia catorze.
— No dia em que saí da Inglaterra!
— Dizem que esse é só um entre vários decretos, e que haverá muitos outros
ainda, se já não os há, banindo todos os emigrados e condenando-os à morte,
caso retornem. Foi isso o que ele quis dizer quando afirmou que a sua vida não
lhe pertence.
— Mas esses decretos ainda não estão em vigor, estão?
— Que sei eu! — replicou o estalajadeiro, sacudindo os ombros. — Talvez
já estejam, ou senão estarão amanhã. Dá na mesma.
Eles se deitaram sobre um monte de palha, num sótão, até a metade da
noite; e então, quando toda a aldeia dormia, retomaram a marcha. Entre as
inúmeras mudanças observadas nas coisas que lhe eram familiares, e que faziam
a cavalgada parecer-lhe irreal, estava a aparente escassez de sono que se abatera
sobre os vilarejos. Depois de um longo e solitário percurso através de lúgubres
estradas, chegavam a pequenas aglomerações de cabanas miseráveis, não
escondidas na escuridão mas brilhantes de luz, e encontravam seus habitantes,
parecendo espectros àquela hora morta da noite, ou de mãos dadas em torno de
uma ressequida árvore da Liberdade, ou cantando juntos uma canção daLiberdade[192]. Felizmente, todavia, houve sono em Beauvais naquela noite para
permitir-lhes a partida, e eles voltaram ao isolamento e à solidão: retinindo pelo
caminho, com um tempo precocemente frio e úmido[193], por entre campos
empobrecidos que, naquele ano, não haviam concedido nenhum fruto da terra,
embrenhando-se por uma paisagem cuja monotonia só era rompida pelos
escombros de casas incendiadas e pelas patrulhas de patriotas encarregadas de
vigiar as estradas, que os assaltavam em súbitas emboscadas, bruscamente
ordenando-lhes que parassem.
O amanhecer encontrou-os, por fim, diante das muralhas de Paris. A
barreira estava fechada e fortemente guardada quando chegaram.
— Onde estão os documentos desse prisioneiro? — inquiriu o homem de
aspecto resoluto que se achava no comando e que fora chamado pela sentinela.
Naturalmente chocado pela palavra desagradável, Charles Darnay solicitou-
lhe atentar para o fato de que ele era um viajante livre, um cidadão francês, sob
custódia de uma escolta por imposição das condições do país, escolta essa paga
por seu próprio bolso.
— Onde — repetiu a mesma personagem, sem lhe prestar a menor atenção
— estão os documentos desse prisioneiro?
O patriota bêbado, que os trazia debaixo do barrete, entregou-os. A mesma
personagem no comando relanceou os olhos pela carta de Gabelle,
demonstrando uma certa mistura de confusão e surpresa, e fitou Darnay com
atenção. Contudo, não pronunciou sequer uma palavra e, virando as costas à
escolta e ao escoltado, entrou na casa da guarda. Enquanto esperavam, eles
levaram os cavalos para junto do portão. Olhando à sua volta, Charles Darnay
observou que a entrada era vigiada por uma guarda mista formada por soldados
e patriotas, os últimos em número bastante superior ao dos primeiros; e que,
conquanto o ingresso na cidade fosse fácil para as carroças de camponeses que
transportavam gêneros alimentícios, a saída apresentava uma série de
dificuldades mesmo para as pessoas mais humildes. Uma grande aglomeração
de homens e mulheres, para não mencionar os animais e veículos de toda a sorte,
aguardavam pela vez de transpor a barreira. Todavia, a identificação prévia era
tão rigorosa que eles só conseguiam passar muito lentamente. Algumas dessas
pessoas, sabendo o quanto a inspeção iria demorar, deitavam-se no chão para
dormir ou fumar, enquanto outras tagarelavam ou vagueavam por ali. O barrete
vermelho com a fita tricolor tornara-se de uso generalizado, e era visto tanto nos
homens quanto nas mulheres.
Quando já fazia cerca de meia hora que Darnay observava a cena em
torno, o homem no comando saiu da casa da guarda e ordenou às sentinelas que
abrissem a barreira. Então, entregou aos dois da escolta, o sóbrio e o bêbado, um
recibo relativo ao escoltado, e mandou-o descer do cavalo. Ele desceu, e os dois
patriotas, conduzindo sua exausta montaria, fizeram meia volta e regressaram
sem entrar na cidade.
Ele acompanhou o homem no comando de volta à casa da guarda, que
cheirava a vinho barato e a tabaco, onde alguns soldados e patriotas, despertos e
adormecidos, embriagados e sóbrios, e em vários estágios intermediários entre
uns e outros, estavam de pé ou deitados pelos cantos. A luz, proveniente, emparte, das lívidas lâmpadas a óleo acesas à noite, e, em parte, do dia nublado,
mostrava a mesma condição de instabilidade. Um punhado de livros de registro
jazia sobre uma escrivaninha, sobre os quais curvava-se um funcionário de
aspecto soturno e rude.
— Cidadão Defarge — disse ele ao homem que trouxera Darnay,
apanhando uma folha de papel para escrever —, é esse o emigrado Evrémonde?
— É esse mesmo.
— Sua idade, Evrémonde?
— Trinta e sete anos.
— Casado, Evrémonde?
— Sim.
— Onde se casou?
— Na Inglaterra.
— Sem dúvida. Onde está sua mulher, Evrémonde?
— Na Inglaterra.
— Sem dúvida. Foi designado, Evrémonde, para a prisão de La Force[194].
— Deus do céu! — exclamou Darnay. — Sob qual alegação e com base em
que lei? O funcionário ergueu os olhos do papel e fitou-o por um momento.
— Temos novas leis, Evrémonde, e novos crimes, desde que você deixou a
França — afirmou com um sorriso cruel, continuando a escrever.
— Rogo-lhe que observe que voltei voluntariamente, em resposta a esse
apelo de um compatriota que o senhor tem aí nas mãos. Não lhe peço mais que
uma oportunidade de ajudá-lo sem demora. Não estou no meu direito?
— Emigrados não têm direitos, Evrémonde — foi a imperturbável réplica.
O funcionário prosseguiu a escrita até terminá-la, leu o que acabara de escrever,
espalhou areia para tirar o excesso de tinta, e entregou o papel a Defarge,
anunciando: — Em segredo.
Defarge acenou com o papel para que o prisioneiro o seguisse. O prisioneiro
obedeceu e uma guarda de dois patriotas armados escoltou-os.
— Foi você — indagou Defarge, em voz baixa, quando desceram os degraus
da casa da guarda e tomaram a direção de Paris — que se casou com a filha do
doutor Manette, outrora prisioneiro da Bastilha que não mais existe?[195]
— Sim — confirmou Darnay, fitando-o com surpresa.
— Meu nome é Defarge e sou proprietário de uma taberna no bairro de
Santo Antônio. Talvez já tenha ouvido falar de mim.
— Sim. Minha esposa foi buscar o pai em sua casa.
A palavra “esposa” pareceu despertar uma sombria recordação em
Defarge, que se apressou a inquirir com repentina impaciência:
— Em nome daquela afiada fêmea recém-nascida chamada La Guillotine,
por que diabos você voltou para a França?
— O senhor ouviu-me explicar, há pouco. Não acredita que seja verdade?
— Uma péssima verdade para você — retorquiu Defarge, franzindo as
sobrancelhas e olhando fixamente para a frente.
— É, eu me sinto perdido, aqui. É tudo tão sem precedentes, tudo está tão
mudado e tão injusto, que me sinto absolutamente perdido. Pode prestar-me um
pequeno favor?— Nenhum — Defarge recusou, sempre olhando em frente.
— Poderia, então, responder-me uma pergunta?
— Talvez, dependendo da pergunta. Fale.
— Nessa prisão para onde sou tão injustamente conduzido, terei liberdade
para comunicar-me com o mundo exterior?
— Você verá.
— Vocês não pretendem enterrar-me lá, sem julgamento, sem meios de me
defender, espero?
— Você verá. Mas e daí, se assim for? Outras pessoas foram encarceradas
de modo semelhante em prisões piores, no passado.
— Mas nunca por mim, cidadão Defarge.
Defarge virou a cabeça para lançar-lhe um olhar lúgubre, e continuou a
caminhar. Quanto mais profundo o silêncio em que mergulhava, menor
esperança havia, ou assim pensava Darnay, de abrandá-lo por pouco que fosse.
Por isso, Darnay não esperou mais para rompê-lo:
— É da máxima importância para mim (o senhor sabe melhor do que eu,
cidadão, o quanto é importante), comunicar-me com o senhor Lorry, do Banco
Tellson, um cavalheiro inglês que se encontra em Paris no momento, apenas para
informá-lo de que fui levado para a prisão de La Force. O senhor teria condições
de avisá-lo?
— Eu não farei nada por você — Defarge retrucou obstinadamente. — Meu
dever é para com meu país e meu povo. Sou um servo fiel de um e de outro
contra você. Portanto, não conte comigo.
Charles Darnay apercebeu-se da inutilidade de pedirlhe outros favores.
Além disso, seu orgulho o impediria. Enquanto andavam, calados, ele observava
o quanto as pessoas se haviam habituado com a presença de prisioneiros. Mesmo
as crianças mal lhe prestavam atenção. Uns poucos transeuntes viraram a
cabeça em sua direção, e alguns lhe apontaram o dedo, chamando-o de
aristocrata. Um homem bem vestido a caminho da prisão era um fato tão
corriqueiro quanto um homem comum a caminho do trabalho.
Numa rua estreita, escura e suja, um exaltado orador, que subira num
tamborete, discursava para uma exaltada platéia acerca dos crimes perpetrados
contra o povo pelo rei e pela família real. As poucas palavras que captou de seus
lábios levaram ao conhecimento de Charles Darnay que o rei estava na prisão e
que os embaixadores estrangeiros haviam todos abandonado Paris[196]. Na
estrada (exceto em Beauvais), ele não ouvira coisa alguma a respeito. A escolta e
a vigilância universal o haviam isolado por completo.
Que sua vinda o submetia a riscos muito maiores do que imaginara ao
deixar a Inglaterra, ele agora sabia com certeza. Que os perigos o haviam
cercado e apertariam o cerco ainda mais, também sabia com certeza, agora.
Admitia que não teria empreendido aquela viagem se houvesse previsto o que lhe
aconteceria. Contudo, suas desconfianças ainda não eram tão tenebrosas como
deveriam, considerando-as sob a luz dos acontecimentos posteriores. Por incerto
que lhe parecesse o futuro, este lhe era obviamente desconhecido e, em sua
obscuridade, acenava com uma ingênua esperança. O terrível massacre, que
durou dias e noites[197], e que, em poucos giros dos ponteiros dos relógios,marcaria com sangue a abençoada estação da colheita, estava tão distante de sua
imaginação como qualquer outro evento que só fosse ter lugar séculos mais
tarde. A “fêmea afiada recentemente nascida, chamada La Guillotine”, só era
conhecida dele, e da maioria das pessoas, por nome. Naquela época, suas
pavorosas façanhas, que em breve seriam cometidas, provavelmente ainda nem
haviam sido concebidas na mente de seus criadores. Como poderia uma alma
gentil cogitar de tamanho horror?
Cativeiro, tratamento injusto, maus tratos, uma cruel separação de sua
esposa e de sua filha, tudo isso ele julgava provável ou certo. Para além disso,
entretanto, não se atrevia a prever nada. Com essa idéia em mente, que já era
assustadora o bastante para se pensar num momento como aquele, Darnay
chegou a La Force.
Um homem com o rosto inchado abriu a grossa portinhola. Defarge
apresentou-o como “O emigrado Evrémonde”.
— Que diabo! Quantos mais?! — reclamou o homem do rosto inchado.
Defarge apanhou seu recibo sem fazer caso da reclamação e retirou-se
com seus dois companheiros patriotas.
— E eu repito: que diabo! — tornou a imprecar o carcereiro, dessa vez para
sua esposa. — Quantos mais?
A esposa do carcereiro, não sendo portadora de nenhuma resposta para a
questão, limitou-se a replicar:
— Há que ter paciência, meu caro!
Três outros guardas de cárcere, que haviam acorrido em resposta à sineta
que ela tocara, ecoaram aquele sentimento e um deles acrescentou:
— Por amor à Liberdade! — o que soou um tanto inadequado,
considerando-se o local.
A prisão de La Force era tétrica, escura e imunda, exalando um medonho
cheiro de podridão. É extraordinário como os odores pútridos se alastram
rapidamente em todos esses lugares fechados e malcuidados!
— Em segredo, também — resmungou o carcereiro, lendo o papel. —
Como se eu já não estivesse com isso aqui transbordando!
Mal-humorado, ele pregou o documento num espeto para papéis. Charles
Darnay teve de aguardar meia hora pelo prazer de ser conduzido à cela; por
vezes, andava de um lado para o outro na sala, depois sentava-se para descansar
sobre um banco de pedra; em qualquer das situações, era observado para que
suas feições ficassem impressas na memória do chefe e de seus subordinados.
— Venha! — ordenou o chefe, finalmente, apanhando as chaves. — Venha
comigo, emigrado.
Sob a melancólica luz da prisão, seu novo hóspede seguiu-o pelo corredor e
pela escadaria, as portas fechando-se com um clangor sinistro atrás deles, até
alcançarem uma câmara ampla, de teto baixo e abobadado, apinhada de
prisioneiros de ambos os sexos. As mulheres estavam sentadas a uma comprida
mesa, lendo e escrevendo, tricotando, costurando e bordando; os homens, em sua
maioria, ficavam de pé atrás das cadeiras, ou perambulavam de um lado para o
outro na cela[198].
Instintivamente associando prisioneiros a crimes infames e opróbrios, orecém-chegado recuou. Todavia, culminando a irrealidade de sua irreal e longa
jornada, todos se ergueram para recebê-lo com os mais requintados modos
conhecidos na época, prodigalizando-lhe reverências e mesuras.
Tão estranhamente obnubilados eram esses refinamentos pela atmosfera
sombria do cárcere, tão espectrais eles se tornavam na inadequada imundície e
miséria através das quais eram vistos, que Charles Darnay teve a impressão de
ter sido colocado em companhia dos mortos. Fantasmas, todos eles! O fantasma
da beleza, o fantasma da grandeza, o fantasma da elegância, o do orgulho, o da
frivolidade, o da graça, o da juventude e o da velhice, todos esperando sua
libertação daquela desolada margem, todos volvendo para ele os olhos
ensombreados pela morte que sofreram no instante em que entraram naquela
prisão.
O choque paralisou-o. O carcereiro a seu lado, e os outros carcereiros que
perambulavam por ali, apresentavam um aspecto que se harmonizaria
perfeitamente com o exercício de suas funções, não fosse o contraste com as
mães desesperadas e as viçosas filhas que lá estavam, como fantasmas da beleza
jovem e coquete e do encanto maduro da maternidade, um contraste tão
extravagante que levava a extremos a inversão de toda a experiência e
probabilidade representada por aquele espetáculo de sombras. Por certo,
fantasmas, todos eles! Por certo, durante a longa e irreal jornada, contraíra
algum tipo de enfermidade que agora lhe provocava tais alucinações!
— Em nome de todos os companheiros de infortúnio — declarou um
cavalheiro de aparência cortês, avançando em sua direção —, tenho a honra de
lhe dar as boas-vindas a La Force, e de expressar as nossas condolências pela
calamidade que o trouxe para cá. Que tudo possa acabar bem! Quem é o senhor?
Em outro lugar, e em outras circunstâncias, seria uma impertinência perguntar,
mas não aqui. Charles Darnay respondeu do modo mais apropriado possível.
— Espero — replicou o cavalheiro, seguindo com os olhos o carcereiro que
se movia pela sala — que não esteja aqui “em segredo”.
— Não sei o que significam essas palavras, mas eu ouvi pronunciá-las.
— Ah, que pena! Lamentamos profundamente! Contudo, tenha coragem.
Vários membros de nossa sociedade ficaram “em segredo”, a princípio, e logo
saíram — então, acrescentou, elevando a voz: — Pesarosamente informo a
todos... “em segredo”.
Houve um murmúrio de comiseração e, quando Charles Darnay atravessou
o salão até a porta rangente onde o aguardava o carcereiro, muitas vozes, das
quais as suaves e compassivas vozes femininas eram as mais conspícuas,
desejaram-lhe boa sorte e coragem. Ele se voltou para agradecer, a porta se
fechou com um rangido... e os fantasmas desapareceram de sua vista para
sempre.
A porta se abria para uma escadaria de pedra que conduzia ao alto. Depois
de subirem quarenta degraus (embora prisioneiro havia apenas meia hora, já
contava os degraus), o carcereiro abriu uma porta baixa e negra, e eles entraram
numa cela solitária. Embora fria e úmida, não era escura.
— É toda sua — declarou o carcereiro.
— Por que fui confinado em isolamento?— Como vou saber?
— Posso comprar pena, tinta e papel?
— Não são essas as minhas ordens. Irão visitá-lo e, então, poderá perguntar-
lhes. No momento, só está autorizado a comprar comida, nada mais.
Na cela, havia uma cadeira, uma mesa e uma enxerga de palha. Enquanto o
homem inspecionava cada uma dessas peças, ocorreu a Charles Darnay que
aquele carcereiro era tão doentiamente deformado pelo inchaço, tanto no rosto
quanto no resto do corpo, que mais parecia um afogado, intumescido pela água
ingerida. Quando ele se foi, Darnay pensou: “Fui enterrado aqui como se
houvesse morrido”. Baixou a cabeça para contemplar a enxerga e virou-se com
uma súbita repulsa diante das larvas que se arrastavam por entre a palha. “E
aqui, nessas criaturas rastejantes, está o primeiro estágio da transformação do
corpo após a morte”.
— Cinco passos por quatro e meio, cinco passos por quatro e meio, cinco
passos por quatro e meio — o prisioneiro murmurou, traçando e retraçando as
medidas do cubículo, enquanto, lá fora, os rugidos da cidade erguiam-se como o
rufar de tambores misturado a uma onda de vozes selvagens.
— Ele fazia sapatos, fazia sapatos, fazia sapatos.
O prisioneiro tornou a medir a cela com seus passos, num ritmo mais
acelerado, a fim de atordoar a mente a cada repetição.
— Os fantasmas desapareceram quando a porta se fechou. Havia um entre
eles, sob a forma de uma dama vestida de negro, reclinada no peitoril de uma
janela, sobre cujos cabelos dourados brilhava uma luz intensa, e ela se parecia
com ... Cavalguemos novamente, pelo amor de Deus, pelas aldeias iluminadas
onde as pessoas não dormem! ... ele fazia sapatos, fazia sapatos, fazia sapatos. ...
Cinco passos por quatro e meio.
Com tais fragmentos girando e se arremessando das profundezas de seu
espírito, o prisioneiro caminhou mais depressa, e mais depressa ainda,
obstinadamente contando e recontando. E o rugido na cidade mudou na medida
em que, além do rufar dos tambores, agora havia também os lamentos das vozes
que ele conhecia, no clamor que se elevava acima deles. II. A Pedra de Afiar
CAPÍTULO II
A PEDRA DE AFIAR
O Banco Tellson, situado no bairro de Saint-Germain, em Paris[199], ocupava
uma ala de um enorme palácio, ficando no fundo de um pátio, separado da rua
por um muro alto e um portão resistente. A casa pertencera a um grande nobre
que ali vivera até fugir, disfarçado com as roupas de seu cozinheiro, e cruzar as
fronteiras. Embora comparável a um animal correndo espavorido dos caçadores,
ele ainda era, em sua metempsicose[200], aquele mesmo monseigneur que antes
necessitava, para saborear seu chocolate quente, dos préstimos de três homens
fortes, além do trabalho do cozinheiro em questão.
Monseigneur se fora, e os três homens fortes absolve-ram a si mesmos do
pecado de terem aceitado seus altos salários, declarando-se mais do que prontos
e dispostos a lhe cortar o pescoço perante o altar da nascente República Una e
Indivisível da Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte. O palácio de sua
excelência fora primeiro seqüestrado e, depois, confiscado. As coisas mudavam
tão depressa, os decretos se sucediam com tão feroz precipitação, que agora, na
terceira noite do outonal mês de setembro[201], os patriotas emissários da lei
estavam de posse do palácio de monseigneur, tendo inclusive colocado nele a
marca tricolor, e bebiam conhaque em suas luxuosas dependências.
Se um estabelecimento comercial tivesse em Londres uma sede do porte da
filial do Tellson em Paris, logo conduziria “A Casa” à desestabilização e acabaria
por ser citada na Gazette[202]. Pois, o que as sóbrias responsabilidade e
respeitabilidade britânicas diriam, ao verem laranjeiras em canteiros no pátio de
um banco, e um Cupido acima do balcão? E, no entanto, tais coisas existiam. O
Tellson caiara o Cupido, mas este ainda era visível no teto, em seus trajes mais
suaves, mirando (como ele faz com tanta freqüência) o dinheiro desde a manhã
até a noite. Na rua Lombard[203], em Londres, a bancarrota teria
inevitavelmente advindo desse jovem pagão, das alcovas de ricas cortinas que
ficavam atrás do imortal garoto, do espelho embutido na parede, e também dos
funcionários não muito velhos, que dançavam em público ao menor convite.
Entretanto, o Tellson francês saíra-se muitíssimo bem com todo esse luxo e,
desde a sua origem, nenhum cliente se amedrontou por esse motivo, tampouco
retirou seu dinheiro de lá.
Quanto dinheiro seria sacado do Tellson daí em diante, e quanto
permaneceria ali, perdido e esquecido? Quanta prataria e jóias se deslustrariam
nos cofres do banco enquanto seus depositantes definhavam em prisões, quando
não pereciam de modo violento? Quantas contas-correntes no Tellson jamaisseriam contabilizadas em seus balanços neste mundo, mas só no outro? Ninguém
poderia dizer, aquela noite, nem mesmo o senhor Jarvis Lorry, embora ele
refletisse a esse respeito a todo o momento. Sentado junto de uma lareira (o
estiolado e infrutífero ano estava prematuramente frio), havia em sua face
honesta e corajosa uma sombra mais profunda do que aquela que a lâmpada
podia projetar, ou que qualquer objeto na sala podia distorcidamente refletir. Era
a sombra do horror.
Ele ocupava alguns aposentos do banco, em sua fidelidade à casa à qual se
integrara como uma espécie resistente de hera. Quis o acaso que esse arranjo o
protegesse contra a ocupação patriótica do prédio principal, embora o leal
homem jamais houvesse cogitado disso. Tudo lhe era indiferente, contanto que
cumprisse seu dever. Do lado oposto do pátio, sob uma colunata, existia uma
ampla cocheira, onde, com efeito, ainda permaneciam algumas carruagens de
sua excelência. Numa das pilastras, sobre um sustentáculo de ferro, viam-se dois
archotes flamejantes e, sob a sua luz, destacava-se ao ar livre uma grande pedra
de amolar toscamente montada, que parecia ter sido trazida às pressas de alguma
tenda de ferreiro ou de qualquer outra oficina. Levantando-se e contemplando
pela janela esses objetos inofensivos, o senhor Lorry estremeceu e voltou para
sua cadeira junto do fogo. Ele havia aberto não apenas o vidro da janela mas
também a veneziana de fora, enregelando o aposento. Assim, tornou a fechá-los,
tiritando de frio.
Das ruas além do muro alto e do portão resistente, chegava o rumorejo
usual da cidade, acrescido, de quando em quando, por um som indescritível,
estranho e fantasmagórico, como se ruídos inesperados, de uma natureza sinistra,
estivessem subindo para o céu.
— Graças a Deus — murmurou o senhor Lorry, torcendo as mãos — que
nenhuma das pessoas que amo se encontra nesta terrível cidade esta noite. Que
Ele tenha piedade de todos os que estão em perigo.
Pouco depois, a sineta do portão principal soou, e ele pensou: “Já
retornaram!” e aguçou o ouvido. Contudo, não percebeu nenhum irrompimento
estrepitoso no pátio, como esperava. Escutou o barulho do portão se fechando e
tudo voltou ao silêncio.
O nervosismo e o pavor que sentia causavam uma vaga inquietação acerca
do banco, o que era natural, dadas as circunstâncias. Mas o banco era bem
guardado, e ele ergueuse com o intuito de reunir-se aos vigias de confiança que
protegiam o estabelecimento quando sua porta abriu-se subitamente e duas
figuras entraram, apressadas, o que o fez sentar-se de novo, estupefato.
Lucie e seu pai! Lucie, com os braços estendidos e o antigo ar de
sinceridade tão concentrado, tão intenso, que parecia impresso em sua fronte
unicamente para conferirlhe força e poder naquele momento de sua vida.
— Mas como? — inquiriu o senhor Lorry, ofegante e confuso. — Lucie
Manette! O que aconteceu? O que os trouxe a Paris? O que houve?
Com os olhos fixos nele, pálida e desesperada, ela lançou-se em seus braços,
implorante.
— Oh, meu querido amigo! Meu marido!
— Seu marido, Lucie?— Charles.
— O que houve com Charles?
— Está aqui.
— Aqui, em Paris?
— Há já vários dias... três ou quatro... não sei quantos... não consigo
raciocinar direito. Um ímpeto de generosidade trouxe-o para a França sem que
soubéssemos. Ele foi detido na barreira e mandado para a prisão. O velho não
pôde reprimir um grito. Quase ao mesmo tempo, a sineta do portão principal
tornou a soar e um ruído alto de pés e de vozes chegou do pátio.
— Que barulho é este? — perguntou o doutor, voltando-se para a janela.
— Não olhe! — bradou o senhor Lorry. — Não olhe para fora! Manette, por
sua vida, não toque na veneziana. O médico virou-se, com a mão pousada no
ferrolho da janela, e replicou, com um sorriso de serena coragem:
— Meu caro amigo, levei uma vida encantadora nesta cidade. Fui
prisioneiro da Bastilha. Não existe um patriota em Paris, em Paris? em toda a
França, que, sabendo que eu fui prisioneiro da Bastilha, tocasse em mim, a não
ser para apertar-me com abraços ou carregar-me em triunfo. Meu antigo
sofrimento me confere um poder que nos serviu para atravessar a barreira, obter
notícias de Charles e para chegar até aqui. Eu sabia que seria assim. Sabia que
poderia salvar Charles de qualquer perigo. Disse-o a Lucie. Que barulho é esse,
afinal? — Fez novamente menção de abrir a janela.
— Não olhe! — clamou o senhor Lorry, absolutamente desesperado. —
Não, Lucie, minha querida, você não! — Enlaçou-lhe os ombros, segurando-a.
— Não se aflija tanto, minha menina. Eu lhe juro solenemente que não tenho
conhecimento de que algo tenha acontecido a Charles, que eu nem suspeitava de
sua presença nesta cidade terrível. Em que prisão ele está?
— La Force!
— La Force! Lucie, minha criança, se alguma vez foi corajosa e prestativa,
e foi sempre as duas coisas, você se controlará agora e fará exatamente o que eu
lhe pedir, pois de você depende muito mais do que imagina. Contudo, não há
nada que você possa fazer esta noite. Está muito tarde e não há condições de se
tomar nenhuma providência. Faço tais observações porque o que devo pedir-lhe,
pelo bem de Charles, é o maior sacrifício de todos. Você deve obedecer e se
acalmar. Terá de concordar que a instale num quarto dos fundos, e deixará seu
pai a sós comigo por um minuto ou dois. E, tão certo como a vida e a morte neste
mundo, o tempo urge. Não convém que o desperdicemos.
— Eu obedecerei às suas instruções. Vejo em seu semblante que não me é
possível fazer mais nada além disso. Sei que foi sincero.
O velho beijou-a e apressou-a na direção do aposento nos fundos, cuja porta
teve a prudência de trancar. Então, voltou para junto do médico e, depois de abrir
o vidro da janela e uma parte da veneziana, pousou a mão no braço do amigo,
ficando ambos a olhar para fora.
Viram uma aglomeração de homens e mulheres. Não eram numerosos o
suficiente para lotar o pátio, pois não passavam de quarenta ou cinqüenta, ao
todo. As pessoas que ocupavam o palácio os haviam deixado entrar para
trabalhar na pedra de amolar. Evidentemente, a pedra fora instalada ali com essepropósito, já que o local era cômodo e isolado.
Mas que trabalhadores medonhos e que medonha tarefa!
A pedra de amolar possuía uma dupla manivela, girada febrilmente por dois
homens, cujos rostos, visíveis quando seus longos cabelos agitavam-se para trás,
eram mais horrendos e cruéis do que as máscaras dos mais selvagens bárbaros
em seus mais assustadores rituais. Sobrancelhas falsas e bigodes falsos[204]
estavam colados em suas hediondas faces cobertas de sangue e de suor,
retorcidas pelos gritos, os olhos esgazeados e vermelhos brilhando pela excitação
bestial e falta de sono. À medida que esses brutos giravam e giravam a manivela,
com os cabelos desgrenhados batendo-lhes nas frontes e nos pescoços, algumas
das mulheres derramavam vinho em suas bocas para que bebessem; e o sangue
que gotejava, mais o vinho que se entornava e mais as faíscas provocadas pelo
atrito na pedra, toda essa maligna atmosfera parecia uma infernal mistura de
sangue coagulado e fogo. A vista não detectava uma única criatura no grupo
desprovida de manchas de sangue. Acotovelandose para se sucederem na pedra
de amolar, havia homens nus até a cintura, exibindo nódoas nos braços e no peito;
homens vestindo toda a sorte de andrajos ensangüentados, homens ostentando
diabolicamente pedaços de renda, laços e fitas de seda impregnados de sangue.
Machadinhas, facas, baionetas, espadas, todas trazidas para serem afiadas,
estavam rubras de sangue. Algumas espadas estavam presas aos pulsos daqueles
que as empunhavam com tiras de linho e retalhos de vestidos: os atilhos variavam
na espécie, mas não na cor. E quando os frenéticos usuários dessas armas as
arrancavam das nuvens de faísca e disparavam para as ruas, a mesma
tonalidade rubra lhes tingia os olhos desvairados, olhos que qualquer observador
não embrutecido teria dado vinte anos de sua vida para petrificar com um tiro
certeiro.
Tudo isso foi vislumbrado num átimo, como a visão de um homem antes de
se afogar, ou a de qualquer ser humano diante da morte. Eles se retiraram da
janela, e o médico procurou por um explicação no rosto do amigo.
— Eles estão — o senhor Lorry cochichou, fitando de modo furtivo a porta
trancada — assassinando os prisioneiros. Se o senhor tem certeza do que disse, se
realmente tem o poder que julga ter, como acredito que tenha, apresente-se a
esses demônios e peça-lhes que o levem a La Force. Talvez seja tarde demais;
contudo, não há um minuto a perder.
O doutor Manette apertou-lhe a mão e saiu apressado, sem sequer colocar o
chapéu. Já alcançara o pátio quando o senhor Lorry reapareceu à janela.
Os seus ondulados cabelos brancos, o venerando rosto e a impetuosa
confiança com que passou por entre as armas, afastando-as sem temor,
conduziram-no num instante até junto da pedra de amolar. Por alguns breves
momentos, fez-se silêncio. Em seguida, o senhor Lorry percebeu uma certa
agitação, um burburinho, e ouviu a voz do doutor. Então, o viu, rodeado por todos,
e uma fila de vinte homens, que, com as mãos nos ombros um do outro,
bradavam:
— Viva o prisioneiro da Bastilha!
— Ajudem o parente do prisioneiro da Bastilha, que está em La Force!
— Abram alas para o prisioneiro da Bastilha!— Salvem o prisioneiro Evrémonde de La Force! E centenas de gritos em
resposta. Com o coração palpitando, o senhor Lorry fechou a veneziana de novo,
cerrou as cortinas e correu a contar a Lucie que seu pai, seguido pelo povo, saíra
em busca de seu marido. Encontrou a pequena Lucie e a senhorita Pross em sua
companhia. Ele não as viu, a princípio, nem lhe ocorria ser surpreendido pela
presença delas. Só muito depois se apercebeu delas, a observá-lo, tão quietas e
silenciosas como a noite.
Lucie havia, àquela altura, mergulhado num torpor, enrodilhada no chão, a
seus pés, segurando-lhe a mão. A senhorita Pross deitara a menina na cama dele,
e sua cabeça, inclinando-se pouco a pouco, descaíra também para o travesseiro,
junto à linda cabecinha. Oh, a longa, longa noite, com os gemidos da pobre
esposa! E oh, a longa, longa noite, em que o pai dela não regressava nem enviava
uma notícia!
Duas vezes mais a sineta do portão principal soou, o pátio foi invadido e a
pedra de amolar girou e cuspiu faíscas.
— O que é isso? — assustou-se Lucie.
— Shhh... os soldados afiam suas espadas aqui — ripostou o senhor Lorry. —
Este prédio agora é de propriedade nacional, e é utilizado como uma espécie de
arsenal, minha querida.
Duas vezes mais, no total. Todavia, a segunda rodada de trabalho revelou-se
curta e irregular. Pouco depois, o dia começou a clarear e ele, cautelosamente,
tornou a espiar pela janela. Um homem, tão ensangüentado que parecia um
soldado gravemente ferido voltando a si num campo de batalha, levantava-se
penosamente, ao lado da pedra de amolar, lançando um vago olhar em torno.
Logo em seguida, esse exaurido assassino enxergou, sob a luz tênue, uma das
carruagens de meu senhor, e, cambaleando para o gracioso veículo, subiu para a
porta e fechou-se em seu interior para descansar em suas delicadas almofadas.
A grande pedra de amolar, a Terra, havia girado mais um pouco quando o
senhor Lorry voltou a espreitar pela janela, e o sol banhava o pátio com uma luz
avermelhada. Contudo, a pedra menor, sozinha sob a cálida brisa matinal,
ostentava uma cor púrpura que o sol não lhe trouxera e que jamais retiraria. III. A Sombra
CAPÍTULO III
A SOMBRA
Uma das primeiras considerações que assomaram ao espírito profissional do
senhor Lorry, quando amanheceu, foi a seguinte: não tinha o direito de
comprometer a casa Tellson, abrigando sob o seu teto a esposa de um prisioneiro
emigrado. Tudo o que ele possuía, a sua segurança, a própria vida, teria
sacrificado por Lucie e sua filha, sem um momento de hesitação. Porém, o que
se encontrava sob a sua custódia não lhe pertencia e, quanto a esse ponto, era o
homem de negócios escrupuloso e rígido.
A princípio, seu pensamento voltou-se para Defarge e cogitou em procurá-lo
na taberna, a fim de aconselhar-se sobre onde encontraria um local seguro
naquela cidade desvairada. Todavia, a mesma cogitação que lhe apontou
Defarge o fez repudiá-lo. Ele vivia no bairro mais violento de Paris, sobre o qual,
sem dúvida, exercia grande influência e onde se dedicava a suas perigosas
atividades.
Já era quase meio-dia, e como o doutor ainda não havia regressado e como
cada minuto de demora podia comprometer o banco, o senhor Lorry revelou
suas inquietações a Lucie. Ela lhe respondeu que seu pai planejava alugar uma
casa por curta temporada por ali mesmo, nas imediações do banco. Como não
houvesse objeções a opor, e como previa que lhes seria impossível partir, ainda
que Charles fosse libertado, pois não permitiriam que ele saísse de Paris, o senhor
Lorry foi procurar uma habitação e não tardou a encontrá-la, situada numa
travessa retirada, cujas casas, com as venezianas melancolicamente cerradas,
indicavam estarem desabitadas.
Imediatamente, removeu para lá Lucie, a menina e a senhorita Pross,
proporcionando-lhes todo o conforto que pôde, muito mais do que ele próprio
usufruía. Deixou Jerry com elas, como um homem de confiança para guardar-
lhes a porta, já que ele seria capaz de suportar até pancadas na cabeça para
protegê-las, se necessário, e retornou às suas obrigações. Entregou-se ao trabalho
com o coração pesado e a mente atribulada, de forma que o dia transcorreu com
dolorosa lentidão.
Por fim, anoiteceu e o banco fechou as portas. O senhor Lorry estava
novamente sozinho no aposento que ocupara na noite anterior, meditando sobre o
que faria em seguida, quando ouviu passos subindo a escada. Pouco depois,
perfilou-se diante dele um homem que, observando-o atentamente, chamou-o
pelo nome.
— Seu criado — cumprimentou-o o senhor Lorry. — O senhor me conhece?Tratava-se de um homem de constituição forte, cabelos negros e crespos,
com idade entre quarenta e cinco e cinqüenta anos. Em resposta, ele repetiu,
com exatamente a mesma ênfase, a pergunta:
— O senhor me conhece?
— Já o vi em algum lugar.
— Talvez na minha taberna?
Demonstrando grande interesse e agitação, o senhor Lorry indagou:
— Vem da parte do doutor Manette?
— Sim, venho da parte do doutor Manette.
— E o que ele diz? O que ele me envia? Defarge depositou um pedaço de
papel em sua mão trêmula de ansiedade. A letra pertencia ao doutor Manette:
“Charles está a salvo e seguro, porém não seria seguro eu deixar este lugar
agora. Consegui que o portador deste fizesse o favor de levar um bilhete de
Charles para Lucie. Leve-o à presença dela”.
Aquelas palavras foram escritas em La Force, havia apenas uma hora.
— Quer ter a bondade de acompanhar-me — solicitou o senhor Lorry
alegremente, experimentando um grande alívio depois de ler a mensagem em
voz alta — à casa da esposa de Darnay?
— Sim — assentiu Defarge.
Ainda sem perceber o tom curiosamente seco e mecânico de Defarge, o
senhor Lorry pôs o chapéu e ambos desceram até o pátio. Lá encontraram duas
mulheres, uma das quais fazia tricô.
— Madame Defarge, com toda a certeza! — exclamou o senhor Lorry, que
a deixara exatamente na mesma atividade dezessete anos antes.
— Sim, é ela — confirmou o marido.
— Madame irá conosco? — inquiriu o senhor Lorry, notando que ela os
acompanhava.
— Sim. Para que possa reconhecer os rostos e conhecer as pessoas. É para a
segurança delas.
Começando a reparar nos modos de Defarge, o senhor Lorry fitou-o com
desconfiança e tomou a dianteira. As duas mulheres o seguiam. A segunda delas
era A Vingança.
Atravessaram as ruas o mais rápido que puderam, subiram as escadas do
novo domicílio, foram recebidos por Jerry e encontraram Lucie sozinha,
chorando. Ela se deixou arrebatar pela alegria ao ouvir as notícias que o senhor
Lorry lhe trouxe de seu marido e apertou as mãos que trouxeram o bilhete, sem
suspeitar que aquelas mãos haviam desempenhado na véspera uma tarefa
lúgubre, tendo deixado de matar-lhe o marido por mero acaso.
“Minha querida,
Tenha coragem. Eu estou bem, pois seu pai tem empregado sua grande
influência em meu favor. Você não me poderá responder. Beije a nossa filha por
mim.”
Nada mais havia além daquelas poucas palavras. Entretanto, tão poucas
palavras significavam tanto para aquela a quem se destinavam que ela se voltou
de Defarge para a esposa e beijou uma das mãos que tricotavam. Foi um gesto
apaixonado, afetuoso, feminino e pleno de gratidão, que não encontrou resposta.A mão beijada pendeu, fria e inerte, e voltou ao tricô.
Mas houve, naquele contato, alguma coisa que fez Lucie estremecer. Ela
paralisou o movimento de guardar o bilhete no seio e, com a mão ainda no peito,
olhou aterrorizada para madame Defarge, que, arqueando as sobrancelhas,
devolveu-lhe o olhar com impassível frieza.
— Querida — disse o senhor Lorry, intervindo para explicar —, acontecem
motins pelas ruas com muita freqüência, agora, e, conquanto não seja provável
que venham a molestá-la, madame Defarge quer ver todos a quem ela tem
o poder de proteger nessas ocasiões, para reconhecer... identificar essas
pessoas. Eu acredito — acrescentou o senhor Lorry, quase interrompendo as
próprias palavras tranqüilizadoras, cada vez mais impressionado com a rigidez
pétrea de todos os três — ter resumido bem a situação. Correto, cidadão
Defarge?
Defarge lançou um olhar sombrio à esposa e limitou-se a resmungar em
aquiescência.
— Seria melhor, Lucie — continuou o senhor Lorry, esforçando-se, em tom
e maneiras, para ser conciliador —, trazer aqui a menina e a nossa boa Pross. A
nossa boa senhorita Pross, Defarge, é uma dama inglesa e não conhece uma
palavra de francês.
A dama em questão, cuja firme convicção de que valia tanto ou mais do que
qualquer estrangeira não se abatia pela angústia nem pelo perigo, parou diante da
“Vingança”, cujos olhos encontrou primeiro:
— Ora, ora, madame Insolência! Espero que a senhora esteja muito bem!
Ela ainda lançou um pigarro inglês sobre madame Defarge. Nem esta,
porém, nem a outra lhe prestaram grande atenção.
— É esta a filha do prisioneiro? — indagou madame Defarge,
interrompendo pela primeira vez o seu trabalho e apontando para a pequena
Lucie com a agulha, como se fosse o dedo do Destino.
— Sim, madame — respondeu o senhor Lorry. — É a única e querida filha
do nosso pobre prisioneiro.
A sombra que envolvia madame Defarge e sua comitiva pareceu adensar-
se tão negra e ameaçadora sobre a criança que a mãe instintivamente se
ajoelhou ao lado dela e aconchegou-a nos braços... A sombra que envolvia
madame Defarge e sua comitiva pareceu então adensar-se, negra e
ameaçadora, sobre mãe e filha...
— É o bastante, meu marido — declarou madame Defarge. — Já as vi.
Agora, podemos ir.
Entretanto, no tom contido ressoavam tantas ameaças, não visíveis e
concretas, mas indistintas e veladas, que Lucie, alarmada, suplicou, pousando a
mão no vestido de madame Defarge:
— Seja generosa com meu marido, não lhe faça mal. A senhora me
ajudará a vê-lo, se puder?
— Seu marido não é problema meu — retorquiu madame Defarge, que
fitou-a do alto, absolutamente serena. — É pela filha de seu pai que vim aqui.
— Por mim, então, tenha piedade de meu marido. Pelo bem de minha filha!
Ela lhe rogará de mãos postas que seja misericordiosa. A senhora nos causa maistemor do que os outros.
Madame Defarge recebeu aquela confissão como um cumprimento e olhou
para o marido. Defarge, que estivera inquieto, roendo a unha do polegar e
contemplando a esposa, recompôs o semblante, imprimindo-lhe uma expressão
mais austera.
— Que diz seu marido nesse bilhete? — inquiriu madame Defarge, com um
sorriso. — Influência. Ele não menciona qualquer coisa sobre “influência”?
— Que meu pai — ripostou Lucie, apressando-se a tirar o papel do seio,
sem, contudo, despregar os olhos alarmados de sobre sua interrogadora — tem
empregado sua influência em favor dele. — Essa influência certamente o porá
em liberdade — replicou madame Defarge. — Pois que o faça.
— Como esposa e mãe — bradou Lucie, com fervor —, imploro-lhe que
tenha compaixão de mim e não exerça o seu poder contra meu inocente marido,
mas sim em seu benefício. É uma mulher como eu, é minha irmã. Tenha
piedade de uma esposa e mãe!
Madame Defarge fitava-a, glacial como sempre, e comentou, virando-se
para sua amiga “A Vingança”:
— As esposas e mães que nos acostumamos a ver, desde que éramos tão
pequenas quanto essa criança, e até antes, jamais contaram com a piedade de
ninguém. Nós não nos cansamos de saber que os maridos e pais delas lhes eram
arrebatados e trancafiados nas prisões? Em toda a nossa vida, não presenciamos
o sofrimento das mulheres, nossas irmãs, e de seus filhos, em conseqüência da
miséria, da nudez, da fome, da sede, das doenças, da opressão e de toda a sorte
de negligência?
— Nunca vimos outra coisa — concordou “A Vingança”.
— Suportamos tudo isso durante muito tempo — prosseguiu madame
Defarge, voltando novamente os olhos para Lucie. — Agora, julgue por si
mesma! Acha possível que o sofrimento de uma única esposa e mãe nos abale?
Ela retomou o tricô e retirou-se. “ A Vingança” seguiua. Defarge saiu por
último e fechou a porta.
— Coragem, minha querida Lucie — procurou animála o senhor Lorry,
erguendo-a. — Coragem, coragem! Até agora, tudo tem corrido bem para nós,
muito, muito melhor do que para tantos outros. Vamos, anime-se e seja grata.
— Não sou ingrata, espero, mas aquela temível mulher parece ter lançado
uma sombra sobre mim e sobre todas as minhas esperanças.
— Ora, ora — disse o senhor Lorry —, que desalento é esse num coração
tão valente? Uma sombra, com efeito! Não há substância nas sombras, Lucie.
Mas a sombra dos Defarge pairava escura também sobre ele, e, no
recôndito de seu espírito, perturbava-o profundamente.IV. Calmaria em Meio à Tormenta
CAPÍTULO IV
CALMARIA EM MEIO À TORMENTA
O doutor Manette só retornou na manhã do quarto dia de sua ausência. Tanto
empenho se fez em ocultar ao máximo de Lucie o que aconteceu nessa época
terrível que só muito tempo depois, já longe da França, ela veio a saber que mil e
cem indefesos prisioneiros de ambos os sexos e de todas as idades tinham sido
mortos pelo populacho, que quatro dias e quatro noites foram cobertos de
sombras por esse ato de horror, e que a atmosfera que a cercara estivera
corrompida pelo massacre. Só então ela soube que as prisões tinham sido
atacadas, que todos os prisioneiros políticos haviam corrido perigo e que muitos
haviam sido arrastados pela multidão e assassinados.
Para o senhor Lorry, o doutor comunicou, depois de lhe pedir segredo, uma
precaução evidentemente desnecessária, que a turba o conduzira por um cenário
tenebroso até a prisão de La Force. Que, lá chegando, deparou-se com um
autonomeado tribunal[205], perante o qual os prisioneiros eram levados
individualmente, e onde rapidamente era determinada a sua morte na
carnificina, ou sua libertação, ou, o que era mais raro, a voltarem para suas
celas. Que, apresentado por seus acompanhantes a esse tribunal, ele declinou seu
nome e profissão, e declarou ter sido, por dezoito anos, um secreto e não
formalmente acusado prisioneiro da Bastilha. Que um dos membros do tribunal
levantou-se e identificouo, e que esse homem era Defarge.
Que, e a esse respeito ele tinha averiguado nos registros sobre a mesa, seu
genro estava entre os prisioneiros vivos, e que, então, apelou com veemência ao
tribunal popular, do qual alguns membros dormiam, outros mantinhamse
acordados, uns se mostravam ensangüentados pelos crimes praticados, outros se
mostravam limpos, alguns estavam sóbrios e outros não, por sua vida e liberdade.
Que, nos primeiros frenéticos e copiosos gritos de saudação que lhe dirigiram
como um notável mártir do sistema derrubado, concordaram em trazer Charles
Darnay diante da corte ilegal para interrogatório. Que lhe pareceu que Darnay
estava a um passo de ser libertado quando a maré a seu favor chocou-se contra
um obstáculo inexplicável, ao menos, incompreensível para ele, doutor Manette,
e o tribunal decidiu reunir-se em conferência secreta. Que o homem que presidia
o tribunal, então, informou-o de que o prisioneiro deveria permanecer sob
custódia, mas que, em consideração a ele, doutor Manette, seria declarado
inviolável. Que imediatamente, a um sinal, o prisioneiro foi novamente removido
para o interior da prisão. Mas que ele, doutor Manette, suplicou vigorosamente
permissão para ficar e certificar-se de que o genro não iria parar, por equívoco,nas mãos dos verdugos, cujos gritos ferozes invadiam a corte e, por vezes,
abafavam as vozes durante os julgamentos. Que obteve permissão e ficou no
Tribunal do Sangue até o perigo cessar.
As tenebrosas cenas que o doutor presenciou ali, nos três dias em que mal
comeu, e dormiu a intervalos irregulares, não serão descritas. A louca euforia
que se apossou dos prisioneiros que sobreviveram espantou-o tanto quanto a louca
ferocidade demonstrada contra os que foram esquartejados. Houve um
prisioneiro, contou o doutor Manette, que, restituído à liberdade, por um trágico
engano foi apunhalado ao sair do cárcere. Chamado para cuidar do ferido, o
doutor atravessou o mesmo portão e encontrou-o nos braços de um grupo de
samaritanos sentados sobre os corpos de suas vítimas. Com uma incongruência
tão monstruosa quanto tudo o mais nesse terrível pesadelo[206], eles o ajudaram
a tratar do rapaz com uma gentil solicitude, improvisaram-lhe uma padiola e
mandaram uma escolta retirálo dali com todo o cuidado. Então, tornaram a
empunhar as armas e voltaram a dedicar-se a uma carnificina tão hedionda que
o doutor cobriu os olhos com as mãos e desfaleceu no meio daquele horror.
Enquanto lhe ouvia as confidências, observando o rosto do amigo já com
sessenta e dois anos de idade, o senhor Lorry sentiu-se tomado pelo receio de que
essas tenebrosas experiências pudessem reavivar-lhe a antiga perturbação
mental. Contudo, o fato era que jamais vira seu amigo com tão bom aspecto. Na
verdade, jamais o vira como se mostrava agora. Pela primeira vez, o doutor
percebia que o sofrimento do passado constituía-se em força e poder no presente.
Pela primeira vez, apercebia-se de que, no fogo em que ardera, acabara por
forjar o ferro que romperia as grades da prisão do marido de sua filha e o
libertaria.
— Há males que vêm para bem, meu amigo. O que passei não foi apenas
desperdício e ruína. Minha filha adorada devolveu-me à vida e, agora, eu
ajudarei a devolver-lhe a vida de seu amado. Com o auxílio de Deus, eu o farei!
Assim disse o doutor Manette. E quando Jarvis Lorry contemplou os olhos
brilhantes, a face resoluta, o sereno e forte semblante de um homem cuja vida
sempre lhe pareceu ter parado, como os ponteiros de um relógio, por tantos anos,
e agora retomava o funcionamento com uma energia que permanecera
adormecida durante aquele período sem utilização, então acreditou.
Dificuldades maiores do que aquelas com as quais o doutor tinha de
confrontar-se no momento teriam cedido diante de sua perseverança. Enquanto
se mantinha como médico, exercendo uma profissão que o colocava em contato
com todos os tipos humanos, cativos e livres, ricos e pobres, bons e maus, ele
usou sua influência pessoal tão sabiamente que em breve se tornou supervisor de
três prisões, incluindo La Force. Com isso, podia assegurar a Lucie que seu
marido já não estava confinado em isolamento, mas permanecia com os demais
prisioneiros na sala comum. Ele via Charles todas as semanas e transmitia a ela
os ternos recados do marido. Às vezes, Darnay lhe enviava cartas, embora nunca
através do doutor Manette, mas a Lucie não era permitido escrever-lhe, pois, de
todos os presos dos quais se suspeitava que conspirassem contra o povo, os
emigrados eram os que mais despertavam a ira dos patriotas, principalmente os
que eram acusados de manter correspondência, quer com as famílias, quer comos amigos, no exterior.
Sem dúvida, essa nova vida do doutor era cheia de ansiedade. Contudo, o
perspicaz senhor Lorry vislumbrava nele um novo orgulho, que lhe servia de
amparo. Nenhuma impropriedade maculava esse natural e nobre orgulho. Ainda
assim, ele o observava com curiosidade. O doutor sabia que, até então, seu
cativeiro se associara, na mente da filha e na do amigo, às suas aflições,
privações e fraquezas. Agora que isso mudara, e que ele se sabia investido,
graças ao antigo sofrimento, de forças às quais Lucie e o senhor Lorry recorriam
na esperança de salvar Charles, sentia-se tão engrandecido pela mudança que
assumira o controle da situação como o mais forte, de quem os outros, mais
fracos, dependiam. Os papéis dele e de Lucie se inverteram, embora apenas na
medida em que a gratidão e a afeição mais vivas pudessem invertê-los, pois ele
sentia-se extremamente orgulhoso em ajudá-la como ela outrora o ajudara. “É
muito curioso...”, pensou o senhor Lorry, com sua amistosa perspicácia, “...mas é
também natural e correto. Que você tome as rédeas, meu caro amigo. Não
poderiam ficar em melhores mãos.”
Contudo, embora o médico se empenhasse e nunca desistisse de tentar
libertar Charles Darnay, ou, ao menos, levá-lo a julgamento, a correnteza dos
acontecimentos provou-se demasiado forte e rápida para ele. A nova era
começara. O rei fora julgado, condenado e decapitado. A República da
Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte declarara-se pela vitória ou pela
morte contra o mundo em armas[207]. A bandeira negra ondulava noite e dia nas
grandes torres de Notre-Dame e trezentos mil homens[208], conclamados a
erguerem-se contra os tiranos da Terra, surgiram de todos os cantos da França,
como se houvessem semeado os dentes do dragão por toda a parte[209],
colhendo-se os frutos igualmente na montanha e na planície, nos rochedos, no
cascalho e na lama aluvial, sob o céu rutilante do sul e sob as nuvens do norte, nas
matas e nas florestas, nos vinhedos e nas oliveiras, por entre o capim do pasto e o
restolho dos milharais, ao longo das férteis margens dos rios e na areia das praias.
Que preocupações pessoais poderiam fazer frente ao dilúvio do Ano Um da
Liberdade[210], o dilúvio cujas águas jorravam da terra e não dos céus, cujas
janelas estavam fechadas?[211]
Não havia hesitação, nem misericórdia, nem paz, nem um piedoso intervalo
para repouso, já não havia medida de tempo. Embora os dias e as noites
descrevessem seus ciclos de modo tão regular como quando o tempo era jovem
e a noite se sucedia à manhã do primeiro dia[212], não havia outra forma de
contar o tempo, cujo controle se perdera na fúria febril de uma nação. Agora,
rompendo o silêncio sobrenatural de uma cidade inteira, o carrasco exibia ao
povo a cabeça do rei, e agora, dando a impressão de acontecer exatamente no
mesmo instante, a cabeça de sua bela rainha, encanecida em oito meses de
viuvez e miséria na prisão[213].
E, contudo, em virtude da estranha lei da contradição que impera em tais
circunstâncias, quanto mais o tempo corria, célere, tanto mais lento parecia. Um
tribunal revolucionário na capital, e quarenta ou cinqüenta mil comitês
revolucionários em todo o país; uma lei de Suspeitosos[214], que, agredindo a
segurança de liberdade e de vida, confiava qualquer pessoa inocente e boa àsmãos de qualquer outra culpada e perversa; as prisões transbordavam de pessoas
que não haviam praticado nenhum crime e não tinham direito de defesa. Tudo
isso passou a constituir a ordem estabelecida e a natureza da disposição de
propriedade, e parecia um costume antigo quando apenas completara algumas
semanas. Mais do que todas, uma hedionda figura tornou-se tão familiar como se
existisse desde o início dos tempos, uma afiada figura de gênero feminino
chamada La Guillotine.
Era o tema popular dos gracejos; indicada como o melhor tratamento para
dor de cabeça ou como a melhor forma de evitar cabelos brancos, imprimia
uma peculiar delicadeza à compleição física, era a Navalha Nacional que
proporcionava um corte de barba mais rente; aqueles que beijavam La Guillotine
espiavam pela janelinha e espirravam no saco. Era o sinal da regeneração da
raça humana. Suplantava a cruz. Miniaturas dela eram exibidas sobre os seios de
onde o crucifixo fora descartado, era objeto de veneração e crença quando a
cruz era negada[215].
Decepou cabeças tantas que se tingiu, e ao chão que poluiu tanto, de um
vermelho pútrido. Foi desmontada, como um simples brinquedo, um quebra-
cabeça de algum demônio infante, e foi novamente montada quando a ocasião
exigiu. Calou os eloqüentes, abateu os poderosos, destruiu a beleza e a bondade.
De vinte e dois amigos de grande notoriedade pública, sendo vinte e um vivos e
um morto, cortou as cabeças, numa só manhã, em vinte e dois minutos[216]. O
nome do homem forte do Velho Testamento, Sansão, foi atribuído ao chefe dos
carrascos. Mas, assim armado, ele era mais forte e mais cego do que seu
homônimo, e destruía as colunas do templo todos os dias[217].
Por entre todos esses horrores e tudo quanto geravam, o doutor Manette
caminhava de cabeça erguida, confiando em seu poder, cautelosamente
persistindo em seu objetivo e jamais duvidando que acabaria por salvar o marido
de Lucie. Contudo, a correnteza do tempo se precipitava, tão forte e profunda, e
arrastava consigo os dias de modo tão furioso, que Charles se encontrava na
prisão já fazia um ano e três meses quando o doutor assim caminhava de cabeça
erguida e confiante. A Revolução havia assumido contornos tão perversos e
aturdidos naquele mês de dezembro que os rios do sul estavam entulhados com os
corpos violentamente lançados às águas durante a noite, e os prisioneiros eram
baleados em filas e blocos sob o céu do inverno sulista[218]. Ainda assim, o
doutor Manette caminhava por entre esses horrores de cabeça erguida. Não
havia homem mais conhecido em Paris do que ele, naquele dia. Nenhum
homem em situação mais estranha. Silencioso, humano, indispensável no hospital
e na prisão, dispensando sua arte de forma igualitária aos assassinos e a suas
vítimas, ele era um caso à parte. No exercício de sua habilidade, a aparência e a
história do cativo da Bastilha o diferenciava dos outros homens. Ele não era alvo
de suspeita nem de questionamento mais do que o seria se, de fato, houvesse
ressuscitado cerca de dezoito anos antes, ou se fosse um espírito movendo-se
entre os mortais. V. O Serrador
CAPÍTULO V
O SERRADOR
Um ano e três meses[219]. Durante todo esse tempo, Lucie nunca esteve segura,
a cada hora, senão de que a Guillotine poderia decepar a cabeça de seu marido
no dia seguinte. Todos os dias, sobre as pedras das ruas, os carros fúnebres
passavam sacudindo-se pesadamente, repletos de condenados. Graciosas moças,
mulheres encantadoras de cabelos castanhos, pretos e grisalhos, jovens, rapazes
robustos, velhos, nobres e plebeus, todos formavam o rubro vinho para La
Guillotine, diariamente tirado das adegas dos sombrios cárceres e carregado até
ela pelas ruas para saciar-lhe a devoradora sede. Liberdade, Igualdade,
Fraternidade ou Morte; a última, muito mais fácil de conceder do que as outras, ó
Guillotine!
Se a subitaneidade de seu infortúnio e as rodopiantes rodas do tempo
houvessem atordoado a filha do médico a ponto de levá-la a aguardar um
desfecho em ocioso desespero, a sua sorte teria sido igual a de muitos outros.
Todavia, desde o momento em que apertara ao peito a cabeça branca do pai, na
água-furtada do bairro de Santo Antônio, mantivera-se sempre fiel a seus
deveres. Mostrava-se mais fiel ainda naquela época de provação, como acontece
com todos os que são leais e generosos.
Tão logo a família se instalou em sua nova residência, e seu pai mergulhou
na rotina de suas ocupações, ela organizou sua pequena casa exatamente como
se o marido estivesse ali. Para tudo havia um lugar certo e uma hora certa.
Ensinava as lições à pequena Lucie tão regularmente como se estivessem todos
juntos em seu lar inglês. Os pequenos estratagemas que alimentavam-lhe a ilusão
de que todos em breve se reuniriam, os preparativos para um próximo retorno de
Charles, separando-lhe a cadeira e os livros favoritos, tudo isso e mais o solene
prazer de rezar à noite por um adorado prisioneiro em especial e pelas infelizes
almas que jaziam na prisão sob a sombra da morte, eram praticamente os únicos
e sinceros consolos de sua alma dolorida.
Ela não mudara muito quanto à aparência. Os vestidos simples e escuros,
parecidos com trajes de luto, que ela e a filha usavam eram tão bem cuidados
quanto as roupas vistosas dos dias felizes. O tom rosado de suas faces esmaecera,
e a antiga e intensa expressão de sua fronte deixara de ser ocasional para tornar-
se constante. De resto, continuava muito bonita e graciosa. Algumas vezes, à
noite, quando beijava o pai, desabafava a mágoa que reprimira durante todo o
dia e declarava que sua única esperança, abaixo de Deus, era ele. O pai, então,
respondia em tom resoluto:— Nada pode acontecer a ele sem meu conhecimento, e sei que posso
salvá-lo, Lucie.
Ainda não haviam completado muitas semanas em sua modificada vida
quando o doutor Manette lhe disse, ao voltar para casa:
— Minha querida, existe uma janela no alto da prisão à qual Charles às
vezes tem acesso por volta das três horas da tarde. Sempre que ele obtiver
permissão para ir lá, o que depende de muitas circunstâncias, poderá vê-la na
rua, se você se colocar num determinado local que lhe indicarei. Você, contudo,
não terá como vê-lo, minha pobre criança, e, mesmo que o visse, não seria
seguro para você fazer qualquer sinal de que o reconheceu.
— Oh, mostre-me o lugar, meu pai, e eu lá irei todos os dias.
A partir daí, qualquer que fosse o tempo que fizesse, ela aguardava no lugar
combinado durante duas horas. Quando o relógio anunciava as duas horas, ela
chegava. E, às quatro horas, afastava-se resignadamente. Se não estivesse
demasiado úmido ou frio para a filha, levava-a consigo. Quando não, ia sozinha,
mas jamais faltou sequer um dia.
Tratava-se da escura e suja esquina de uma rua pequena e batida pelo
vento. A barraca de um cortador de madeira em lenha constituía a única casa
naquele trecho da rua; tudo o mais era muro. Na terceira vez que ali apareceu, o
homem notou a sua presença.
— Boa tarde, cidadã.
— Boa tarde, cidadão.
Essa fórmula de saudação fora prescrita por decreto[220]. Fora estabelecida
voluntariamente algum tempo antes, entre os mais exaltados patriotas; mas,
agora, era lei para todos.
— Passeando por aqui outra vez, cidadã?
— Como vê, cidadão.
O serrador, um homenzinho cheio de gestos (que, em certa época, foi
reparador de estradas), lançou um olhar para a prisão, apontou-a e, colocando os
dez dedos diante do rosto para representar as grades, espiou jocosamente através
deles.
— Mas isso não é da minha conta — declarou, e continuou a serrar a sua
madeira.
No dia seguinte, ele estava à espera dela e acercou-se assim que a viu
chegar.
— O quê? Passeando por aqui outra vez, cidadã?
— Sim, cidadão.
— Ah! A menina também! Sua mãe, não é, cidadãzinha?
— Devo responder que sim, mamãe? — cochichou a pequena Lucie,
aproximando-se mais de sua mãe.
— Sim, meu amor.
— Sim, cidadão.
— Ah! Mas isso não é da minha conta. Meu negócio é o meu trabalho. Veja
a minha serra! Chamo-a de “minha pequena Guillotine”. La, la, la; la, la, la! E lá
se vai a cabeça dele!
O pedaço de madeira caiu e o homem atirou-o num cesto.— Eu me chamo o Sansão da Guillotine de madeira! Estão vendo? Roc...
roc... roc; roc... roc... roc! Lá se vai a cabeça dela! Agora, uma criança! Rique...
rique; Tique... tique! E lá se foram as cabeças da família toda!
Lucie estremeceu, vendo-o atirar mais dois pedaços de madeira no cesto,
porém seria impossível permanecer ali enquanto o serrador trabalhava sem que
este a visse. Daí por diante, para granjear-lhe as boas graças, era a primeira a
cumprimentá-lo e lhe dava sempre algumas moedas, que o homem prontamente
aceitava. Ele era um sujeito indiscreto, e às vezes, quando Lucie o havia quase
esquecido, entretida em espreitar o teto e as grades da prisão, erguendo os olhos e
o coração para o marido, acontecia de ela surpreendê-lo a fitá-la, com um
joelho apoiado em seu tamborete e a serra imóvel na madeira.
— Mas isso não é da minha conta — ele geralmente resmungava nessas
ocasiões, retomando bruscamente o trabalho.
Em todas as estações, na neve e no gelo do inverno, nos ásperos ventos da
primavera, no sol escaldante do verão e nas chuvas do outono, Lucie passava
duas horas, todos os dias, naquela esquina; e todos os dias, ao partir, beijava o
muro da prisão. Seu marido podia avistá-la, assim o soube através do pai, uma
em cada cinco ou seis vezes e vislumbrar-lhe o vulto ao passar outras duas ou
três. Como também podia deixar de vê-la por dez ou quinze dias seguidos.
Bastava, todavia, que ele pudesse vê-la e o fizesse sempre que tivesse a
oportunidade. Por essa possibilidade, ela esperaria o dia todo, sete dias por
semana.
Absorvida por essas ocupações, ela chegou ao mês de dezembro. Nesse
intervalo, seu pai caminhou de cabeça erguida por entre todos os terrores. Numa
tarde em que nevava levemente, Lucie dirigiu-se à esquina costumeira. Aquele
era um dia festivo, de selvagem regozijo público. Ela notara, ao passar, que as
casas estavam decoradas com pequenas lanças em cuja extremidade havia um
barrete vermelho e também com faixas tricolores, nas quais se lia a inscrição,
em letras também tricolores: “República Una e Indivisível. Liberdade, Igualdade,
Fraternidade ou Morte!”.
A miserável oficina do serrador era tão estreita que o espaço oferecido por
sua fachada inteira era insuficiente para essa legenda. Ele havia conseguido
alguém para garatujar as palavras em sua faixa, porém, que rabiscara “Morte”
com a mais inadequada dificuldade. No teto de sua casa, colocara a lança
adornada com o barrete vermelho, como um bom cidadão, e, numa janela,
prendera a sua serra, com a inscrição: “Pequena Santa Guilhotina”[221], pois o
afiado instrumento do gênero feminino fora, nessa época, popularmente
canonizado. Sua oficina estava fechada, ele não se encontrava por ali, o que foi
um alívio para Lucie, que ficou em tranqüila solidão.
Contudo, o homenzinho não devia ter ido muito longe, pois logo ela ouviu
aproximarem-se passos tumultuosos e gritos, que a encheram de terror. Um
momento depois, uma multidão espalhava-se pela esquina vindo dos lados da
prisão, no meio da qual se achava o serrador, de mãos dadas com “A Vingança”.
Não havia menos de quinhentas pessoas, que dançavam como quinhentos
demônios. A música era constituída por seu próprio canto. Dançavam ao som de
um canto popular revolucionário[222], mantendo um ritmo feroz, semelhante aum ranger de dentes em uníssono. Homens e mulheres dançavam juntos,
mulheres dançavam juntas, homens dançavam juntos, conforme o acaso os
reunisse. No início, eles eram apenas um turbilhão de grosseiros barretes e
grosseiros trapos vermelhos; porém, à medida que lotavam a praça e paravam
para dançar perto de Lucie, começaram a se organizar numa espécie de
fantasmagoria coreográfica ensandecida, onde avançavam, retrocediam, batiam
nas mãos uns dos outros, agarravam-se mutuamente as cabeças, descreviam
piruetas isoladamente, reuniam-se a outros e descreviam piruetas aos pares, e
rodopiavam, rodopiavam até que alguns caíram. Enquanto esses estavam no
chão, os demais formaram uma corrente de mãos dadas e todos rodopiaram
juntos. Então, a corrente se partiu, e, em elos separados de dois e quatro, giraram
e giraram até que todos pararam ao mesmo tempo, começando novamente,
batendo, agarrando e rasgando, e então mudaram a direção e giraram todos em
sentido contrário. De súbito, interromperam o giro mais uma vez, fizeram uma
pausa, bateram novamente o compasso, formaram fileiras ao longo da rua, e,
com suas cabeças abaixadas e as mãos erguidas, arremetiam, soltando gritos
medonhos. Nenhuma batalha teria metade do efeito terrífico dessa dança. Era
tão claramente uma brincadeira deturpada, algo, antes inocente, que degenerara
em toda a sorte de perversidades, um divertimento outrora saudável que se
converteu numa forma de aquecer o sangue, desorientar os sentidos e endurecer
o coração. A graciosidade que se observava nela tornava-lhe a natureza ainda
mais vil, demonstrando a que ponto se podiam deformar e perverter todas as
coisas boas por natureza. Aquele seio virginal desnudado, aquela linda cabeça
quase infantil perturbada por aquele frenesi, aquele pé delicado andando com
passos ágeis naquele atoleiro de sangue e lama, eram exemplos dessa época em
dissolução.
Esta era a Carmagnole. Depois que ela se afastou, deixando Lucie assustada
e desnorteada na porta da oficina do serrador, os flocos de neve caíram
silenciosos como plumas e se assentaram, tão brancos e suaves que era como se
nada tivesse ocorrido.
— Oh! Meu pai! — exclamou Lucie ao doutor Manette, que estava à sua
frente quando ela abriu os olhos que momentaneamente havia coberto com as
mãos —, que espetáculo selvagem e maldoso!
— Eu sei, minha querida, eu sei. Eu tenho visto tais cenas muitas vezes. Não
se amedronte! Nenhum deles faria mal a você.
— Não temo por mim, meu pai. Mas quando penso em meu marido, à
mercê dessas pessoas...
— Muito em breve nós o colocaremos a salvo delas. Eu o deixei quando
subia para a janela, e vim avisá-la. Não há ninguém aqui que a veja. Você
poderá enviar um beijo para aquela parte mais alta do teto.
— Eu o farei, pai, e lhe mandarei minha alma com esse beijo.
— Você não consegue avistá-lo, minha pobre filha?
— Não, pai, não — disse Lucie, chorando de saudade enquanto beijava a
mão. Ruído de passos na neve. Madame Defarge.
— Eu a saúdo, cidadã — cumprimentou o médico.
— Eu o saúdo, cidadão — ela respondeu.Nada mais. Madame Defarge passou por eles como uma sombra escura
sobre a neve do caminho.
— Dê-me o braço, querida. Quero que saia daqui com um ar de disposição
e coragem, pelo bem dele. Está tudo arranjado. — Afastaram-se da esquina. —
Seu esforço não será em vão. Charles deverá comparecer amanhã ao tribunal.
— Amanhã!
— Não há tempo a perder. Tenho tudo preparado, mas há precauções a
tomar, que deverão aguardar até que ele compareça perante o tribunal. Ele ainda
não recebeu a notícia, mas eu sei que ele será intimado para amanhã e removido
para a Conciergerie[223]. Acabei de receber a informação. Você está com
medo?
Ela mal pôde responder:
— Eu confio no senhor.
— Pois confie inteiramente. Sua expectativa está prestes a terminar, minha
querida. Ele lhe será restituído dentro de poucas horas. Eu o cerquei de toda a
proteção. Devo encontrar-me com Lorry...
Ele se interrompeu. Um rumor surdo de rodas chegava aos seus ouvidos.
Ambos sabiam muito bem do que se tratava. Um. Dois. Três. Três carros
fúnebres, com sua carga terrível, desfilaram ao longe, sobre a neve.
— Devo encontrar-me com Lorry — repetiu o Doutor, conduzindo-a por
outro caminho. O velho e leal cavalheiro já estava em seu posto; nunca o
abandonava. Ele e seus livros sofriam freqüentes requisições como propriedade
confiscada e considerada como propriedade nacional. Tudo o que podia, ele
salvava para os proprietários. Nenhum outro homem defenderia com tanta
dedicação os bens que o Banco Tellson mantinha sob sua custódia nem lhe
asseguraria tal tranqüilidade.
Um sombrio céu tingido de vermelho e amarelo e a neblina que se erguia do
Sena prenunciavam a chegada das trevas da noite. Já quase escurecera quando
eles chegaram ao Banco. A residência imponente de monseigneur estava
totalmente arruinada e deserta. Acima de um monte de poeira e cinzas no pátio,
liam-se as palavras: Propriedade Nacional. República Una e Indivisível.
Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte!
Quem poderia estar com o senhor Lorry, o dono da capa de viagem sobre a
cadeira, quem não devia ser visto? De que pessoa recém-chegada ele se separou,
agitado e surpreso, para tomar sua favorita nos braços? Para quem ele parecia
estar repetindo as palavras que ela balbuciara quando, levantando a voz e
voltando a cabeça na direção da porta do quarto de onde havia saído, ele disse:
— Removido para a Conciergerie, e intimado para amanhã? VI. Triunfo
CAPÍTULO VI
TRIUNFO
O temível tribunal composto por cinco juízes, promotor público e um júri
determinado, reunia-se todos os dias[224]. Suas listas de réus eram publicadas
todas as noites e lidas pelos carcereiros das diversas prisões a seus encarcerados.
O gracejo dos carcereiros era:
— Venham ouvir as notícias do Jornal da Noite[225], vocês aí!
— Charles Evrémonde, chamado de Darnay! Foi com esse nome que, por
fim, começou a leitura do
Jornal da Noite na prisão de La Force. Quando um nome era chamado, seu
dono se dirigia para o local reservado àqueles que constavam do fatal registro.
Charles Evrémonde, chamado de Darnay, tinha motivos para conhecer esse
costume, pois vira desaparecerem assim centenas de prisioneiros.
Seu obeso carcereiro, que usava óculos para ler, olhou por cima das lentes
para certificar-se de que ele se encaminhara para o lugar apropriado, e
continuou a leitura da lista, fazendo a mesma pausa curta a cada nome. Lá
estavam vinte e três nomes, mas apenas vinte responderam à chamada, pois um
deles morrera no cárcere e fora esquecido, e os outros dois já haviam sido
guilhotinados e esquecidos. A lista era lida no salão abobadado onde Darnay foi
introduzido na noite de sua chegada e onde encontrara os prisioneiros reunidos.
Todos eles tinham perecido no massacre. Todos os seres humanos por quem se
interessara e de quem se separara desde então haviam morrido no cadafalso.
Ouviram-se apressadas e carinhosas palavras de adeus, mas a despedida foi
rápida. Era um incidente diário, e a sociedade de La Force ocupava-se com os
preparativos para alguns jogos de prendas e para um pequeno concerto, os quais
teriam lugar naquela noite. Todos se acotovelaram junto às grades e derramaram
lágrimas; contudo, vinte lugares nos entretenimentos programados ficaram vagos
e precisavam ser preenchidos e o tempo era, no mínimo, curto, tendo em vista a
proximidade do toque de recolher, quando as celas comunais e os corredores
eram ocupados pelos cães imensos que eram responsáveis pela vigilância
noturna. Os prisioneiros nada tinham de insensíveis ou de indiferentes. Seu
comportamento era unicamente o resultado das circunstâncias. Da mesma
forma, embora com uma diferença sutil, a espécie de fervor ou de intoxicação
que, sabe-se, sem dúvida levou algumas pessoas a desafiar desnecessariamente a
guilhotina e a morrer nela, não era simples jactância, mas uma selvagem
degeneração da selvagemente abalada consciência pública. Nas epidemias de
peste, alguns de nós sentimos uma secreta atração pela doença, uma efêmera eterrível inclinação a morrer em conseqüência dela. E todos nós possuímos
prodígios ocultos em nossos corações que só necessitam das circunstâncias certas
para serem evocados.
A passagem para a Conciergerie foi curta e sombria. A noite em suas celas
infestadas de insetos foi longa e fria. No dia seguinte, quinze prisioneiros foram
conduzidos às barras do tribunal antes de chamarem o nome de Charles Darnay.
Todos os quinze foram condenados, e os julgamentos de todos eles ocuparam
apenas uma hora e meia.
— Charles Evrémonde, chamado de Darnay — foi, por fim, apregoado.
Seus juízes estavam sentados em sua bancada com chapéus
emplumados[226]. Mas o tosco barrete vermelho com a fita tricolor era o
chapéu predominante no salão. Contemplando o júri e a turbulenta audiência, ele
teve a impressão de que a ordem usual das coisas se invertera, passando os vilões
a julgar os homens honestos. O mais vil, baixo e cruel populacho de uma cidade
era o diretor espiritual da cena: ruidosamente comentando, aplaudindo,
desaprovando, antecipando e precipitando o resultado, sem que lhe opusessem
qualquer restrição. Dos homens, a maior parte estava armada de várias
maneiras; quanto às mulheres, algumas portavam facas, outras, adagas e outras
ainda comiam e bebiam enquanto assistiam ao espetáculo, muitas tricotavam.
Entre essas últimas, havia uma, segurando debaixo do braço uma peça de tricô
sobressalente enquanto trabalhava. Ela se encontrava numa das fileiras da frente,
ao lado de um homem a quem ele não via desde sua chegada à barreira, mas de
quem se lembrava como sendo Defarge. Percebeu que ela cochichou no ouvido
do acompanhante uma ou duas vezes, de onde Darnay depreendeu que devia ser
sua esposa. Contudo, o que mais lhe chamou a atenção nas duas figuras foi o fato
de que, embora estivessem tão perto dele quanto possível, nunca olhavam em sua
direção. Eles pareciam aguardar alguma coisa com uma obstinada
determinação, voltando o olhar apenas para o júri e nada mais.
Abaixo do presidente estava o doutor Manette, com seu sóbrio traje habitual.
Até onde o prisioneiro podia ver, ele e o senhor Lorry eram os únicos homens ali,
em desacordo com o tribunal, que envergavam suas roupas costumeiras e que
não haviam adotado o grosseiro traje de Carmagnole[227].
Charles Evrémonde, chamado de Darnay, foi acusado pelo promotor
público como um emigrado, cuja vida fora confiscada pela República, sob o
decreto que bania do país todos os emigrantes, sob pena de morte[228]. Pouco
importava que seu regresso tivesse sido anterior à data do decreto invocado. Ali
estava ele, e lá estava o decreto. Ele fora preso na França e o povo exigia sua
cabeça.
— Cortem-lhe a cabeça! — gritou a platéia. — Um inimigo da República!
O presidente tocou a sineta para silenciar os brados, e inquiriu ao réu se era
ou não verdade que ele vivera muitos anos na Inglaterra.
Sem dúvida, era verdade.
E não era, então um emigrante? Como se qualificava ele?
Não um emigrante, ele esperava, dentro do significado e do espírito da lei.
— Por que não? — o presidente quis saber.
Porque ele havia voluntariamente repudiado um título que lhe eraabominável e uma propriedade que lhe era detestável, e saíra do país, o que
fizera antes que a palavra “emigrante” assumisse a conotação que possuía agora,
para viver na Inglaterra à custa do próprio trabalho, em vez de viver na França à
custa do trabalho do povo.
Que provas ele tinha dessa alegação? Darnay apresentou o nome de duas
testemunhas: Théophile Gabelle e Alexandre Manette. O presidente lembrou-lhe
que, entretanto, havia contraído núpcias em Londres. Era verdade, mas não com
uma inglesa.
Com uma cidadã francesa? Sim. Por nascimento. Seu nome e família?
— Lucie Manette, única filha do doutor Manette, o bom médico aqui
presente.
Essa resposta produziu um efeito favorável na audiência. Brados de
exaltação do conhecido e bom médico encheram o salão. Tão caprichosamente
o povo se mobilizava que lágrimas imediatamente rolaram por inúmeras faces
ferozes que, momentos antes, haviam fitado o acusado como que impacientes
para levá-lo para a rua e matá-lo lá mesmo.
Nesses poucos passos de seu perigoso caminho, Charles Darnay se havia
portado de acordo com as reiteradas instruções do doutor Manette. O mesmo
cauteloso conselheiro guiava cada passo à sua frente, tendo preparado cada
centímetro da estrada.
O presidente perguntou por que ele havia retornado à França no momento
em que o fez, e não antes.
Ele não retornara antes, explicou, simplesmente por não dispor de meios
para viver na França, exceto aqueles a que havia renunciado. Enquanto na
Inglaterra, ele se mantinha ensinando a língua e a literatura francesas. Regressou
para atender a um pedido escrito de um cidadão francês, cuja vida a ausência
dele punha em risco. Diante disso, voltou para salvar a existência desse cidadão,
prestando depoimento a seu favor, a despeito do perigo pessoal a que se expunha.
Seria isso um crime aos olhos da República?
O populacho berrou com entusiasmo “Não!”, e o presidente tocou a sineta
para silenciá-lo. Mas não o conseguiu, pois continuou a gritar “Não!” até parar
por vontade própria.
O presidente indagou o nome do tal cidadão. O acusado explicou que o
cidadão era a primeira testemunha arrolada. Também se referiu com confiança
à carta do cidadão, que lhe fora tirada na barreira, mas que, sem dúvida, poderia
ser encontrada nos autos que o presidente tinha diante de si.
O doutor Manette havia providenciado para que estivesse ali, assegurara-lhe
que estaria, e, nesse estágio do julgamento, foi localizada e lida. O cidadão
Gabelle foi chamado para confirmar a história, e a confirmou. O cidadão
Gabelle insinuou, com infinita delicadeza e polidez, que, em virtude do excesso
de casos impostos ao tribunal pela multidão de inimigos da República, ele fora
ligeiramente esquecido na prisão de Abbaye; na verdade, havia desaparecido da
patriótica lembrança do tribunal, até três dias antes, quando fora conduzido a
julgamento e libertado, porque o júri se declarou satisfeito com o fato de a
acusação contra ele ter sido respondida com a prisão do cidadão Evrémonde,
chamado de Darnay.O doutor Manette foi interrogado em seguida. Sua grande popularidade e a
clareza de seu depoimento causaram grande impressão. Contudo, quando
afirmou que o acusado fora o seu primeiro amigo, ao sair do longo cativeiro, que
lhe permanecera sempre fiel e devotado, bem como à sua filha, e que, longe de
ser benquisto pelo governo aristocrata da Inglaterra, Charles Darnay fora
processado como inimigo da Grã-Bretanha e amigo dos Estados Unidos da
América, quando apresentou todos esses argumentos com a maior discrição e
com toda a retidão e força próprias da verdade e da honestidade, o júri e o
populacho tornaram-se um só no entusiasmo.
Por fim, quando ele apelou pelo nome de monsieur Lorry, um cavalheiro
inglês presente na corte, que, como ele, servira de testemunha naquele
julgamento na Inglaterra e que, portanto, poderia corroborar suas declarações, o
júri proclamou já ter ouvido o suficiente, estando pronto para votar, se o
presidente se dignasse ouvi-lo.
A cada voto (os jurados votaram em voz alta e individualmente), o
populacho rompia em estrepitosos aplausos. Todas as vozes se manifestaram em
favor do réu, e o presidente declarou-o livre.
Então, teve início uma dessas cenas extraordinárias com que a ralé às vezes
gratifica a própria volubilidade ou seus melhores impulsos de generosidade e
compaixão, ou o que encara como uma compensação para as atrocidades que
vinha praticando. Ninguém poderia dizer a qual desses motivos se devia cena tão
espantosa. É provável que uma combinação dos três, com predominância do
segundo. Nem bem a sentença foi pronunciada, as lágrimas correram tão
copiosas quanto o sangue em outras circunstâncias, e tantos abraços fraternais
foram dispensados ao prisioneiro por tantos homens e mulheres que, depois de
seu longo e penoso confinamento, ele se sentia a ponto de desmaiar de exaustão.
Principalmente porque sabia que aquela mesma turba, carregada por outra
correnteza, teria investido contra ele com a mesma sofreguidão para reduzi-lo a
pedaços que seriam espalhados pelas ruas.
Sua remoção, para abrir espaço para os outros acusados que ainda seriam
julgados, salvou-o das exageradas manifestações de carinho, por um momento.
Cinco prisioneiros iriam juntos a julgamento, em seguida, como inimigos da
República, posto que não a defenderam com palavras nem com atos. Tão ligeiro
foi o tribunal em compensar-se e à nação pela oportunidade perdida que, antes
que Darnay deixasse o recinto, esses cinco foram condenados a morrer em vinte
e quatro horas. O primeiro deles anunciou a ele a sentença com o sinal
empregado no cárcere para indicar a morte, um dedo levantado, e todos
acrescentaram, em palavras: “Longa vida à República!”[229].
Os cinco não tiveram, a bem da verdade, nenhuma platéia para prolongar os
debates, pois, quando Darnay cruzou o portão com o doutor Manette, encontrou
uma grande multidão na rua, na qual julgou reconhecer todos os rostos que vira
na corte, com exceção de dois, pelos quais procurou em vão. À sua saída,
tornaram a lançar-se sobre ele, soluçando, abraçando-o e gritando,
sucessivamente e também ao mesmo tempo, até que as próprias águas do rio,
em cuja mar-gem a cena insana era representada, pareceram enlouquecer
como o povo que ali se agitava.Puseram-no numa grande cadeira que haviam trazido, tirada, talvez, da
própria corte ou de alguma das salas ou corredores. Sobre ela haviam colocado
uma bandeira vermelha e, em seu espaldar, prenderam uma lança com um
barrete vermelho no topo. Carregado em triunfo nessa cadeira, nem mesmo as
súplicas do doutor Manette conseguiram evitar que os homens o sustentassem nos
ombros, com um revolto mar de barretes vermelhos ondulando ao seu redor, e
erguendo-se para perscrutar, sob a tempestade, aquelas faces terríveis, Darnay
mais de uma vez se perguntou se sua mente não estaria confusa, e se ele não
estaria na carroça a caminho da Guillotine.
Levaram-no numa procissão selvagemente irreal, abraçando todos os que
encontravam pela frente e apontando em sua direção. Avermelhando as ruas
brancas pela neve com a cor principal da República, estendendo-se
tortuosamente por entre elas, do mesmo modo como as haviam avermelhado
com um matiz mais profundo, eles o carregaram até o pátio do prédio onde
morava Lucie. Seu pai chegara antes, para prepará-la, e, quando o marido surgiu
diante dela, caiu desfalecida em seus braços.
Enquanto a estreitava contra o coração, tendo o cuidado de colocar-se entre
ela e a multidão e ocultando a linda cabeça da esposa para que não lhe vissem os
lábios colhendo as lágrimas que ele derramava, alguns indivíduos começaram a
dançar. Imediatamente, todos os demais começaram também a dançar, e o pátio
foi inundado pela Carmagnole. Então, ergueram na cadeira uma jovem da
multidão para que fosse carregada como a Deusa da Liberdade[230] e,
serpenteando pelas ruas adjacentes, ao longo da margem do rio e através da
ponte, a Carmagnole absorveu-os todos e levou-os embora.
Depois de apertar a mão do doutor, que se perfilava, vitorioso e orgulhoso;
depois de apertar a mão do senhor Lorry, que chegara ofegante e cansado da luta
contra o dilúvio da Carmagnole; depois de beijar a pequena Lucie, que foi
colocada no colo para que pudesse enlaçar-lhe o pescoço; depois de abraçar a
sempre zelosa e fiel senhorita Pross, que segurara a menina no colo; depois de
tudo isso, ele tomou a esposa nos braços e levou-a para seus aposentos.
— Lucie! Minha amada! Estou salvo.
— Oh, querido Charles, deixe-me agradecer essa dádiva a Deus de joelhos,
como fiz ao rezar por você.
Os dois, reverentemente, inclinaram a cabeça e o coração. Quando a teve
novamente nos braços, Darnay lhe disse:
— E agora, agradeça a seu pai, querida. Nenhum outro homem em toda a
França poderia ter feito mais por mim do que ele.
Lucie pousou a cabeça sobre o peito do pai, como este deitara a sua pobre
cabeça sobre o coração da filha havia muito, muito tempo. Ele estava feliz por
ter retribuído o bem que a filha lhe fizera, sentia-se compensado por todo o
sofrimento e orgulhoso da própria força.
— Você não deve ceder à fraqueza, minha querida — ele a advertiu. — Não
trema assim. Eu o salvei. VII. Uma Batida na Porta
CAPÍTULO VII
UMA BATIDA NA PORTA
“Eu o salvei!” Não era outro dos sonhos que Lucie tantas vezes tivera, nos quais
Charles voltava para casa. Ele estava realmente ali e, contudo, um medo vago,
mas profundo, afligia-a.
A atmosfera ao redor era tão densa e sombria, as pessoas mostravam-se tão
apaixonadamente vingativas e voluntariosas, tão freqüentemente executavam-se
inocentes em conseqüência de simples suspeitas e de um perverso rancor, era tão
difícil esquecer que muitos prisioneiros sem nenhuma culpa, como seu marido, e
tão queridos para os que os choravam como Charles para ela, todos os dias
partilhavam a triste sina de que ele acabara de escapar, que seu coração não
conseguia sentir-se aliviado como era de esperar. As sombras da tarde invernal
começavam a cair e mesmo agora as terríveis carroças mortuárias ainda
circulavam pelas ruas. Sua imaginação seguia-as, procurando pelo marido entre
os condenados. Então, aconchegava-se mais à sua presença real e tremia com
maior intensidade.
Animando-a, seu pai demonstrava diante de suas fraquezas de mulher uma
compassiva superioridade que era verdadeiramente admirável. Nada de sótão,
nem de sapateiro, tampouco de “cento e cinco, Torre Norte”, agora! Ele
realizara a tarefa que se havia imposto, cumprira sua promessa, salvara Charles.
Podiam todos apoiar-se nele.
A família vivia de modo frugal, não só porque esse estilo de vida oferecia
maior segurança, já que não constituía ofensa para o povo, como também
porque eles não eram ricos, e Charles, durante todo o tempo que passara na
prisão, tivera de pagar caro pela má alimentação recebida e pelos serviços do
carcereiro, além de ter de contribuir para o sustento dos prisioneiros sem
recursos. Em parte por essa razão e em parte para evitar espionagem dentro de
casa, não mantinham criados. O casal de cidadãos que guardava a porta do pátio
prestava-lhes serviços ocasionais, e Jerry (quase totalmente transferido para eles
pelo senhor Lorry) se tornara seu criado diário e lá dormia todas as noites.
Por ordem da República Una e Indivisível da Liberdade, Igualdade,
Fraternidade ou Morte, devia-se gravar nas portas de todas as casas o nome de
cada morador com letras bem traçadas e de determinado tamanho, numa altura
conveniente, para que pudessem ser lidas com facilidade[231]. Assim, pois, o
nome do senhor Jerry Cruncher adornava devidamente a porta da casa dos
Manette, embaixo dos outros. Enquanto as sombras da noite se adensavam, Jerry
acompanhava à porta um pintor que o doutor mandara bus-car para acrescentarà lista o nome do cidadão Charles Evrémonde, chamado de Darnay.
O medo e a desconfiança que obscureciam essa época haviam modificado
os mais inocentes hábitos. Na casa do médico, como em muitas outras, as
provisões de consumo diário eram adquiridas à noite, em pequenas quantidades e
em vários estabelecimentos modestos. O desejo de todos, naquela época, era não
atrair atenção e não provocar os falatórios nem a inveja de ninguém.
Nos últimos meses, os encarregados do abastecimento eram a senhorita
Pross e o senhor Cruncher. A primeira levava o dinheiro e o segundo, a cesta de
compras. Todas as tardes, mais ou menos na hora em que se acendiam os
lampiões, os dois saíam para cumprir esse dever, voltando com as mercadorias
estritamente necessárias. Embora a senhorita Pross, em virtude de sua longa
convivência com uma família francesa, devesse conhecer o idioma francês tão
bem quanto o seu próprio, se ela se tivesse empenhado nesse sentido, isso não
ocorria. Conseqüentemente, ignorava aquela “algaravia”, como gostava de dizer,
tanto quanto o senhor Cruncher. Assim, para fazer compras, ela arriscava um
substantivo qualquer e, quando este não designava o artigo desejado, procurava-
o, apoderava-se dele e não o soltava enquanto o negócio não estivesse concluído.
E sempre levantava um dedo menos do que o negociante, não importava o preço
que este lhe tivesse cobrado.
— Podemos ir, senhor Cruncher? — indagou a senhorita Pross, cujos olhos
estavam vermelhos de felicidade. — Por mim, estou pronta. Com sua voz rouca,
Jerry declarou estar às suas ordens. Havia muito tempo desaparecera a terra que
lhe manchara os dedos, mas nada pudera alisar-lhe os cabelos eriçados.
— Precisamos de uma infinidade de coisas — disse a senhorita Pross. —
Temos de comprar vinho, porque esses barretes vermelhos brindarão à nossa
saúde na taberna onde o adquirirmos.
— Acho, senhorita Pross — Jerry retrucou —, que lhe é indiferente que
brindem à sua saúde ou à do velho.
— Que velho, senhor Cruncher?
Jerry explicou, com certa timidez, que se referia ao “velho Belzebu”.
— Ah! — exclamou a senhorita Pross. — Não preciso de intérprete para
saber o que significam essas criaturas: assassinato e crueldade.
— Shhh! Imploro-lhe que tenha cuidado, minha querida! — rogou Lucie.
— Sim, sim, terei cuidado — replicou a senhorita Pross.
— Mas, aqui entre nós, confesso que espero não encontrar pelo caminho
essas bocas que cheiram a cebola e a fumo e vivem aos beijos por toda a parte.
E você, minha menina, não saia de junto da lareira. Cuide bem do marido que
lhe foi restituído e não tire sua linda cabecinha do ombro dele até eu voltar. Posso
fazer-lhe uma pergunta, doutor?
— Creio que pode tomar essa liberdade — assentiu o médico, sorrindo.
— Pelo amor de Deus, não me fale em liberdade. Já estamos saturados dela
— replicou a senhorita Pross.
— Shhh... querida, de novo? — repreendeu-a Lucie.
— Bem, minha menina — ripostou a senhorita Pross, sacudindo a cabeça
com veemência —, sou súdita de Sua Graciosa Majestade, o Rei Jorge III da
Inglaterra — fez uma reverência ao pronunciar o nome de seu soberano —, e,como tal, meu lema é: “Confunda-lhes a política, frustre-lhes os perversos
estratagemas, confie no Senhor e que Deus salve o Rei!”[232].
O senhor Cruncher, num acesso de lealdade, resmungou em eco as palavras
da senhorita Pross, como alguém numa igreja.
— Alegro-me por ver que o senhor é um bom súdito inglês, embora eu
preferisse que esse resfriado não lhe tivesse afetado a voz — a senhorita Pross
aprovou. — Agora, a minha pergunta, doutor Manette. Existe alguma — era uma
característica da excelente criatura afetar indiferença por tudo o que lhe
causasse grande ansiedade, abordando o assunto de modo casual —, existe
alguma perspectiva de partirmos logo desta cidade?
— Receio que não, por ora. Ainda seria perigoso para Charles.
— Ho, ho — murmurou a senhorita Pross, alegremente reprimindo um
suspiro ao lançar um olhar aos cabelos dourados de sua querida sob a luz do fogo.
— Então, devemos ter paciência e esperar. Ergueremos nossas cabeças e
enfrentaremos o inimigo, como meu irmão Solomon costumava dizer. Vamos,
senhor Cruncher! Não se mova, menina, não se mova.
Os dois saíram, deixando Lucie, o marido, o doutor e a menina junto do fogo
crepitante, à espera do senhor Lorry, que chegaria do banco a qualquer
momento. A senhorita Pross acendera a lâmpada, mas a colocara num canto
para que a família pudesse desfrutar a claridade da chama da lareira. A pequena
Lucie estava sentada ao lado do avô, agarrada ao seu braço, ouvindo a história
que ele narrava, em voz baixa, sobre uma poderosa fada que abrira a porta de
um cárcere para libertar um cativo que outrora lhe havia prestado um serviço.
Tudo estava tranqüilo e Lucie sentiase serenar aos poucos.
— O que foi isso? — perguntou, de repente.
— Minha filha — exclamou o médico, interrompendo a história e tomando-
lhe a mão —, controle-se. Como está nervosa! Assusta-se por qualquer coisa, por
nada! Justo você, sempre tão corajosa!
— Julguei, meu pai, ouvir passos na escada — Lucie desculpou-se, pálida e
com a voz trêmula.
— Querida, a escada está silenciosa como a morte.
Mal pronunciara essas palavras, bateram com força na porta.
— Oh, papai, papai. Quem será? Esconda Charles. Salve-o!
— Criança, eu já o salvei — replicou o médico, erguendo-se e pousando a
mão em seu ombro. — Que fraqueza é essa, hein? Deixe-me ver quem é.
Apanhou o castiçal, cruzou os dois quartos que precediam a sala e abriu a
porta. Ouviu-se um rumor surdo de passos no soalho e quatro homens rudes de
barretes vermelhos, armados de sabres e pistolas, entraram na sala onde se
encontravam Darnay e a esposa.
— Cidadão Evrémonde, chamado de Darnay? — inquiriu o primeiro.
— Quem procura o cidadão Evrémonde? — redargüiu Charles.
— Eu... nós o procuramos. Conheço-o, Evrémonde. Vi o esta manhã no
tribunal. Você é novamente prisioneiro da República.
Os quatro homens rodearam Charles, que fora abraçado pela mulher e pela
filha.
— Como e por que me prendem outra vez?— Acompanhe-nos de volta à Conciergerie e amanhã, durante o seu
julgamento, descobrirá.
O doutor Manette, a quem tão inesperada visita conferira uma imobilidade
pétrea, permanecendo de pé com o castiçal na mão como se fora uma estátua
cinzelada unicamente para servir-lhe de suporte, despertou do estupor e,
pousando a vela, confrontou o patriota. Segurou-o quase com gentileza pelo
colarinho da camisa de lã vermelha e inquiriu:
— Disse que conhece meu genro. E a mim, também conhece?
— Sim, eu o conheço, cidadão doutor.
— Todos nós o conhecemos, cidadão doutor — secundaram-no os outros
três. O doutor Manette olhava distraidamente de um para o outro, e, depois de
uma pausa, indagou em tom mais baixo:
— Então, respondam a mim a pergunta que ele formulou. Por que motivo o
prendem?
— Cidadão doutor — ripostou o primeiro, com relutância —, ele foi
denunciado ao distrito de Santo Antônio. Este cidadão — apontou para um de seus
companheiros —, que é do bairro, poderá informá-lo.
O cidadão indicado balançou a cabeça e confirmou:
— Foi acusado por Santo Antônio.
— Acusado de quê? — interpelou-o o médico.
— Cidadão doutor — redargüiu o primeiro, sempre hesitante —, não
pergunte mais. Se a república lhe exige sacrifícios, sem dúvida, como bom
patriota, deve submeter-se alegremente. A República antes de tudo. O povo é
soberano. Temos pressa, Evrémonde.
— Mais uma palavra — rogou o médico. — Quem o denunciou?
— Isso é contra a lei — ponderou o primeiro —, mas pergunte ao patriota de
Santo Antônio. O médico voltou os olhos para o homem, que se moveu, inquieto,
esfregou a barba e, por fim, respondeu:
— Bem! É verdade que é contra a lei. Mas ele foi denunciado... — a sua voz
assumiu um tom solene — pelo cidadão e pela cidadã Defarge. E por mais outra
pessoa.
— Que outra?
— O senhor quer saber, cidadão doutor?
— Sim.
— Pois bem — disse o morador de Santo Antônio, com um olhar estranho
—, descobrirá amanhã. Até lá, permanecerei mudo. VIII. Uma Partida de Cartas
CAPÍTULO VIII
UMA PARTIDA DE CARTAS
Na feliz inconsciência da nova calamidade que se abatia sobre a família, a
senhorita Pross seguiu seu caminho pelas estreitas ruas que conduziam ao Sena e
atravessou o rio pela Pont-Neuf[233], repassando na memória a quantidade de
artigos indispensáveis que ainda teria de comprar. O senhor Cruncher,
carregando a cesta, caminhava ao seu lado. Ambos olhavam à direita e à
esquerda, espreitando a maioria das lojas pelas quais passavam, preocupados em
se desviarem de aglomerações e evitando os grupos onde se falava com
demasiada animação. A noite estava fria e úmida, e, no rio nevoento, escondido
dos olhos pelo brilho das luzes e dos ouvidos pelo ruído de vozes ásperas,
destacava-se o lugar onde balançavam as barcaças nas quais os ferreiros
trabalhavam[234], fabricando armas para o exército da República. Infeliz do
homem que pregasse peças nesse exército[235], ou fosse promovido nele sem
merecimento! Melhor seria se jamais lhe nascesse a barba, pois a Navalha
Nacional se apressaria a cortá-la bem rente.
Tendo comprado alguns poucos gêneros da mercearia e azeite para o
lampião, a senhorita Pross lembrou-se do vinho que desejavam. Depois de entrar
em várias tabernas, deteve-se diante da tabuleta do “Brutus, o Bom Republicano
da Antiguidade”[236], não muito distante do Palácio Nacional, antigamente (e
novamente hoje) palácio das Tulherias[237], cujo aspecto dos artigos lhe
agradou bastante.
Sua atmosfera parecia mais tranqüila do que a de qualquer outra taberna e,
embora vermelha de barretes patrióticos, não era tão vermelha quanto as
demais. Tendo consultado Jerry, e encontrando-o partidário da mesma opinião, a
senhorita Pross entrou no estabelecimento de “Brutus, o Bom Republicano da
Antiguidade”, acompanhada por seu cavaleiro.
Sem fazerem caso dos candeeiros esfumaçados; dos homens de cachimbo
na boca que jogavam com cartas amassadas e dominós amarelados; do
trabalhador com o torso e os braços nus enegrecidos de fuligem que lia o jornal
em voz alta, daqueles que o ouviam; das armas que traziam das que deixavam de
lado para as apanharem de volta na saída; nem dos dois ou três fregueses que
dormiam, os quais, estendidos no chão e vestindo coletes felpudos muito
populares na época, mais pareciam cachorros ou ursos dormindo; os dois
fregueses estrangeiros aproximaram-se do balcão e indicaram o que desejavam.
Enquanto o taberneiro media o vinho, um homem despediu-se de outro, num
canto, e levantou-se a fim de ir embora. Para sair, ele tinha obrigatoriamente quepassar pela senhorita Pross. Ao fazê-lo, a senhorita Pross soltou um grito e bateu
com as mãos.
Num átimo, toda a freguesia se pôs de pé. Que alguém fora assassinado em
conseqüência de uma divergência de opinião era a hipótese que se lhes afigurava
a mais provável. Todos olharam em torno, procurando um corpo caído, mas
viram apenas um homem e uma mulher que se fitavam com expressão atônita.
O homem aparentava ser francês e republicano; a mulher, indubitavelmente
inglesa.
No desapontado anticlímax que se seguiu, as palavras proferidas pelos
discípulos de Brutus, o Bom Republicano da Antiguidade, embora pronunciadas
de modo bastante loquaz e audível, se proferidas em hebreu ou caldeu teriam
produzido o mesmo efeito na senhorita Pross e em seu escudeiro, mesmo que
estes lhes dessem ouvidos. Mas, em sua surpresa, nenhum dos dois tinha ouvidos
para nada mais. Pois, convém ressaltar, não foi apenas a senhorita Pross que se
deixou agitar pela perplexidade, mas o senhor Cruncher, conquanto mantivesse
uma atitude discreta de quem não mete o nariz onde não é chamado, estava
absolutamente espantado.
— Qual é o problema, minha senhora? — inquiriu o homem que provocara
o grito da senhorita Pross, num tom exasperado e abrupto embora baixo, e em
inglês.
— Oh, Solomon, querido Solomon! — exclamou a senhorita Pross, tornando
a bater as mãos. — Depois de tanto tempo sem vê-lo, sem receber notícias suas,
eu o encontro aqui!
— Não me chame de Solomon. Quer causar a minha morte? — perguntou o
homem de modo furtivo e amedrontado.
— Meu querido irmão! — bradou a senhorita Pross, rompendo em pranto.
— Terei eu sido tão dura com você para que me faça uma pergunta tão absurda?
— Então, segure essa sua língua inconveniente — replicou Solomon. — Se
deseja falar-me, é melhor sairmos daqui. Pague o vinho e venha comigo. Quem
é esse homem?
A senhorita Pross, balançando a cabeça na direção de seu adorado e nada
afetuoso irmão, respondeu por entre as lágrimas.
— É o senhor Cruncher. — Que venha conosco, também — volveu
Solomon. — Será que ele me toma por um fantasma? A julgar por sua expressão
assombrada, era assim que o senhor Cruncher o via. Contudo, ele não retrucou e
a senhorita Pross, com os olhos molhados, esquadrinhou com grande dificuldade
as profundezas de sua bolsa, em busca do dinheiro para pagar a conta. Enquanto
isso, Solomon, virando-se para os seguidores de Brutus, o Bom Republicano da
Antiguidade, ofertou-lhes algumas poucas palavras em francês para explicar o
incidente. Todos, então, retornaram a seus lugares e afazeres.
— Conte-me de uma vez — ordenou Solomon, detendose numa esquina
sombria — o que deseja.
— Como é cruel ser recebida assim por um irmão a quem sempre estimei
tanto! — queixou-se a senhorita Pross.
— Que diabo! — exclamou Solomon, tocando de leve os lábios da irmã com
os seus. — Está satisfeita, agora? A senhorita Pross apenas sacudiu a cabeça econtinuou a chorar silenciosamente.
— Se esperava que eu me mostrasse surpreso — declarou seu irmão
Solomon —, lamento decepcioná-la. Sabia que você estava em Paris; conheço
quase todos os habitantes desta cidade. Se você realmente não quer pôr a minha
existência em risco, como me sinto tentado a crer, siga logo o seu caminho, cuide
dos seus negócios e deixe que eu cuide dos meus. Não tenho tempo a perder. Sou
um empregado público.
— Solomon, meu irmão inglês — gemeu a senhorita Pross, erguendo os
olhos banhados de lágrimas —, que podia estar entre os melhores e mais
distinguidos homens de sua pátria, tornou-se um empregado desses estrangeiros,
e que estrangeiros! Eu quase preferia ver seu querido corpo morto a...
— Eu não disse?! — bradou o irmão, interrompendo-a.
— Eu sabia! Você quer a minha morte. Serei acusado como Suspeito por
minha própria irmã. Justo agora que tudo ia tão bem...
— Que o bom Deus não o permita! — ripostou a senhorita Pross. — Prefiro
jamais tornar a vê-lo, querido Solomon, embora eu o ame com todo o meu
coração. Basta uma única palavra de carinho que me convença de que você não
está zangado comigo, que não há nenhuma estranheza entre nós, e eu irei
embora.
Bondosa senhorita Pross! Como se a estranheza entre ambos existisse por
culpa dela. Como se o senhor Lorry não houvesse descoberto anos antes, naquela
tranqüila casa do Soho, que aquele precioso irmão a havia abandonado depois de
ter gastado todo o seu dinheiro!
Contudo, Solomon concedia à irmã a palavra de carinho que esta lhe pedira,
com a postura condescendente e protetora que teria assumido se seus méritos e
posições se invertessem, inversão que ocorre invariavelmente neste mundo,
quando o senhor Cruncher, tocando-lhe no ombro, rouca e inesperadamente
interveio com esta singular questão:
— Ora, posso fazer-lhe uma pergunta? Como devo chamá-lo: John Solomon
ou Solomon John? O funcionário voltou-se em sua direção com súbita
desconfiança.
— Ora, vamos! — prosseguiu o senhor Cruncher. — Seja franco — instou,
embora ele próprio não pudesse abusar da franqueza. — John Solomon ou
Solomon John? Ela o chama de Solomon e deve saber o seu nome, pois é sua
irmã. Mas eu o conheço como John. Qual dos dois vem primeiro? Quanto ao
sobrenome Pross, não me consta que o usasse do outro lado do canal.
— O que quer dizer?
— Bem, eu não sei tudo o que quero dizer, pois não consigo lembrar qual era
o seu sobrenome do outro lado do canal.
— Não?
— Não. Contudo, poderia jurar que era um nome de duas sílabas.
— É mesmo?
— É, sim. Eu o conheço. O senhor era o espião que testemunhou em Old
Bailey. Como, em nome do Pai das Mentiras[238], portanto, o seu pai, era seu
nome, naquela época?
— Barsad — respondeu uma outra voz, acercando-se do grupo.— Com mil diabos, era este o nome! — bradou Jerry.
O homem que se intrometera na conversa era Sydney Carton. Com as mãos
cruzadas nas costas, parou diante do senhor Cruncher com o mesmo ar
negligente que demonstrava em Old Bailey.
— Não se assuste, minha cara senhorita Pross. Cheguei ontem à tarde, fiz
uma surpresa ao senhor Lorry e concordamos que eu não apareceria em parte
alguma até que tudo se resolvesse, a menos que eu pudesse ser útil. Resolvi
aproximar-me porque preciso falar com seu irmão. Gostaria, senhorita Pross,
que tivesse um irmão com uma profissão mais digna do que a do senhor Barsad.
Pelo seu bem, preferiria que o senhor Barsad não fosse um “carneiro” das
prisões.[239]
“Carneiro” era uma gíria da época que significava “espião” dos carcereiros.
O espião, que era pálido, ficou ainda mais pálido e inquiriu-lhe como ousava...
— Eu lhe direi — atalhou-o Sydney. — Vi-o há pouco, senhor Barsad, saindo
da Conciergerie, num momento em que eu contemplava as paredes do cárcere,
há cerca de uma hora. O senhor tem uma fisionomia marcante e eu sou um bom
fisionomista. Intrigado por encontrá-lo ali, e tendo razões que o senhor não
desconhece para associá-lo com os infortúnios de um amigo meu, agora muito
desafortunado, resolvi segui-lo. Entrei na taberna, bem atrás do senhor, e sentei-
me ao seu lado. Não tive dificuldade em deduzir das suas palavras e dos elogios
dos seus admiradores quais eram as suas relações com os cárceres. E, aos
poucos, essa dedução tomou a forma de uma proposta, senhor Barsad.
— Que proposta? — o espião indagou.
— Seria problemático, e talvez perigoso, explicar-lhe aqui. Poderia ter a
bondade de conceder-me alguns minutos do seu tempo... no escritório do Banco
Tellson, por exemplo?
— Sob que ameaça?
— Oh! Eu o ameacei?
— Se não ameaçou, por que motivo eu iria lá?
— Com efeito, senhor Barsad. Se o senhor não sabe por quê, não sou em
quem lhe dirá.
— Quer dizer que outra pessoa me diria? — o espião inquiriu, indeciso.
— Compreendeu-me com muita clareza, senhor Barsad. Eu teria de contar
a outra pessoa o que sei. O negligente atrevimento de Carton somou-se à sua
habilidade para a consecução do propósito que tinha em mente e para lidar com
o homem que servia a seus objetivos. Sua perspicácia percebeu a oportunidade e
aproveitou-a ao máximo.
— Eu a avisei — censurou o espião, lançando um olhar de reprovação à
irmã. — Se alguma coisa me acontecer, a culpa será sua.
— Vamos, vamos, senhor Barsad! — exclamou Carton.
— Não seja ingrato. Não fosse meu grande respeito por sua irmã, eu não
me contentaria em delicadamente fazer-lhe uma simples proposta para nossa
satisfação mútua. Virá comigo ao Tellson?
— Ouvirei o que tem a me propor. Sim, irei com o senhor.
— Sugiro que primeiro acompanhemos sua irmã até a esquina da rua onde
mora. Aceite o meu braço, senhorita Pross. Esta não é mais uma cidade segurapara quem anda por aí sem proteção. E como o seu acompanhante conhece o
senhor Barsad, eu o convidarei para ir conosco ao escritório do senhor Lorry.
Todos prontos? Então, vamos.
Até o fim de sua vida, a senhorita Pross recordaria que, ao pousar a mão no
braço de Sydney e fitar-lhe a face, implorando-lhe para não prejudicar
Solomon, percebeu uma corajosa determinação naquele braço e uma generosa
inspiração em seus olhos, as quais não só contradiziam sua habitual negligência
mas também o transformavam e elevavam como ser humano. Naquele
momento, porém, ela estava demasiado ocupada com os temores relativos ao
irmão, que tão pouco merecia o seu afeto, e com as palavras tranqüilizadoras de
Sydney, para atentar na observação.
Eles a deixaram na esquina de sua casa e Carton conduziu os outros dois ao
escritório do senhor Lorry, que ficava a poucos minutos de caminhada. John
Barsad, ou Solomon Pross, andava a seu lado.
O senhor Lorry tinha acabado de jantar e estava sentado diante da lareira,
talvez procurando nas chamas crepitantes o retrato daquele funcionário do
Tellson (menos velho, na época) que se sentara junto à lareira no Royal George,
em Dover, havia tantos anos. Ouvindo abrir a porta, voltou a cabeça e manifestou
surpresa ao ver o estranho.
— É o irmão da senhorita Pross, senhor — explicou Sydney. — Senhor John
Barsad.
— Barsad? — repetiu o idoso cavalheiro. — Barsad? Esse nome lembra-me
alguma coisa... e o rosto...
— Eu lhe disse que o senhor possui uma fisionomia marcante, senhor Barsad
— observou Carton, com frieza. — Peço-lhe que se sente. Ao acomodar-se
também numa cadeira, ele supriu a lacuna na memória do senhor Lorry,
revelando-lhe, com a testa franzida:
— Figurou como testemunha naquele processo de traição. O senhor Lorry
recordou-se imediatamente e olhou para Barsad com ostensiva repugnância.
— O senhor Barsad foi reconhecido pela senhorita Pross como o querido
irmão de quem tanto nos falava — prosseguiu Sydney — e admitiu o parentesco.
Agora, porém, tenho uma péssima notícia para lhe dar: Darnay foi preso outra
vez. Consternado, o idoso cavalheiro exclamou:
— Que diz?! Deixei-o seguro e livre há duas horas, e estava prestes a voltar
à sua casa!
— Pois prenderam-no. A que horas isso aconteceu, Barsad?
— Agora há pouco.
— O senhor Barsad é a melhor autoridade possível sobre o assunto, senhor
— comentou Sydney. — Tomei conhecimento da prisão ao ouvir-lhe a conversa
com um colega “carneiro”, diante de uma garrafa de vinho. Ele deixara na porta
os quatro homens encarregados de levar Darnay. Viraos entrar. Portanto, não
pode haver nenhuma dúvida.
O olhar experiente do senhor Lorry leu no rosto de Sydney que seria perda
de tempo discutir o fato. Confuso, mas ciente de que a situação exigiria sua
presença de espírito, controlou-se, permanecendo silenciosamente atento.
— Eu acredito — ponderou Sydney — que o nome e a influência do doutorManette produzirão amanhã o mesmo efeito de hoje... o senhor afirmou que
amanhã ele comparecerá novamente perante o tribunal, senhor Barsad?
— Sim. Creio que comparecerá amanhã.
— Espero que a influência do doutor produza o mesmo efeito. Contudo, é
possível que se dê justamente o contrário. Confesso-lhe, senhor Lorry, que me
espanta saber que o doutor Manette não teve o poder de impedir essa prisão.
— É provável que de nada soubesse — respondeu o senhor Lorry.
— Mas é essa circunstância que me assusta. Por que não o preveniram, se
todos sabem que Darnay é genro dele?
— É verdade — concordou o senhor Lorry, segurando o queixo com a mão
trêmula e pousando os olhos preocupados em Carton.
— Em suma — disse Carton —, esta é uma época de desespero, em que
partidas desesperadas são jogadas por desesperadas apostas. Que o doutor jogue
para ganhar; a mim, resta a posição de perdedor. Aqui, a vida de nenhum
homem tem valor. Qualquer um carregado para casa em triunfo hoje poderá ser
condenado amanhã. Minha aposta no jogo, na pior das hipóteses, é um amigo na
Conciergerie. E esse amigo que pretendo ganhar é John Barsad.
— O senhor precisará de boas cartas para ganhar essa partida — retrucou o
espião.
— Joguemos, pois. Já conhece os trunfos que tenho na mão... senhor Lorry,
não ignora que sou um beberrão. Ficaria grato se me pudesse oferecer um pouco
de conhaque. O conhaque foi colocado à sua frente, e ele bebeu um copo, depois
outro, e afastou a garrafa, com ar pensativo.
— Senhor Barsad — continuou com o tom de quem realmente examina as
cartas —, “carneiro” das prisões, emissário dos comitês da República, algumas
vezes carcereiro, outras vezes prisioneiro, sempre espião e delator, tão mais
valioso aqui por ser inglês, já que um inglês é menos passível de suspeita de
suborno, no desempenho desses papéis, do que um francês, mas apresenta-se a
seus patrões com um nome falso. Esta é uma carta muito boa. Senhor Barsad,
agora empregado do governo republicano francês, antigamente era empregado
do governo aristocrático inglês, inimigo da França e da liberdade. Esta é uma
carta excelente. Uma dedução tão clara como o dia, nesta terra de suspeitas, é a
de que o senhor Barsad, ainda sob o pagamento do governo aristocrático inglês, é
o espião de Pitt, o traiçoeiro inimigo que a República alimenta em seu seio, o
traidor inglês causador de todos os danos de que tanto falam e que é tão difícil de
localizar. Esse é um trunfo imbatível. Seguiu bem o meu jogo, senhor Barsad?
— Não a ponto de entender a sua jogada — retrucou o espião, um tanto
inquieto.
— É simples: joguei o meu ás: denúncia do senhor Barsad à seção do comitê
mais próxima. Examine a sua mão, senhor Barsad, e verifique de que cartas
dispõe. Não se apresse.
Ele apanhou a garrafa, encheu outro copo com conhaque e bebeu-o.
Percebeu que o espião temia que ele se embriagasse e fosse denunciá-lo
imediatamente. Percebendo isso, encheu e bebeu outro copo.
— Examine as suas cartas, senhor Barsad, e não tenha pressa.
As cartas de seu adversário eram mais pobres do que imaginava. O senhorBarsad viu jogadas perdidas das quais Carton nada sabia. Afastado de seu
honroso emprego na Inglaterra, em razão de extremamente malsucedidos
depoimentos no tribunal e não porque não o quisessem lá: nossos britânicos
motivos para proclamarmos nossa superioridade em termos de espionagem e
espiões são muito recentes, atravessara o Canal e aceitara serviço na França:
primeiro, como provocador e bisbilhoteiro entre seus próprios compatriotas,
depois, gradualmente, como provocador e bisbilhoteiro entre os nativos. Sob o
governo destituído, ele fora o espião destacado para Santo Antônio e para a
taberna de Defarge. Havia recebido da vigilante polícia informações acerca da
prisão e da libertação do doutor Manette, que lhe serviriam de introdução para
uma conversa mais familiar com os Defarge. Tentou sondar o casal,
concentrando-se em madame Defarge, e fracassara rotundamente. Estremecia
de medo sempre que se lembrava de que aquela terrível mulher tricotara
incessantemente quando conversou com ela, fitando-o com uma expressão
lúgubre enquanto movia os dedos. Ele a tinha visto muitas vezes desde então, na
seção de Santo Antônio, sempre e sempre tricotando seus registros, denunciando
pessoas cujas vidas a guilhotina então ceifou. Sabia, assim como todos os que
exerciam a mesma função, que nunca estava seguro e que era impossível fugir.
Sobre ele pairava a sombra do machado e, a despeito de seus subterfúgios e de
sua traição por aderir ao terror reinante, bastaria uma palavra para que esse lhe
cortasse a cabeça. Uma vez denunciado, e considerando todas as graves
lembranças que agora lhe acudiam à mente, previa que aquela mulher terrível,
de cujo caráter implacável tivera provas suficientes, apresentaria aquele registro
fatal contra ele, mandando-o com toda a certeza para a morte. Afora o fato de
que todos os espiões se amedrontam facilmente, tinha de admitir que havia no
seu jogo cartas numa seqüência suficientemente sinistra para justificar a palidez
repentina que se espalhou em seu rosto.
— Parece-me que não está muito contente com as suas cartas — observou
Sydney, com extrema serenidade. — Não vai jogar?
— Creio, senhor — disse o espião, com ar torpe, voltando-se para o senhor
Lorry —, que posso apelar a um cavalheiro com a sua idade e benevolência para
suplicar-lhe que pergunte a este outro cavalheiro, muito mais jovem do que o
senhor, se ele pode, sob quaisquer circunstâncias, conciliar com a posição que
ocupa a decisão de jogar o ás de que falava há pouco. Reconheço que eu sou um
espião, e que essa posição é muito malvista, embora alguém tenha de ocupála.
Mas este cavalheiro não é espião. Por que, então, haveria de se desmerecer
atuando como um de nós?
— Eu jogarei o meu ás, senhor Barsad — replicou Carton, que tomou a si
responder, consultando o relógio —, dentro de poucos minutos.
— Eu esperava, meus caros senhores — argumentou o espião, sempre se
esforçando para incluir o senhor Lorry na discussão —, que a consideração de
ambos por minha irmã...
— Eu não poderia demonstrar melhor o meu respeito por sua irmã do que
livrando-a por fim do seu irmão — atalhou-o Sydney Carton.
— Pensa assim, senhor?
— Estou absolutamente convencido disso.Os modos gentis do espião, curiosamente em dissonância com a ostensiva
rudeza de seus trajes e provavelmente com as suas maneiras habituais, foram
acolhidos com tal repulsa pelo inescrutável Carton, o qual era um mistério até
mesmo para homens mais sábios e honestos do que ele, que acabaram por
fraquejar, abandonando-o. Enquanto, perdido e confuso, ele se mantinha calado,
Carton prosseguiu, retomando o ar de quem segurava cartas na mão e as
contemplava:
— Ora, ora, tenho a forte impressão de ter aqui outra carta excelente, que
ainda não havia jogado. Quem era aquele seu colega “carneiro” que se gabava
de pastar nas prisões das províncias?
— Era um francês. O senhor não o conhece — o espião apressou-se a
responder.
— Francês, é? — ecoou Carton, refletindo, aparentando não se lembrar da
presença dele, embora tivesse repetido sua palavra. — Bem, talvez o seja.
— É, sim, eu lhe asseguro — retrucou o espião. — Embora isso não venha
ao caso.
— Embora isso não venha ao caso — repetiu Carton, no mesmo tom
maquinal. — Embora não venha ao caso... não, não vem ao caso. Não. Contudo,
conheço aquele rosto.
— Julgo que não. Estou certo que não. Não pode ser — o espião contrapôs.
— Não... pode... ser — murmurou Carton, tornando a encher o copo
(felizmente, era um copo pequeno). — Não pode... ser... Ele fala bem o francês,
mas como um estrangeiro.
— Não, como um camponês.
— Como um estrangeiro! — bradou Carton, batendo na mesa com a mão
espalmada, enquanto uma luz se acendia em sua mente. — É Cly! Disfarçado,
mas é ele. Estava conosco no tribunal de Old Bailey!
— Não se precipite, meu caro senhor — retorquiu Barsad, com um sorriso
que aumentou a inclinação de seu nariz aquilino para um dos lados —, ou me
deixará em posição de vantagem. Cly (que agora admito abertamente ter sido
meu sócio) morreu há vários anos. Estive ao seu lado nos seus últimos momentos.
Foi enterrado em Londres, no cemitério de São Pancrácio dos Campos. A
impopularidade dele junto à turba no dia do enterro impediu-me de acompanhá-
lo à última morada. Mas eu ajudei a colocá-lo no caixão.
Aqui, o senhor Lorry apercebeu-se, do lugar onde estava, de uma sombra
fantástica na parede. Procurando encontrar-lhe a fonte, descobriu que se tratava
da sombra dos cabelos do senhor Cruncher, que estavam mais eriçados do que
nunca.
— Sejamos razoáveis e justos — ponderou o espião. — Para demonstrar-lhe
seu equívoco e o quanto é infundada a sua afirmação, eu lhe apresentarei o
certificado de óbito de Cly, que, por acaso, trago aqui em meu bolso — com
gestos apressados, apanhou o documento e exibiu-o. — Ei-lo aqui. Oh, veja-o,
veja-o. Pode segurá-lo, não é uma falsificação.
O senhor Lorry notou que a sombra alongara-se mais e mais na parede. O
senhor Cruncher, então, levantou-se e caminhou alguns passos. Não teria o
cabelo mais violentamente eriçado se, naquele instante, o houvesse penteado avaca de chifre enrolado na casa que Jack construiu[240].
Sem ser visto pelo espião, o senhor Cruncher postou-se ao seu lado e tocou-
lhe no braço de leve, como um mordomo.
— Esse tal de Roger Cly — disse o senhor Cruncher, com ar taciturno e
rígido — foi o senhor quem o colocou no caixão?
— Sim, fui eu.
— Quem o tirou de lá? Barsad encostou-se no espaldar da cadeira e
gaguejou:
— O... que quer di... dizer?
— Quero dizer — ripostou o senhor Cruncher — que Roger Cly não estava
no caixão. Nunca esteve. Que me cortem a cabeça, se não digo a verdade.
O espião olhou para os dois cavalheiros. Ambos fitavam Jerry com
indescritível espanto.
— Eu lhe afirmo — continuou Jerry — que o senhor enterrou pedras e terra
naquele caixão. Não tente convencer a mim que enterrou Cly. Foi uma farsa. Eu
e mais dois homens sabemos disso.
— Como sabem?
— Que lhe importa isso? Por Deus! — resmungou o senhor Cruncher. —
Então é do senhor que eu há muito tempo tenho raiva, o senhor, com suas
vergonhosas trapaças para enganar honrados negociantes. Eu o estrangularia
com prazer por meio guinéu.
Sydney Carton, que, como o senhor Lorry, ficara atônito com o que ouvira,
rogou ao senhor Cruncher que se acalmasse e se explicasse.
— Em outra ocasião, senhor — ele respondeu em tom evasivo. — O
momento não é lá muito conveniente para explicações. Mas afirmo que esse
homem sabe muito bem que Cly nunca esteve naquele caixão. Ele que se atreva
a sustentar o contrário, com uma palavra, uma sílaba que seja, e o estrangulo por
meio guinéu. — O senhor Cruncher insistia nesse ponto como se fizesse uma
oferta das mais liberais. — Ou então eu o denuncio imediatamente.
— Hum! Vejo que — comentou Carton — a minha carta é boa, senhor
Barsad. É impossível para o senhor, nesta furiosa cidade onde a suspeita paira no
ar, sobreviver à denúncia, pois que mantém contato com um espião de um
governo aristocrático que possui os mesmos antecedentes que o senhor, e que,
além de tudo, está envolvido no mistério de ter morrido e ressuscitado! Uma
conspiração nas prisões, promovida pelo estrangeiro contra a República. Uma
carta bastante forte... carta de uma certa guilhotina! Vai jogar?
— Não! — exclamou o espião. — Eu entrego os pontos. Confesso que nós
éramos tão impopulares junto àquela ultrajante turba que eu só consegui fugir da
Inglaterra sob risco de morrer afogado, e que Cly foi tão investigado por toda a
parte que ele jamais teria escapado se não fosse por essa farsa. Agora, como
esse homem tenha descoberto a farsa é o maior de todos os enigmas, para mim.
— Não se preocupem mais com esse velhaco — retorquiu o belicoso senhor
Cruncher. — Com certeza se aborrecerão se derem mais atenção a esse
“cavalheiro”. E repito! — o senhor Cruncher não pôde deixar de dar uma nova e
generosa prova de sua liberalidade —: eu o estrangulo e corto em pedaços por
meio guinéu.O “carneiro” das prisões virou-se para Carton e declarou com ar decidido:
— Não posso perder mais tempo. Logo entrarei em serviço, portanto tenho
de partir. O senhor mencionou uma proposta. Que proposta é essa? Só lhe previno
que é inútil exigir muito de mim. Se pedir que eu faça alguma coisa que tenha
relação com o meu emprego, colocando a minha cabeça em grande perigo,
prefiro confiar a minha vida aos acasos de uma recusa aos de um consentimento.
Falou há pouco em desespero. Estamos todos desesperados aqui. Lembre-se!
Também posso denunciá-lo, jurar o que quiser, e outros podem fazer o mesmo.
O que quer de mim?
— Não muito. É carcereiro na Conciergerie?
— Vou-lhe dizer de uma vez por todas: não existe fuga possível — declarou
o espião, com firmeza.
— Por que me responde o que não perguntei? O senhor é carcereiro na
Conciergerie?
— Às vezes.
— Pode sê-lo sempre que o desejar?
— Posso entrar no cárcere sempre que desejar.
Sydney Carton encheu outro copo com conhaque, derramou-o lentamente
na lareira e observou enquanto o líquido caía. Ao cair a última gota, disse,
erguendo-se:
— Até aqui, nós conversamos na presença deles, porque o mérito das cartas
não devia ser julgado apenas por nós dois. Passemos agora àquele quarto escuro,
onde terminaremos nossa conversa a sós. IX. Feito o Jogo
CAPÍTULO IX
FEITO O JOGO
Enquanto Sydney Carton e o “carneiro” das prisões estavam no quarto vizinho,
falando tão baixo que não se ouvia um único som, o senhor Lorry olhava para
Jerry com profunda dúvida e suspeita. A maneira de o honrado negociante
receber aquele olhar não inspirava confiança; ora descansava numa perna, ora
noutra, como se tivesse cinqüenta pernas e as estivesse experimentando todas;
examinava as unhas com uma questionável atenção, e, sempre que os olhos do
senhor Lorry encontravam os dele, era tomado por aquela espécie peculiar de
pigarro que obriga sempre a pôr a palma da mão diante da boca, o que
raramente, se é que alguma vez, é visto como um indício de uma perfeita
lhaneza de caráter.
— Jerry — chamou o senhor Lorry —, venha aqui.
O senhor Cruncher aproximou-se de través, com um dos ombros chegando
na frente.
— O que mais você foi, além de mensageiro?
Depois de alguma reflexão, acompanhada de um olhar preocupado ao seu
patrão, o senhor Cruncher concebeu a idéia luminosa de responder:
— Agricultor.
— Muitas razões me levam a pensar — disse o senhor Lorry, brandindo
raivosamente um dedo em sua direção — que você usou o nome respeitável da
casa Tellson como anteparo, e que você tem uma ocupação ilegal e infame. Se
isso for verdade, não espere que eu o ajude quando voltarmos à Inglaterra,
tampouco que eu guarde o seu segredo. Não permitirei que abuse do Tellson.
— Espero, senhor — suplicou o envergonhado senhor Cruncher —, que um
cavalheiro da sua estirpe, a quem tenho a honra de servir há tanto tempo que
meus cabelos ficaram grisalhos, pensará duas vezes antes de me prejudicar,
ainda que isso fosse verdade... não digo que o seja, mas mesmo que o fosse. E há
que se levar em conta que, se fosse verdade, a culpa não caberia apenas a um
dos lados. Há que se considerar os dois lados. Deve haver médicos, neste
momento, embolsando guinéus quando um honrado comerciante só recebe um
vintém, um vintém! não, nem mesmo meio vintém, meio vintém! Não, nem
mesmo um quarto de vintém, o dinheiro deles desaparece no ar como fumaça,
em depósitos no Tellson, e ainda piscam seus olhos doutorais para o pobre
negociante que está do lado de fora da porta; e eles entram em suas carruagens e
saem delas, ah! também como fumaça, mais parecidos, até! Isso também é
abusar do Tellson. E há ainda a senhora Cruncher, que tem idéias do tempo daVelha Inglaterra e reza tanto contra o sucesso dos meus negócios que me está
arruinando, arruinando! Enquanto isso, as esposas dos doutores médicos rezam
em favor das doenças, para que nunca faltem pacientes para seus maridos, e o
senhor vem culpar a mim, só a mim? E o que me diz dos agentes funerários, dos
sacristãos, dos coveiros, dos vigias particulares (todos metidos nisso, e todos tão
avarentos)? Um homem não ganharia muito nesse ofício, mesmo que fosse
verdade. E o pouco que ganhasse não o faria prosperar, senhor Lorry. Estaria
sempre muito longe da riqueza e abandonaria o negócio com alívio se tivesse
outro meio de ganhar a vida, se fosse verdade, senhor.
— Arre! — exclamou o senhor Lorry, embora um tanto compadecido. —
Estou chocado com você.
— O que eu humildemente lhe suplico, senhor — prosseguiu o senhor
Cruncher —, mesmo se fosse verdade, o que não é o caso...
— Não me venha com mentiras — interrompeu-o o senhor Lorry.
— Não, senhor, eu não o faria — volveu o senhor Cruncher, como se nada
estivesse mais distante de suas intenções do que aquela. — O que lhe quero pedir
é... o que eu humildemente gostaria de rogar-lhe, senhor, é o seguinte. Lá, num
tamborete na porta do Tellson, senta-se também um menino, meu filho, que estou
criando para um dia ser um homem de bem, um bom mensageiro para o Tellson,
para o senhor, para prestar-lhe serviços gerais, cumprindo-lhe à risca todas as
ordens. Se fosse verdade, senhor, o que eu ainda não digo que seja (embora eu
não pretenda mentir para o senhor), eu lhe suplicaria que permitisse que o
menino continuasse no lugar do pai, para poder sustentar a mãe. Não o castigue
pelas faltas de seu pai, por favor não faça isso, senhor, e mande esse pai
trabalhar como coveiro, enterrando os mortos como uma forma de
compensação pelos mortos que desenterrou, se fosse verdade, claro. Isso, senhor
Lorry — disse o senhor Cruncher, enxugando a testa com o braço, como se
anunciasse ter chegado à peroração de seu discurso —, é o que humildemente
gostaria de rogar-lhe. Um homem não pode ver tudo o que acontece por aqui,
tantos corpos sem cabeça, Deus do céu, tantos que o preço não vale o custo do
transporte, sem refletir seriamente a respeito das coisas. E esta seria, pois, a
minha súplica, se fosse verdade. E lhe pediria, também, para lembrar que eu
contei tudo, quando poderia ter permanecido calado.
— Isso, ao menos, é verdade — replicou o senhor Lorry.
— Não diga mais nada, por ora. Pode ser que eu continue seu amigo, se
você merecer, e demonstrar arrependimento por meio de atos, não de palavras.
Já basta de palavras.
O senhor Cruncher batia com a mão na testa quando Sydney Carton e o
espião retornaram do quarto escuro. — Adieu, senhor Barsad — despediu-se o
primeiro. — Nosso acordo está celebrado, nada deve temer de minha parte. Ele
sentou-se junto à lareira, ao lado do senhor Lorry. Quando ficaram a sós, este
perguntou-lhe o que conseguira.
— Pouca coisa. Se o pior acontecer a Darnay, terei acesso ao calabouço. O
semblante do senhor Lorry ensombreou-se.
Foi tudo o que pude fazer — disse Carton. — Exigir demais seria pôr a
cabeça desse homem sob a guilhotina e, como ele próprio ressaltou, seria omesmo que denunciá-lo. Esse era obviamente o ponto fraco da situação. Não há
como evitá-lo.
Mas, acesso ao calabouço — argumentou o senhor Lorry —, se o pior
ocorrer no tribunal, não o salvará.
— Jamais afirmei que o salvaria.
Os olhos do senhor Lorry gradualmente buscaram as chamas. A
solidariedade para com a querida Lucie e o profundo desapontamento causado
pela segunda prisão pouco a pouco lhes apagaram o brilho. Ele era agora apenas
um velho, subjugado pela tristeza e pela ansiedade. De seus olhos opacos
deslizaram lágrimas amarguradas.
— O senhor é um bom homem e um verdadeiro amigo
— declarou Carton, com a voz alterada. — Perdoe-me se percebo a sua
comoção. Eu não podia presenciar o sofrimento de meu pai sem me abalar. E
não respeitaria mais a sua dor se o senhor fosse meu pai. Felizmente, o senhor
está livre do infortúnio de me ter como filho.
Conquanto pronunciasse as últimas palavras com seu modo habitual, havia
um sentimento e um respeito genuínos tanto no tom quanto no estilo, para os quais
o senhor Lorry, que não conhecia o lado melhor de Carton, não estava preparado.
Estendeu-lhe a mão e Carton gentilmente apertou-a.
— Mas, voltando ao pobre Darnay — prosseguiu Carton —, não conte nada
à esposa dele sobre essa entrevista, ou sobre esse arranjo. Isso não lhe
possibilitaria ir vê-lo. Ela poderia imaginar que se trata de um plano para, se o
pior acontecer, fornecer a Darnay meios de antecipar a execução da sentença.
O senhor Lorry, que não havia considerado essa possibilidade, lançou um
olhar a Carton para verificar se tal idéia não estaria de fato em sua mente.
Pareceu-lhe que sim. Carton retribuiu o olhar, cuja intenção ele evidentemente
compreendera.
— Ela seria capaz de imaginar uma centena de coisas — ele continuou —, e
todas só serviriam para aumentar-lhe a aflição. Não lhe fale sobre mim. Como o
adverti assim que cheguei, é melhor que eu não a veja. Posso oferecer-me para
prestar toda a ajuda que estiver ao meu alcance sem que, para isso, precise vê-
la. Vai visitá-la agora, espero? Ela deve estar especialmente desolada, esta noite.
— Sim, irei lá em seguida.
— Fico feliz. Ela é tão ligada ao senhor, conta tanto com o seu apoio. Como
está ela?
— Ansiosa e infeliz. Mas muito bonita.
— Ah!
Aquele foi um longo, pesaroso som, que ressoou como um suspiro, quase
um soluço. E atraiu o olhar do senhor Lorry para o rosto de Carton, que se voltou
para o fogo. Um brilho, ou uma sombra (o velho cavalheiro não saberia dizer
qual), perpassou por aquele rosto de forma tão efêmera como uma ligeira
mudança de luminosidade sobre o alto de uma montanha num dia de sol ardente.
Ele estendeu o pé para empurrar um pequeno tição que caíra. Trajava um
sobrecasaca branca e botas de cano alto, então em voga, e a luz bruxuleante da
lareira, ao tocar a superfície clara do tecido e das botas, fazia-o parecer ainda
mais pálido, com seus longos cabelos castanhos, desguarnecidos[241], pendendosoltos sobre a fronte. Sua indiferença pelas chamas era perceptível o bastante
para provocar uma palavra de advertência por parte do senhor Lorry. Sua bota
ainda pisava na lenha incandescente que havia saltado para o chão.
— Não havia dado por isso — ele replicou.
Os olhos do senhor Lorry foram novamente atraídos para o rosto de Carton.
Reparando no ar fanado que lhe obscurecia as feições naturalmente belas, e
tendo vívida na memória a expressão dos prisioneiros, instintivamente associou as
duas imagens.
— Já concluiu suas obrigações em Paris, senhor? — indagou Carton.
— Sim. Como lhe dizia ontem à noite, quando Lucie chegou
inesperadamente, já fiz tudo o que podia nesta cidade. Esperava assegurar-lhes a
mais absoluta segurança antes de partir, mas... Possuo um salvo-conduto[242].
Estava pronto para sair de Paris. Os dois quedaram-se em silêncio por alguns
instantes. — O senhor dispõe de uma longa vida para recordar — comentou
Carton, pensativo.
— Muito longa, com efeito. Estou com setenta e oito anos.
— O senhor foi sempre útil, em toda a sua vida. Manteve-se constantemente
ocupado. Objeto do respeito e da confiança de todos.
— Desde que me entendo por gente, sou um homem de negócios. Com
efeito, posso afirmar que já era um homem de negócios quando não passava de
um garoto.
— Veja a posição que ocupa aos setenta e oito anos. Quantos sentirão a sua
falta quando a deixar vaga!
— Ora, um velho e solitário solteirão — retrucou o senhor Lorry, sacudindo
a cabeça. — Ninguém chorará por mim.
— Como pode afirmar isso? Ela não choraria pelo senhor? E também a
filha?
— Sim, sim, graças a Deus. Eu realmente não quis dizer isso.
— Tem motivos para agradecer a Deus, não acha?
— Certamente, certamente.
— Se o senhor pudesse confessar esta noite, com toda a sinceridade, para o
seu próprio coração: “não conquistei o amor, nem o apreço, nem a gratidão ou o
respeito de ninguém neste mundo; não granjeei a estima ou o carinho de
ninguém; nada fiz de bom ou de útil para ser lembrado por quem quer que
seja!”, os seus setenta e oito anos equivaleriam a setenta e oito maldições. Não é?
— É verdade, senhor Carton. Julgo que seria assim.
Sydney tornou os olhos para o fogo e, após uma pausa, indagou:
— Gostaria de perguntar-lhe... sua infância parece muito distante? Os dias
em que o senhor se sentava no colo de sua mãe lhe parecem muito longínquos?
Sensível à suavidade de seus modos, o senhor Lorry respondeu:
— Há vinte anos, sim. Nesta época de minha vida, não. Quanto mais me
aproximo do fim, como se andasse em círculo, chego cada vez mais perto do
início. Deve ser uma forma de abrandar e preparar o caminho. Meu coração,
agora, comove-se com muitas lembranças que havia muito estavam
adormecidas... lembranças de minha mãe, linda e jovem (e eu, tão velho!), e,
por meio de uma série de associações, recordo os dias quando o que chamamosde “mundo” ainda não era tão real para mim, e minhas falhas ainda não se
haviam cristalizado em meu caráter.
— Compreendo seus sentimentos — exclamou Carton, corando. — E isso
lhe serve de alento?
— Espero que sim.
Carton encerrou a conversa aqui, levantando-se para ajudá-lo a vestir o
sobretudo.
— Mas o senhor — observou o senhor Lorry, retomando o tema — é jovem.
— Sim — retorquiu Carton, — Não sou velho, mas a maneira como gasto a
juventude não me conduz à velhice. Já basta de falarmos sobre mim.
— E também sobre mim, com certeza — replicou o senhor Lorry. — Vai
sair?
— Eu o acompanharei até o portão da casa dela. Conhece meus hábitos
errantes e inquietos. Se eu resolver perambular pelas ruas por um longo tempo,
não se preocupe. Voltarei pela manhã. Irá à corte amanhã?
— Sim, infelizmente.
— Estarei lá, em meio à multidão. Meu espião me conseguirá um lugar.
Tome o meu braço, senhor.
O senhor Lorry assim fez e os dois, depois de descerem a escada,
alcançaram a rua. Em poucos minutos chegavam ao destino do senhor Lorry.
Carton deixou-o ali; contudo, deteve-se a uma curta distância, e retornou ao
portão novamente depois que este se fechou, tocando-o. Ouvira contarem que ela
ia à prisão todos os dias.
— Ela saía por aqui — murmurou, olhando em torno — , por este caminho,
pisava estas pedras. Seguirei seus passos.
Eram dez horas da noite quando ele parou diante da prisão de La Force,
onde ela parara centenas de vezes. Um serrador baixinho, tendo fechado a
serraria, fumava seu cachimbo na porta.
— Boa noite, cidadão — cumprimentou-o Sydney Carton, pois o
homenzinho fitava-o interrogativamente.
— Boa noite, cidadão.
— Como vai a República?
— Refere-se à guilhotina? Não vai mal[243]. Sessenta e três, hoje. Logo
chegaremos a cem. Sansão e seus homens às vezes se queixam de cansaço. Ha,
ha, ha! É tão engraçado, esse Sansão. Que barbeiro!
— O senhor vai sempre lá vê-lo...
— Fazer a barba? Sempre. Todos os dias. Que barbeiro! Já o viu
trabalhando?
— Nunca.
— Pois vá e veja-o quando tiver outra fornada boa[244]. Imagine, cidadão,
que hoje ele barbeou sessenta e três, enquanto eu fumei menos de duas
cachimbadas. Menos de duas. Palavra de honra! Quando o homenzinho estendeu
seu cachimbo para explicar como media o tempo, Carton foi acossado por um
desejo tão intenso de estrangulá-lo que se virou para ir embora.
— Mas o senhor não é inglês — observou o serrador —, apesar do traje
inglês...— Sou, sim — ripostou Carton, por sobre o ombro.
— Pois fala como um francês.
— Estudo aqui há muito tempo.
— Ah, um perfeito francês! Boa noite, inglês!
— Boa noite, cidadão.
— Não deixe de ir ver aquele diabo de barbeiro — insistiu o homenzinho. —
E não se esqueça de levar um cachimbo.
Sydney ainda não se havia afastado muito quando parou no meio da rua, sob
um lampião que se balançava ao vento, e escreveu com seu lápis num pedaço de
papel. Então, atravessou, com o andar decidido de quem se lembrava bem do
caminho, várias ruas escuras e estreitas, muito mais sujas do que o habitual, pois
não se limpavam as vias públicas naqueles tempos de terror[245], e parou numa
botica cujas portas o proprietário ia fechando. Era uma loja pequena, soturna e
de aspecto duvidoso, mantida numa rua tortuosa por um homem pequeno,
soturno e de aspecto duvidoso.
Desejando boa noite também a esse cidadão, ao encostar-se no balcão,
Carton estendeu o pedaço de papel para ele.
— Fiuu! — o boticário assobiou de leve, ao ler. — Hi, hi, hi! Carton não fez
caso, e o boticário inquiriu:
É para o cidadão?
Sim, para mim.
— Terá o cuidado de manter tudo separado, cidadão? Conhece as
conseqüências que adviriam se os misturasse?[246]
— Perfeitamente.
O boticário preparou vários pequenos pacotes, que Carton colocou separados
um a um nos bolsos internos da sobrecasaca. Em seguida, pagou a conta e saiu
vagarosamente.
— Não há mais nada a fazer — murmurou consigo mesmo, erguendo os
olhos para a lua — até amanhã. Não posso dormir.
Não foi inquieta a maneira como ele pronunciou essas palavras sob as
nuvens que deslizavam, rápidas, pelo céu, nem expressava indiferença ou
desafio. Era a maneira apaziguada de um homem cansado, que havia andado
sem rumo, que lutara e se perdera, mas que, por fim, reencontrou seu caminho e
vislumbrou-lhe o término.
No passado distante, quando era famoso entre seus primeiros concorrentes
como um jovem promissor, ele conduziu o pai até o sepulcro. Sua mãe já havia
morrido anos antes. Aquelas solenes palavras, lidas diante da sepultura do pai,
voltaram-lhe à memória enquanto avançava pelas ruas escuras, por entre as
pesadas sombras, com a lua e as nuvens deslizantes sobre ele. “Eu sou a
ressurreição e a vida”, disse o Senhor; “quem crê em mim, ainda que esteja
morto, viverá; e todo aquele que vive, e crê em mim, nunca morrerá.”[247]
Numa cidade dominada pelo patíbulo, sozinho na noite, sentindo uma
genuína tristeza pelos sessenta e três que haviam sido executados naquele dia, e
pelas vítimas do dia seguinte, que aguardavam a morte nos calabouços, e
também as do outro dia, e as do outro ainda[248], a cadeia de associações que
lhe trouxe aquelas palavras à memória, como a enferrujada âncora de um velhonavio emergindo das profundezas, produziu-se naturalmente. Ele não as
procurara, mas repetiu-as e seguiu em frente.
Com um solene interesse pelas janelas iluminadas onde as pessoas se
preparavam para repousar, esquecidas por algumas poucas e tranqüilas horas dos
horrores que as circundavam; pelas torres das igrejas, onde nenhuma prece era
rezada[249], pois a revolta popular atingira esse ponto de autodestruição, como
conseqüência dos anos e anos de impostura eclesiástica, de libertinagem e rapina;
interessado pelos distantes cemitérios, reservados, conforme escreviam sobre os
portões, ao Sono Eterno[250]; pelas abundantes prisões e pelas ruas por onde os
grupos de sessenta eram guiados para a morte, a qual se tornara algo tão
cotidiano e concreto que não sobrara espaço para as histórias lúgubres de
fantasmas e aparições que normalmente surgem entre as pessoas, remanescendo
apenas o lúgubre terror da guilhotina; com um solene interesse, enfim, pela vida
e pela morte da cidade que se aplacava para a breve pausa noturna de sua fúria,
Sydney Carton cruzou o Sena, regressando às ruas iluminadas.
Poucas carruagens circulavam, pois conduzir coches era uma boa maneira
de levantar suspeitas, e os fidalgos escondiam a cabeça debaixo de barretes
vermelhos, calçavam sapatos pesados e andavam a pé. Contudo, os teatros
estavam todos cheios[251], e as pessoas saíam deles tagarelando alegremente
quando Carton passou. Na porta de um dos teatros, viu uma menina com a mãe,
procurando um lugar menos enlameado por onde pudessem atravessar a rua. Ele
tomou a criança nos braços, levou-a para o lado oposto e, antes que o bracinho da
menina se desprendesse do seu pescoço, pediu-lhe um beijo.
“Eu sou a ressurreição e a vida”, disse o Senhor; “quem crê em mim, ainda
que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive, e crê em mim, nunca
morrerá.”
Agora que as ruas estavam quietas e a noite se exauria, as palavras
ressoavam no eco dos seus passos e no ar. Completamente calmo e decidido,
repetia-as para si mesmo, por vezes, enquanto caminhava. Mas ouvi-as sempre.
A noite se exauriu e, enquanto, apoiado à ponte, ouvia o rumorejar do Sena
açoitando as muralhas da Ilha de Paris, onde a pitoresca confusão de casas e
catedral[252] refulgia sob o luar, o dia surgiu friamente, parecendo um rosto
morto projetado no céu. Então, a noite, com a lua e as estrelas, empalideceu e
morreu e, por um instante, foi como se a Criação ficasse sob o domínio absoluto
da Morte.
Contudo, o glorioso sol, erguendo-se, dava a impressão de repetir aquelas
palavras, aquele bordão da noite, ininterrupto e cálido para o coração dele, com
seus raios longos e resplandecentes. E enquanto os contemplava, com os olhos
reverentemente protegidos, uma ponte luminosa estendeuse pelo ar entre ele e o
sol, por sobre o rio reverberante.
A forte correnteza, tão ligeira, tão profunda e certa, era como uma amiga
congenial, na quietude da manhã. Ele caminhou pela margem do rio, longe das
casas, e, sob a luz e o calor do sol, adormeceu. Quando despertou e se pôs
novamente a andar, deixou-se ficar por ali um pouco mais, observando um
remoinho que volteava e volteava sem propósito até que a corrente o absorveu e
o carregou para o mar. “Como eu!”Um barco mercante, cuja vela tinha a cor esmaecida de uma folha morta,
deslizou perante seus olhos, flutuou para longe e passou. Quando seu silencioso
rastro na água desapareceu, a prece que irrompera de seu coração por uma
piedosa benevolência para com os seus erros e falta de visão brotou-lhe dos
lábios:
— Eu sou a ressurreição e a vida.
O senhor Lorry já havia saído quando ele regressou, e era fácil presumir
aonde o bom velho tinha ido. Sydney Carton nada tomou além de um pouco de
café, comeu um pedaço de pão e, tendo-se banhado e trocado de roupas, dirigiu-
se ao local do julgamento.
A corte estava em pleno movimento e num grande tumulto quando o
“carneiro” das prisões, de quem muitos se afastavam de medo, levou-o para um
canto escondido por entre a multidão. O senhor Lorry e o doutor Manette se
achavam lá. Ela também se encontrava lá, sentada ao lado do pai.
Quando o marido foi trazido, ela lhe lançou um olhar tão solidário, tão
encorajador, tão pleno de admiração, amor e compassiva ternura, e tão cheio de
coragem, pelo bem dele, que coloriu-lhe as faces, conferiu brilho a seus olhos e
animou-lhe o coração. Se alguém houvesse observado a influência daquele olhar
sobre Sydney Carton, teria percebido que sua reação fora exatamente a mesma.
Perante aquele injusto tribunal, havia pouca ou nenhuma forma de
procedimento que assegurasse a qualquer acusado uma oportunidade razoável de
defesa. Tal Revolução não teria sido possível se todas as leis, formalidades e
cerimônias não houvessem sofrido primeiro abusos tão monstruosos que a
vingança suicida da Revolução os espalhou todos aos ventos.[253]
Todos os olhos fixaram-se no júri. Os mesmos determinados patriotas e bons
republicanos do dia anterior e do dia seguinte. Mais sôfrego e proeminente entre
eles, via-se um homem com uma face ávida e dedos perpetuamente adejando
em volta dos lábios, cujo aparecimento causou grande satisfação aos
espectadores. Esse jurado sequioso por mortes, com uma expressão
antropofágica e mente sanguinária era Jacques terceiro de Santo Antônio. O júri
inteiro parecia uma matilha de cães lançando-se sobre o gamo.
Todas os olhos, então, voltaram-se para os cinco juízes e para o promotor
público. Nenhuma tendência favorável naquele quadrante, dessa vez, onde
reinava uma atmosfera cruel, inflexível e propensa ao assassinato. Todos os
olhos, agora, buscavam alguém na multidão, e lampejaram em aprovação.
Cabeças se voltaram umas para as outras antes de se virarem para a frente com
a máxima atenção.
Charles Evrémonde, chamado de Darnay. Absolvido on-tem. Novamente
acusado e preso ontem. Indiciação enviada a ele ontem. Suspeito e denunciado
como inimigo da República, aristocrata, membro de uma família de tiranos, de
uma raça proscrita por haver usado de seus abolidos privilégios para oprimir o
povo de maneira infame. Charles Evrémonde, chamado de Darnay,
absolutamente morto em razão de Lei.
Com esse propósito e em poucas palavras, manifestouse o promotor público.
O presidente inquiriu se o réu fora denunciado em sigilo ou abertamente.
— Abertamente, presidente.— Por quem?
— Por três indivíduos: Ernesto Defarge, taberneiro no bairro de Santo
Antônio...
— Muito bem.
— Thérèse Defarge, sua esposa.
— Muito bem.
— Alexandre Manette, médico.
Um grande tumulto tomou conta da corte e, em meio ao alarido, o doutor
Manette, pálido e trêmulo, levantou-se.
— Presidente, eu indignadamente protesto, pois estamos diante de uma
mentira, de uma fraude. O senhor sabe que o réu é marido de minha filha. E
minha filha e aqueles que lhe são caros são ainda mais caros à minha vida.
Quem é e onde está esse torpe conspirador que declara que eu denunciei o meu
genro!
— Cidadão Manette, acalme-se. A insubmissão à autoridade deste tribunal o
colocaria fora da lei. Quanto ao que lhe é caro na vida, nada pode ser tão
precioso para um bom cidadão quanto a República.
Vivas aclamações acolheram essa repreensão. O presidente tocou a sineta e,
com entusiasmo, concluiu:
— Se a República lhe exigisse o sacrifício de sua própria filha, o senhor teria
o dever de sacrificá-la. Agora, ouça o que se vai seguir. E mantenha-se em
silêncio!
Novas e frenéticas aclamações irromperam. O doutor Manette sentou-se,
olhando em torno, com os lábios trêmulos. A filha aproximou-se mais dele. O
homem sôfrego no júri esfregou as mãos e devolveu uma delas aos lábios.
Defarge foi chamado quando se restabeleceu ordem na corte suficiente
para que ele fosse ouvido. Rapidamente, ele expôs a história do cativeiro,
relatando que fora um simples garoto a serviço do doutor, e falou acerca da
libertação deste, do estado em que o prisioneiro se encontrava quando foi solto e
enviado para ele. O interrogatório prosseguiu, abreviando essa parte inicial, pois a
corte era rápida em seu trabalho.
— É verdade que se distinguiu na tomada da Bastilha, cidadão?
— Acho que sim.
Aqui, uma exaltada mulher guinchou em meio à multidão:
— Foi um dos mais bravos patriotas. Por que não o diz? Você tomou conta do
canhão, lá, e esteve entre os primeiros a entrar na fortaleza maldita quando esta
caiu. Patriotas, eu digo a verdade!
Foi “A Vingança” quem, com a calorosa aprovação da audiência, assim
interrompera a audiência. O presidente tornou a tocar a sineta. Mas “A
Vingança”, acalorando-se com o encorajamento, guinchou de novo:
— Eu desafio essa sineta! — no que foi igualmente muito aclamada.
— Informe ao tribunal o que você fez, naquele dia, dentro da Bastilha,
cidadão.
— Eu sabia — disse Defarge, olhando para baixo na direção da esposa, que
estava na parte inferior da escada, fitando-o com atenção —, sabia que esse
prisioneiro de quem falo tinha sido confinado numa cela conhecida como Cento ecinco, Torre Norte. Soube-o por ele mesmo. Ele não se conhecia por outro nome
que não Cento e cinco, Torre Norte, quando fabricava sapatos sob os meus
cuidados. Enquanto carregava minha arma, naquele dia, resolvi examinar a cela
depois que a fortaleza caísse. Ela caiu. Eu subi à cela, com um companheiro
cidadão que é membro do júri, guiado por um carcereiro. Eu a examinei
minuciosamente. Num buraco na parede da chaminé, onde uma pedra havia sido
arrancada e recolocada no lugar, encontrei um papel escrito. Este é o papel
escrito. Quando eu era um garoto e trabalhava para o doutor Manette, tive a
oportunidade de ver vários documentos com a letra dele. Esta é a letra do doutor
Manette. Entrego este papel, com a letra do doutor Manette, às mãos do
presidente.
“Que seja lido!”
Num silêncio mortal, o prisioneiro sob julgamento fitando amorosamente a
esposa, a esposa desviando o olhar apenas para contemplar o pai com solicitude,
o doutor Manette mantendo os olhos fixos no leitor, madame Defarge jamais
tirando os olhos de cima do prisioneiro, Defarge jamais tirando os olhos de cima
de sua deleitada mulher, e todos os outros dirigindo os olhos para o doutor, que
não via ninguém, o papel foi lido, como se segue. X. A Substância da Sombra
CAPÍTULO X
A SUBSTÂNCIA DA SOMBRA
“Eu, Alexandre Manette[254], desventurado médico, nascido em Beauvais e
depois residente em Paris, escrevo essas melancólicas páginas na minha triste
cela na Bastilha, durante o último mês do ano de 1767. Faço-o a intervalos e
enfrentando toda sorte de dificuldades. Pretendo ocultá-las na parede da
chaminé, onde, lenta e laboriosamente, preparei um esconderijo. Talvez uma
mão piedosa as encontre aqui, quando eu e meus sofrimentos já não sejamos
mais do que pó.
Estas palavras são formadas com a ponta de um prego enferrujado, com a
qual eu escrevo com dificuldade usando fragmentos de carvão e fuligem da
chaminé misturados com sangue[255], no último mês do décimo ano do meu
cativeiro. A esperança já me abandonou o peito. Sei, através de terríveis sintomas
que percebi em mim mesmo, que minha razão não permanecerá incólume por
muito tempo, mas eu solenemente declaro que, neste momento, estou de posse
de minhas faculdades mentais, que minha memória é exata e circunstanciada, e
que escrevo a verdade, pois responderei por estes meus últimos registros, mesmo
que ninguém jamais os leia, perante o Eterno Juízo.
Numa noite em que o clarão da lua se esgueirava por entre as nuvens, na
terceira semana de dezembro (creio que no vigésimo segundo dia) do ano de
1757, eu caminhava ao longo de uma parte deserta da margem do Sena para
respirar um pouco de ar puro, a cerca de uma hora de distância de minha casa,
situada na rua da Escola de Medicina[256], quando uma carruagem veio por
detrás de mim e afastou-se em grande velocidade. Quando me encolhi para o
lado, a fim de dar-lhe passagem, receoso de que pudesse atropelar-me, uma
cabeça assomou à janela e uma voz ordenou ao cocheiro que parasse.
Assim que este pôde refrear os cavalos, a carruagem parou e a mesma voz
chamou-me pelo nome. Eu respondi. O coche já se encontrava tão à frente que
dois cavalheiros tiveram tempo de abrir a porta e descer antes que eu chegasse
até lá. Observei que estavam ambos envolvidos em pesadas capas e pareciam
esconder-se. De pé, lado a lado junto à porta da carruagem, também observei
que eram da minha idade, talvez um pouco mais novos, e que havia entre eles
uma extraordinária semelhança: a mesma estatura, a mesma aparência, a
mesma voz e (até onde pude ver) o mesmo rosto.
— O senhor é o doutor Manette? — inquiriu um deles.
— Sou, sim.
— O doutor Manette, de Beauvais — disse o outro —, o jovem médico, naverdade um excelente cirurgião, que há cerca de um ano ou dois vem
granjeando em Paris uma reputação invejável?
— Cavalheiros — repliquei —, sou o médico a quem se referem de modo
tão lisonjeiro.
— Estivemos em sua residência — declarou o primeiro — e, não tendo a
sorte de encontrá-lo lá, mas recebendo a informação de que o senhor
provavelmente estaria caminhando nesta direção, nós seguimos, na esperança de
alcançá-lo. Poderia, por favor, entrar na carruagem?
Seus modos eram imperiosos, e eles se moviam, enquanto falavam, de
forma a deixar-me entre ambos e a porta da carruagem. Estavam armados. Eu,
não.
— Cavalheiros — retruquei —, perdoem-me, mas tenho por hábito
perguntar quem me dá a honra de buscar o meu auxílio e qual a natureza do caso
para o qual sou chamado. A resposta coube ao que havia falado em segundo
lugar.
— Doutor, seus clientes são pessoas as mais distintas. Quanto à natureza do
caso, nossa confiança em sua habilidade nos assegura que o senhor a julgará por
si muito melhor do que podemos descrevê-la. Já basta. Quer, por favor, entrar na
carruagem?
Nada podendo fazer além de cumprir a ordem, subi em silêncio para o
interior do coche. Os dois subiram logo atrás de mim, o último, de um salto,
ignorando os degraus.
A carruagem fez meia-volta e partiu na mesma velocidade anterior.
Repito essa conversa tal como ocorreu, palavra por palavra. Descrevo os
fatos exatamente como se passaram, forçando minha mente a não se desviar da
tarefa. Os sinais que traço abaixo marcam a interrupção que sou obrigado a
fazer. Por ora, terei de guardar esta folha em seu esconderijo.
“A carruagem deixou as ruas para trás, cruzou a barreira norte e
desembocou numa estrada rumo ao campo. A dois terços de légua da barreira,
não calculei a distância nesse momento, mas sim depois, quando passei de volta,
saiu da avenida principal e parou diante de uma casa retirada. Nós três descemos
e atravessamos um jardim, onde uma fonte malcuidada havia transbordado e
molhado a terra, até a porta da casa. A sineta não foi atendida de imediato e um
de meus dois clientes, com sua pesada luva de montaria, esbofeteou o criado que
abriu a porta, por ter demorado a atender.
Não havia nada naquela atitude que atraísse particularmente a minha
atenção, pois não ignorava que essas pessoas simples são surradas com mais
freqüência do que os cães. Contudo, o outro, igualmente irritado, também
esbofeteou o criado, embora com a mão, em vez da luva. Os traços físicos e os
gestos dos dois irmãos eram tão idênticos que percebi, pela primeira vez, que
eram gêmeos.
Desde o momento em que descemos do coche, junto ao portão (que
havíamos encontrado trancado, e que um dos gêmeos abriu e tornou a trancar),
eu vinha escutando gemidos provenientes de um aposento no andar superior. Fui
guiado diretamente até lá, os gemidos se tornando mais e mais altos à medidaque eu subia as escadas, e me deparei com uma pessoa delirando de febre sobre
uma cama.
Tratava-se de uma mulher de grande beleza, e jovem, com certeza ainda
não passara dos vinte anos. Seus cabelos desgrenhados espalhavam-se ao redor
da cabeça e seus braços estavam atados ao corpo com faixas e lenços. Percebi
que essas ataduras eram retalhos de um fino traje de cavalheiro. Em uma delas,
que era uma echarpe franjada própria de uma vestimenta de cerimônia, vi um
brasão típico de família nobre, e a letra “E”.
Reparei nesse detalhe assim que contemplei a paciente. Pois, ao se debater,
irrequieta, ela se virara de lado e aproximara o rosto da beira da cama, de forma
que a ponta da echarpe entrou em sua boca, ameaçando sufocá-la. Minha
primeira providência foi afastar a echarpe para que ela voltasse a respirar. Ao
fazê-lo, o bordado em questão atraiume o olhar.
Com delicadeza, eu tornei a virá-la, pousei a mão em seu peito para que se
acalmasse e fitei-lhe a face. Com os olhos dilatados e esgazeados, ela soltava
guinchos estridentes e repetia as palavras: “Meu marido, meu pai e meu irmão!”.
Então, contava até doze e resmungava: “Shh!”. Por um instante, e não mais, ela
fazia uma pausa para escutar; e voltava à cantilena: “Meu marido, meu pai e
meu irmão!”; contava até doze e pedia silêncio. A seqüência não variava nem se
interrompia, exceto nos instantes de pausa.
— Há quanto tempo — indaguei — ela se encontra neste estado?
Para distinguir os irmãos, eu os chamarei de mais velho e mais novo. Por
mais velho, designo o que exercia maior autoridade. Foi este que respondeu:
— Desde ontem à noite.
— Ela tem marido, pai e irmão?
— Um irmão.
— Posso vê-lo? Ele ripostou com grande desprezo:
— Não.
— Houve algum fato recente que ela associasse com o número doze? O
mais novo interveio, impaciente:
— Com as doze horas?
— Percebem, cavalheiros — disse eu, mantendo as mãos sobre o peito da
paciente para que não voltasse a virar-se —, a inutilidade de trazer-me aqui sem
me informar sobre a natureza do caso? Se eu soubesse do que se tratava, teria
trazido os medicamentos necessários. Agora, seremos obrigados a perder um
tempo precioso. Não há como obter remédios neste lugar isolado.
O mais velho olhou para o outro, que apressou-se a replicar:
— Temos uma maleta de remédios aqui — e apanhoua de um armário,
pousando-a sobre a mesa.
Abri alguns dos frascos, aspirei-os e levei as rolhas aos lábios. Se eu
necessitasse de drogas não envenenadas por narcótico, não teria administrado
aquelas.
— Não lhe inspiram confiança? perguntou o mais novo.
— Veja, monsieur, vou usá-las — retruquei, sem acrescentar nenhuma
palavra.Fiz a paciente engolir, com grande dificuldade e após várias tentativas, a
dose que desejava ministrar-lhe. Como pretendia repeti-la mais tarde, era
preciso observá-la para verificar o resultado. Assim, sentei-me ao lado da cama.
A tímida e humilde mulher (esposa do criado que abrira a porta) que
cuidava da moça retirara-se para um canto do aposento. A casa, úmida e
decadente, era pobremente mobiliada, claro estava que fora ocupada
recentemente e de forma apenas temporária. Algumas grosseiras e velhas
cortinas haviam sido dependuradas nas janelas, para abafar o som dos gritos, que
continuavam, numa seqüência constante, acompanhados a espaços das mesmas
exclamações “Meu marido, meu pai, meu irmão”. Ela contava até doze e
“Shh!”. A convulsão era tão violenta que preferi não desfazer as ataduras que lhe
prendiam os braços. Tive, porém, o cuidado de examinar para ver se não a
magoavam. O único sinal encorajador era que minhas mãos sobre seu peito
causavam um efeito tão calmante que, durante alguns minutos, conseguiam
tranqüilizar a paciente. Contudo, não exerciam nenhuma influência sobre as
crises, que se sucediam numa regularidade maior do que a de qualquer pêndulo.
Em razão de minhas mãos (presumo) produzirem tal efeito, permaneci
sentado, sob a vigilância dos dois irmãos, ao lado da cama por meia hora, até que
o mais velho revelou:
— Há um outro paciente, na casa, que necessita de cuidados. Surpreso,
indaguei:
— É um caso de urgência?
— É melhor o senhor ver — respondeu em tom de indiferença e apanhou
um castiçal.
O outro paciente jazia num quarto de fundos no alto de uma segunda
escadaria, uma espécie de sótão sobre a cavalariça. Um teto baixo e caiado
cobria uma parte do cômodo; a outra parte era aberta, com as vigas e o telhado à
mostra. Feno e palha estavam estocados naquele canto do sótão, além de feixes
de lenha e de uma pilha de maçãs. Tive de cruzar por todas essas coisas para
chegar ao paciente. Minha memória continua inabalável. Prova disso é o fato de
eu recordar tantas minúcias. É como se as visse agora, nesta minha cela na
Bastilha, perto do final do meu décimo ano de cativeiro, como as vi naquela
noite.
Sobre um monte de palha, com uma almofada sob a cabeça, jazia um belo
camponês, um rapaz que não teria mais de dezessete anos. Deitado de costas,
com os dentes cerrados, tinha a mão direita apertada sobre o peito e os olhos
brilhantes voltados para o teto. Ao ajoelhar-me ao seu lado, eu não podia
localizar-lhe o ferimento, mas pude constatar que ele estava morrendo em
conseqüência de uma ferida causada por um instrumento pontiagudo.
— Sou médico, meu pobre rapaz — disse-lhe eu. — Deixe-me examiná-lo.
— Não quero ser examinado — respondeu ele —, é inútil.
O ferimento estava oculto sob a mão e, com jeito, consegui que ele a
afastasse para que eu pudesse olhar. Tratava-se de uma ferida aberta por uma
espada, cerca de vinte ou vinte e quatro horas antes. Mesmo que ele tivesse sido
socorrido logo em seguida, nada poderia salvá-lo. A morte aproximava-se apassos rápidos. Quando me virei para o irmão mais velho, percebi que este fitava
o belo rapaz cuja vida se esvaía como se fosse apenas uma ave ferida, uma
lebre, um coelho. De modo algum enxergava o ser humano que definhava sobre
o monte de palha.
— Como aconteceu isso, monsieur?
— Esse idiota louco! Um servo! Forçou meu irmão a lutar e foi ferido por
sua espada... como um cavalheiro!
Não havia compaixão, nem pesar, nem qualquer sentimento de humanidade
em sua voz. Ele apenas parecia considerar inconveniente a circunstância de
haver um tipo diferente de criatura morrendo ali, achando, decerto, que seria
melhor que morresse na obscura rotina usual dos vermes. Era totalmente incapaz
de qualquer sentimento piedoso em relação ao rapaz ou a seu destino.
Os olhos do moribundo voltaram-se lentamente para o homem e depois
fixaram-se em mim.
— Doutor, são muito orgulhosos, esses nobres; mas nós, servos idiotas,
também somos orgulhosos, por vezes. Eles nos roubam, ultrajam, maltratam e
matam; ainda assim, resta-nos um pouco de orgulho. Ela... já a viu, doutor?
Mesmo dali, podiam-se ouvir seus gritos e gemidos dali, embora abafados
pela distância.
— Sim, eu a vi.
— É minha irmã, doutor. — Há muitos anos, esses nobres têm direitos
vergonhosos sobre a modéstia e a virtude de nossas irmãs, porém há muitas
moças honradas entre nós. Eu sei disso, e também ouvi meu pai contar. Ela era
uma boa moça. Estava noiva de um bom homem, um dos vassalos desse aí.
Todos nós somos seus vassalos. O outro é seu irmão, o pior dessa raça maldita.
Era com enorme dificuldade que o rapaz reunia forças para falar. Contudo, seu
espírito lhe conferia ânimo para expressar-se com espantosa ênfase:
— Fomos tão roubados por esse homem que aí vê como todos os servos
idiotas são explorados por esses “seres superiores”, obrigados a pagar impostos
altos, a trabalhar sem pagamento, a moer nosso milho no moinho deles, a
alimentar suas galinhas com a nossa colheita escassa, enquanto somos proibidos
de criar sequer uma galinha para nosso sustento; somos pilhados e saqueados a tal
ponto que, quando acontece de termos um pedaço de carne, nós o comemos
amedrontados, e fechamos a porta e as janelas para evitar que eles vejam e
levem a carne embora[257]. Enfim, fomos tão roubados e perseguidos, e nos
empobreceram tanto, que nosso pai nos disse que era terrível colocar um filho no
mundo e que devíamos rezar para que nossas mulheres ficassem estéreis,
acabando de uma vez com nossa espécie miserável!
Eu jamais presenciara a consciência da opressão irrompendo com tamanha
fúria. Eu imaginava que tal consciência só existiria nas pessoas em estado latente
e surpreendeu-me vê-la manifestar-se, pela primeira vez, naquele rapaz
moribundo.
— Entretanto, doutor, minha irmã se casou[258]. Seu noivo, coitado, estava
doente, e ela decidiu desposá-lo para cuidar-lhe da saúde em nossa cabana, nossa
casa de cachorro, como esse homem costuma chamar. Fazia poucas semanas do
casamento quando o irmão desse aí a viu e admirou, e pediu ao outro que a dessede presente para ele, afinal, maridos da nossa laia não contam! Ele a desejava,
mas minha irmã era boa e virtuosa. Além disso, dedicava-lhe um ódio tão intenso
quanto o meu. O que fizeram os dois, então, para persuadir seu marido a usar de
sua influência e obrigá-la a ceder?
Os olhos do rapaz, que se haviam fixado em mim, voltaram-se lentamente
para o espectador da cena e eu pude constatar que todas as suas palavras eram
verdadeiras. Ainda hoje, na Bastilha, vejo aquele confronto entre os dois tipos
opostos de orgulho. O do cavalheiro, desdenhoso e indiferente; o do camponês,
espezinhado e imbuído de uma apaixonada sede de vingança.
— O senhor sabe, doutor, que faz parte dos “direitos” desses “nobres”
atrelar cachorros como nós a carroças para que as puxemos. Os dois atrelaram
meu cunhado e o fizeram carregá-los. O senhor também deve saber que faz
parte dos “direitos” desses “nobres” manter-nos em suas terras a noite inteira
para aquietar as rãs, a fim de que estas não lhes perturbem o sono. Eles o
mantinham na névoa insalubre durante a noite e atrelado à carroça durante o dia.
Mas meu cunhado não se deixou persuadir. Não! Desatrelado, certa vez, ao
meio-dia, para almoçar, como se houvesse alguma coisa para comer, ele
soluçou doze vezes, uma para cada batida do sino, e morreu nos braços da
esposa.
Nenhuma força humana poderia suster a vida do rapaz, exceto sua
determinação em denunciar as maldades dos gêmeos. O camponês afugentou as
sombras da morte que o envolviam, forçando o braço direito a proteger seu
ferimento.
— Então, com a permissão desse homem, e mesmo com a sua ajuda, o
irmão levou-a embora. A despeito de tudo quanto eu sei que ela lhe deve ter dito
e que, se o senhor ainda não sabe, doutor, logo saberá, ele a levou para se divertir
por algum tempo. Eu a vi passar por mim na estrada. Quando dei a notícia em
casa, o coração de meu pai não resistiu e ele morreu, levando consigo toda a dor
que jamais expressou. Levei minha irmã mais nova (pois eu tenho outra) para
um lugar fora do alcance desse homem, onde, ao menos, ela jamais será vassala
dele. Então, segui o irmão até aqui e, ontem à noite, entrei, como um servo idiota,
mas de espada na mão. Onde fica a janela do sótão? Em que parede?
O quarto escurecia aos seus olhos; o mundo se estreitava ao seu redor. Olhei
em torno e vi que a palha e o feno estavam esmagados, como se ali tivesse
ocorrido uma luta.
— Ela me ouviu e correu para dentro. Eu a adverti para que ficasse longe
até ele morrer. O homem entrou e, primeiro, atirou-me algumas moedas; depois,
açoitou-me com o chicote. Mas eu, embora seja um servo idiota, forcei-o a
puxar da espada e lutar. Que ele quebre em tantos pedaços quantos desejar a
espada contaminada pelo meu sangue comum. Ele a usou para defender-se,
investiu sobre mim com toda a destreza de que era capaz para se manter vivo.
Poucos minutos antes, eu vislumbrara no meio do feno os fragmentos de
uma espada quebrada. Tratava-se da arma do cavalheiro. Em outro lugar, jazia
uma velha espada que parecia ter pertencido a um soldado.
— Agora, levante-me, doutor, levante-me. Onde está ele?
— Não está aqui — respondi, amparando-o, e deduzindo que se referisse aoirmão.
— Ele! Orgulhosos como são esses nobres, ele tem medo até de me ver.
Onde está o outro, o que estava aqui? Vire meu rosto em sua direção.
Para fazer-lhe a vontade, suspendi sua cabeça e apoieia sobre meu joelho.
Contudo, tomado por uma repentina força, ele ergueu-se completamente,
obrigando-me a também me levantar, caso contrário não conseguiria sustentá-lo.
— Marquês — disse o rapaz, fitando-o com os olhos arregalados e a mão
direita em riste —, quando chegar o dia de prestar contas sobre todas essas
coisas, eu convoco o senhor e todos os seus, até o último de sua maldita família,
para responder por elas. Traço esta cruz com sangue sobre o senhor, como um
sinal de minha convocação. Quando chegar o dia de prestar contas, eu convoco
separadamente seu irmão, o pior de sua maldita família, para responder em
separado. E traço esta cruz com sangue sobre ele, como um sinal.
Duas vezes ele pôs a mão na ferida em seu peito e, com o dedo indicador,
desenhou uma cruz no ar. Quedou-se por um instante com o dedo erguido e,
quando este tombou, ele tombou junto e eu estendi seu corpo morto sobre a
palha.
Quando retornei ao leito da moça, encontrei-a gemendo e gritando do modo
como a deixara, na mesma seqüência e com a mesma regularidade. Eu sabia
que aquilo poderia arrastar-se por muitas horas e que provavelmente terminaria
no silêncio do túmulo.
Repeti a dose do medicamento, sentei-me ao seu lado e lá fiquei até altas
horas da noite. Em nenhum momento seus gritos diminuíram de intensidade, nem
a ordem de sua cantilena se alterou. Era sempre “Meu marido, meu pai, meu
irmão! Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze. Shh!”.
A crise durou vinte e seis horas a partir do instante em que cheguei àquela
casa. Eu saí e voltei duas vezes e estava de novo sentado ao seu lado quando ela
começou a vacilar.
Tomei as poucas providências que podia para assisti-la naquela situação, e,
pouco a pouco, ela imergiu num estado de letargia, jazendo sobre o catre como
morta.
Era como se o vento e a chuva por fim amainassem após uma tenebrosa e
prolongada tormenta. Eu lhe desamarrei os braços e chamei a criada para
ajudar-me a endireitá-la na cama e a recompor o vestido que ela rasgara. Foi
então que descobri que seu estado era aquele em que as primeiras expectativas
de tornar-se mãe haviam surgido. E foi então que perdi a pouca esperança que
tinha de salvá-la.
— Morreu? — indagou o marquês, a quem ainda me refiro como o mais
velho, que acabara de chegar a cavalo.
— Ainda não — respondi —, mas está prestes.
— Quanta resistência tem essa ralé! — ele comentou, contemplando-a com
certa curiosidade.
— Uma prodigiosa resistência — retruquei —, fruto do sofrimento e do
desespero.
Primeiro, ele riu de minhas palavras, mas logo franziu a testa. Com o pé,empurrou uma cadeira para junto da minha. Em seguida, ordenou à mulher que
saísse e, num tom brando, disse:
— Doutor, vendo meu irmão em apuros com esses camponeses, aconselhei-
o a pedir-lhe auxílio. Sua reputação é boa e, como um homem jovem que ainda
precisa fazer fortuna, o senhor, provavelmente, cuida bem de seus interesses. As
coisas que presenciou aqui não devem sair daqui. Eu observei a respiração da
enferma e evitei retorquir.
— O senhor poderia honrar-me com a sua atenção, doutor?
— Monsieur — ripostei —, em minha profissão, tudo o que se relaciona com
os pacientes tem natureza sigilosa. Minha resposta foi cautelosa, pois eu ainda me
sentia perturbado com o que vira e ouvira.
A respiração dela era tão imperceptível que eu lhe tomei o pulso e auscultei-
lhe o coração. Havia um sopro de vida e nada mais. Olhando em torno, ao tornar
a sentar-me, constatei que os dois irmãos observavam-me atentamente.
***
Escrevo com tanta dificuldade, o frio é tão rigoroso, tenho tanto medo de ser
surpreendido e encerrado numa cela subterrânea onde a escuridão é total, que eu
devo abreviar esta narrativa. Não há confusão nem falhas em minha memória.
Lembro-me em detalhes de cada palavra da con-versa que mantive com aqueles
irmãos.
A enferma agonizou por uma semana. Já quase no fim, ela pronunciou
algumas poucas palavras que eu pude en-tender, aproximando meu ouvido de
seus lábios. Perguntoume onde estava, e eu lhe disse. Indagou quem era eu, e
respondi. Em vão lhe inquiri seu sobrenome. Debilmente, ela balançou a cabeça
sobre o travesseiro e guardou seu segredo, como fizera o rapaz.
Não tive oportunidade de fazer-lhe nenhuma pergunta até o dia em que
informei aos irmãos que ela estava por um triz, que não sobreviveria por muitas
horas. Até então, embora a paciente só se desse conta da presença da criada e da
minha, um dos dois sempre se sentava ciumentamente ao lado da cabeceira da
cama quando eu estava no quarto. Quando, porém, lhes fiz aquele comunicado,
eles pareceram não se importar mais com o que ela pudesse contar-me. Era
como se, o pensamento ocorreu-me, eu também fosse morrer.
Eu observara que o orgulho deles se ressentia amargamente do fato de o
mais novo (como eu o chamo) haver terçado espadas com um camponês, e,
pior, quase um garoto. A única consideração que aparentemente os afetava era
que o incidente, além de degradante para a família, era ridículo. Sempre que eu
fitava os olhos do mais novo, sua expressão indicava o quanto ele me detestava
por conhecer todo o episódio. Mostrava-se mais brando e cortês para comigo do
que o irmão. Mas eu lera a verdade em seus olhos. E sabia que o mais velho
considerava-me um estorvo.
Minha paciente morreu duas horas antes da meia-noite, horário que, pelo
meu relógio, correspondia àquele em que a vi pela primeira vez. Eu estava
sozinho com ela quando seu desolado rosto pendeu para um lado e todos os seus
erros e sofrimentos terrenos cessaram.
Os irmãos esperavam numa sala do andar inferior, impacientes para montarem seus cavalos e partir. Eu os escutara, sozinho ao lado da cama, andando
ruidosamente de um lado para o outro.
— Morreu, afinal? — indagou o mais velho, quando eu desci.
— Morreu.
— Congratulações, meu irmão — foram suas palavras ao virar as costas.
Antes, ele me oferecera dinheiro, porém eu adiara o assunto. Agora, ele me
ofertava um rouleau de ouro[259]. Eu o apanhei de suas mãos e pousei-o sobre a
mesa. Eu tinha debatido a questão e resolvera não aceitar nada.
— Rogo-lhe que me desculpe, mas, nestas circunstâncias, não. Recusei.
Os dois se entreolharam em silêncio, inclinaram a cabeça para mim como
eu inclinei a minha para eles e nos separamos sem que nenhum de nós proferisse
qualquer palavra.
Estou exausto, exausto, exausto, abatido pelo sofrimento. Não consigo ler o
que escrevi com esta mão descarnada.
Bem cedo, na manhã seguinte, o rouleau de ouro foi deixado em minha
porta, dentro de uma pequena caixa gravada com o meu nome. A princípio,
refleti com ansiedade sobre o que devia fazer. Decidi, naquele dia, escrever
secretamente ao ministro, descrevendo a natureza dos dois casos para os quais fui
chamado: na verdade, descrevendo todas as circunstâncias. Eu sabia que
influência a corte exercia, e que imunidades os nobres possuíam, e achava que
nunca mais se tocaria no assunto. Contudo, precisava aliviar a minha consciência.
Eu mantivera o mais profundo sigilo, nada revelando nem à minha esposa. E isso,
também, declarei em minha carta. Não temia nenhum perigo real para mim,
mas estava ciente de que podia haver algum perigo para outras pessoas, se estas
tivessem conhecimento dos fatos.
Eu estive muito ocupado o dia inteiro e não pude terminar a carta aquela
noite. Levantei-me mais cedo do que o habitual, no dia seguinte, para concluí-la.
Era o último dia do ano. A carta jazia à minha frente, terminada, quando fui
informado de que uma dama desejava ver-me.
Torno-me cada vez mais instável na tarefa a que me propus. Está demasiado
frio, demasiado escuro, meus sentidos se entorpeceram demais e a melancolia
que me envolve é demasiado tenebrosa.
A dama era nova, atraente e bonita, mas não destinada a uma longa vida.
Mostrava-se muito agitada. Apresentou-se como a esposa do marquês de Saint
Evrémonde. Associei o título àquele utilizado pelo camponês quando se dirigira
ao mais velho dos irmãos e com a inicial bordada na echarpe, e, assim, não tive
dificuldade em deduzir que tinha encontrado o nobre em questão recentemente.
Minha memória continua acurada, mas não posso transcrever todas as
palavras de nosso diálogo. Suspeito que sou agora vigiado com maior rigor, e não
sei em que momentos do dia ou da noite.
Ela havia em parte desconfiado e em parte descoberto os fatos principais da
cruel história, sabia que seu marido tomara parte nela e também que me tinham
chamado. Ignorava, porém, que a moça estava morta. Esperara poder,
confessou-me com grande tristeza, demonstrar-lhe, em segredo, suasolidariedade feminina. E acalentara a esperança de afastar a cólera celeste de
uma família que se tornara odiosa em conseqüência dos sofrimentos que infligia.
Ela dispunha de razões para acreditar que restara uma irmã viva e seu
maior desejo era ajudá-la. Eu só lhe pude confirmar a existência dessa irmã,
pois nada mais sabia a respeito. O que a induzira a procurar-me, contando com a
minha confiança, era a esperança de que eu lhe pudesse dizer o nome e o
endereço da menina. Eu, infelizmente, desconhecia tanto um como outro.
Faltam-me folhas de papel. Ontem, tiraram-me uma, com uma
advertência. Devo encerrar meu relato hoje.
A marquesa era uma dama bondosa, compassiva, que não era feliz no
casamento. Como poderia sê-lo! O cunhado não confiava nela e a detestava,
empregando toda a sua influência para prejudicá-la. A pobre senhora temia-o, e
também ao marido. Quando a acompanhei até a porta, uma criança a aguardava
na carruagem, um lindo garotinho de dois ou três anos.
— Pelo bem dele, doutor — ela disse, apontando-o com os olhos cheios de
lágrimas —, eu farei tudo o que estiver ao meu alcance para compensar o mal
causado pela minha família. Meu filho jamais prosperaria com tão terrível
herança. Tenho o pressentimento de que, se esse mal não for expiado, um dia
pedirão contas a ele. Tudo o que posso chamar de meu pouco mais do que
algumas jóias, eu lhe legarei para que entregue, com a compaixão e o pesar de
sua falecida mãe, a essa família injuriada, caso a menina seja encontrada.
Ela beijou o garoto e indagou, afagando-o:
— É para a sua própria felicidade. Será fiel a essa promessa, pequeno
Charles? A criança respondeu com bravura:
— Sim! Beijei a mão da senhora, que tomou o filho nos braços e continuou a
afagá-lo. Nunca mais tornei a vê-la.
Já que ela mencionara o nome do marido na crença de que eu já o
soubesse, não acrescentei nenhuma menção sobre isso em minha carta. Selei o
envelope e, não podendo confiar em outras mãos, entreguei-a pessoalmente
naquela tarde.
Naquela noite, a última do ano, por volta de nove horas, um homem com
trajes negros bateu à minha porta, pediu para ver-me e seguiu meu criado,
Ernesto Defarge, que era então um rapazote, pela escada. Quando Defarge
entrou no aposento onde me encontrava com minha esposa, oh, minha esposa,
querida do meu coração! Minha bela e jovem esposa inglesa!, nós vimos o
homem, que julgávamos estar ao portão, postado em silêncio atrás do criado.
— Um caso urgente na rue Saint Honoré — ele anunciou. — Tenho aí uma
carruagem à espera e logo o senhor estará de volta.
Aquela carruagem me trouxe para cá, para o meu túmulo. Assim que
perdemos minha casa de vista, cobriramme a boca com uma faixa e ataram-me
os braços atrás das costas.
Os dois irmãos saíram de uma escura esquina e, atravessando a rua,
identificaram-me com um simples gesto. O marquês tirou do bolso a carta que
eu havia escrito, mostrou-me, queimou-a à luz de um lampião e afastou as cinzas
com os pés. Nem uma palavra fora pronunciada. Fui trazido para cá, para serenterrado vivo.
Se aprouvesse a Deus colocar no duro coração de um dos dois irmãos, em
todos estes terríveis anos, a idéia de enviar-me notícias de minha amada esposa,
de deixar-me saber, ao menos, se está morta ou se ainda vive, julgaria que o
Senhor não os havia abandonado de todo. Agora, porém, acredito que a marca da
cruz sangrenta lhes será fatal e que não partilham da misericórdia divina. E a
eles, bem como a seus descendentes, até o último da família, eu, Alexandre
Manette, infeliz prisioneiro, nesta última noite do ano de 1767, em minha
insuportável agonia, denuncio para que prestem contas quando chegar o tempo
de responder por todas essas coisas. Eu os denuncio aos céus e à terra.”
Um tremendo alarido ergueu-se quando a leitura do documento foi
concluída. Era um som de ânsia e impaciência que nada tinha de articulado,
senão a palavra “sangue”. A narrativa fizera surgir a mais vingativa das paixões
de todos os tempos, e não havia uma só cabeça na França que se sustentasse
diante dela.
Ocioso explicar, tendo em vista aquele tribunal e aquela platéia, por que os
Defarge não haviam divulgado o documento junto com os outros encontrados na
Bastilha, escondendo-o até aquele dia. Como também é desnecessário explicar
por que esse detestado sobrenome havia muito fora excomungado por Santo
Antônio e inscrito no registro fatal. Uma vida inteira de virtudes e bons serviços
não era suficiente, naquele dia, para defender um homem contra tal denúncia.
Tanto pior, para o infeliz prisioneiro, que o denunciante fosse um cidadão
conhecido, seu próprio e íntimo amigo, o pai de sua esposa. Uma das aspirações
mais exaltadas da população consistia em imitar as questionáveis virtudes
públicas da Antiguidade[260], e promover sacrifícios e autoimolações no altar do
povo. Por esse motivo, quando o presidente do júri declarou (se não o fizesse, não
teria a cabeça segura sobre os ombros) que o bom médico da República seria
ainda mais digno dela por colaborar para a erradicação de uma odiosa família de
aristocratas e que, sem dúvida, sentiria um sagrado júbilo ao tornar sua filha
viúva e sua neta, órfã, suas palavras provocaram uma selvagem excitação e um
fervor patriótico e nenhum toque de compaixão.
— Grande influência em seu favor? — murmurou madame Defarge,
sorrindo para “A Vingança”. — Salve-o agora, meu doutor, salve-o!
A cada voto dos jurados correspondia um clamor. E outro, e mais outro.
Clamor e clamor.
Votação unânime. No coração e por descendência um aristocrata, um
inimigo da República, um notório opressor do Povo. De volta para a
Conciergerie, e morte em vinte e quatro horas![261] XI. Anoitecer
CAPÍTULO XI
ANOITECER
A infeliz esposa do inocente condenado à morte curvou-se, ao ouvir a sentença,
como se atingida por um golpe mortal. Não proferiu, contudo, uma só palavra.
Tão forte era a voz interior que a aconselhava a amparar o marido naquele
momento terrível, em vez de aumentar-lhe o sofrimento, que ela reagiu contra o
choque.
Como os juízes deviam tomar parte numa manifestação pública, as sessões
seguintes do tribunal foram adiadas. O alarido e a movimentação provocados
pelo apressado esvaziamento da corte, através das várias portas, ainda não havia
cessado quando Lucie deteve-se em frente ao banco dos réus e estendeu os
braços para Charles, com o semblante nada expressando além de amor e
consolo.
— Se eu pudesse tocá-lo! Se o pudesse abraçar ao menos uma vez! Oh, bons
cidadãos, suplico-lhes que tenham compaixão!
Apenas um dos carcereiros permanecera ali, além de dois dos quatro
homens que prenderam Charles na noite anterior e de Barsad. Todos os demais
haviam saído para assistir ao espetáculo nas ruas. Barsad propôs aos
companheiros:
— Deixem-na abraçar o marido. É apenas um momento.
Os outros aquiesceram silenciosamente e ajudaram-na a saltar sobre os
bancos do pretório até o tablado onde ele, inclinando-se sobre a grade, pôde
apertá-la nos braços.
— Adeus, amada da minha alma. Aceite a minha última bênção. Nós nos
tornaremos a encontrar ali onde repousam os cansados![262]
Essas foram as palavras de Charles Darnay, ao aconchegá-la junto ao peito.
— Eu posso suportar, Charles querido. Tenho o amparo de Deus, por isso não
sofra por mim. Conceda sua derradeira bênção à nossa filha.
— Abençoe-a e dê-lhe um beijo em meu nome. Diga adeus a ela por mim.
— Meu marido. Não! Um momento mais! — Ele se estava afastando dela.
— Não ficaremos separados por muito tempo. Sinto que meu coração se
despedaçará, mas cumprirei meu dever enquanto tiver forças. E quando eu
deixar nossa filha, Deus lhe dará amigos como os deu a mim. Seu pai a havia
seguido e se teria ajoelhado perante ambos se Darnay não o impedisse,
segurando-o e bradando:
— Não, não. Por que se ajoelharia diante de nós? O senhor nada fez de mal,
não há por que sentir-se culpado. Sabemos agora da luta que teve de enfrentar eo quanto sofreu quando suspeitou de meu nome de família. Compreendemos a
antipatia instintiva que sentiu por mim, a princípio, e que conseguiu vencer, por
amor a Lucie. Nós lhe agradecemos de coração, com nosso amor e respeito.
Que o céu o proteja!
Por única resposta, o doutor levou as mãos aos cabelos brancos, soltando um
grito de angústia.
— Não podia ser de outro modo — prosseguiu o prisioneiro. — Todas as
circunstâncias contribuíram para esse resultado. Foi o meu inútil esforço para
cumprir o último desejo de minha pobre mãe que guiou minha presença fatal até
o senhor. O bem jamais resultaria do mal, nem se poderia esperar que tão infeliz
começo conduzisse a um final feliz. Conforme-se e perdoe-me. Deus o abençoe!
A esposa desprendeu-se dele ao ver que o vinham bus-car. Fitou-o de mãos
postas em atitude de prece e, no momento em que o marido se afastou, iluminou
o semblante com um sorriso confortador. Vendo-o desaparecer na porta
reservada aos prisioneiros, virou-se, apoiou ternamente a cabeça no peito do pai,
tentou falar-lhe e caiu, desfalecida, a seus pés.
Então, saindo do canto escuro da sala onde se ocultara, Sydney Carton
correu e tomou-a nos braços. Somente o pai e o senhor Lorry estavam com ela.
O braço de Carton tremeu ao erguê-la do chão. A compaixão que se lia em seu
rosto não era, contudo, desprovida de laivos de orgulho.
— Devo levá-la a um coche? — disse consigo mesmo. — Nunca senti a
leveza de seu corpo.
Transportou-a com infinito cuidado e deitou-a sobre as almofadas do coche.
O doutor Manette e seu velho amigo Lorry também entraram e ele acomodou-se
ao lado do cocheiro.
Quando chegaram ao portão onde, apenas algumas horas antes, ele se
detivera, tentando adivinhar na escuridão da noite em que pedras ela deixara a
marca de seus passos, Carton tornou a erguê-la nos braços e carregou-a pela
escada até seus aposentos. Depositou-a sobre um divã e, imediatamente, a filha e
a senhorita Pross a rodearam.
— Não a chamem de volta a si — ele advertiu a senhorita Pross com
brandura —, ela está melhor assim, na inconsciência de seu sofrimento
— Oh, senhor Carton, querido senhor Carton! — chorava a pequena Lucie,
enlaçando-o, comovida, numa explosão de dor. — Agora que veio, acho que fará
alguma coisa para ajudar mamãe e para salvar papai! Oh, olhe para ela, querido
senhor Carton! Pode o senhor, entre todas as pessoas que a amam, suportar vê-la
nesse estado?
Ele curvou-se para a menina e encostou a face no rostinho rosado. Em
seguida, afastando-a brandamente, contemplou a mãe desfalecida.
— Antes que eu me vá — Carton fez uma pausa —, será que posso beijá-la?
Lembraram-se depois de tê-lo ouvido murmurar algumas palavras, quando
se inclinou para tocar-lhe a face com seus lábios. A menina, que estava mais
perto dele, contoulhes depois, como contou também na sua velhice aos netinhos,
que o ouvira proferir essas palavras: “Por uma vida que lhe é tão cara”.
Ao sair do quarto, encontrou-se de súbito com o senhor Lorry e o doutor e
disse a este:— Exerceu grande influência ontem, doutor Manette. Experimente exercê-
la hoje novamente. Os juízes e todos esses homens que ocupam o poder o
apreciam e são-lhe gratos por seus serviços, não é verdade?
— Bem, eles não esconderam de mim nada que se referisse a Charles. Eu
tinha plena certeza de que o salvaria e o fiz — ele respondeu, perturbado, falando
vagarosamente.
— Tente de novo. São poucas as horas de que dispomos, mas tente assim
mesmo.
— É essa a minha intenção. Não descansarei um momento sequer.
— Muito bem. Já vi antes pessoas com uma energia como a sua levarem a
cabo grandes empreendimentos, embora nenhum... — acrescentou com um
suspiro e um leve sorriso — ...tão grande assim. Mas, tente! Por menos valor que
tenha a vida quando é desperdiçada, vale, contudo, a pena defendêla. Se assim
não fosse, não custaria abandoná-la.
— Eu irei — anunciou o médico — direto ao promotor e ao presidente e
procurarei outras pessoas que prefiro nem nomear. Também escreverei e...
Espere! Há uma demonstração pública nas ruas. Não encontrarei ninguém antes
do anoitecer.
— Tem razão. Bem! As esperanças são tão poucas que esse atraso não
prejudica muito. A que horas julga que terminarão as entrevistas com todas essas
temíveis autoridades, doutor Manette?
— Logo após o anoitecer, espero. Dentro de uma ou duas horas.
— Escurecerá pouco depois das quatro. Vamos estender essas duas horas. Se
eu for à casa do senhor Lorry por volta das nove, acha que já terei notícias do
que conseguiu, por seu intermédio ou de seu amigo?
— Sem dúvida.
— Então, boa sorte!
O senhor Lorry acompanhou Sydney Carton até a porta da rua e, pousando
a mão em seu ombro, fez que ele se virasse.
— Não tenho a menor esperança — confidenciou o senhor Lorry num
murmúrio tristonho.
— Nem eu, tampouco.
— Se esses homens estivessem dispostos a poupá-lo, o que é supor muito,
pois o que representa a vida de Darnay, ou a de qualquer outro, para eles?, duvido
que ousassem libertálo, depois daquela demonstração de júbilo no tribunal.
— Sou da mesma opinião. Ouvi o ruído do cutelo naquele alarido. O senhor
Lorry apoiou o braço no umbral e curvou a cabeça.
— Não se deixe abater — disse Carton com delicadeza —, não se
atormente. Encorajei o doutor Manette a agir porque senti que isso talvez um dia
sirva de consolo para sua filha, para que ela jamais se aflija com a idéia de que
“a vida dele foi cruelmente atirada fora”.
— Sim, sim, tem razão — concordou o senhor Lorry, enxugando os olhos —,
porém Charles morrerá de qualquer maneira. Não resta nenhuma esperança.
— Sim. Ele morrerá, não há mais nenhuma esperança
— ecoou Carton. E desceu a escada com passo firme. XII. Trevas
CAPÍTULO XII
TREVAS
Na rua, Sydney Carton parou, indeciso, sem saber aonde ir.
— Devo regressar ao Tellson às nove — murmurou, com ar pensativo. —
Será que ajo bem, mostrando-me por aí neste ínterim? Acho que sim. É
preferível que saibam da minha existência. Trata-se de uma boa precaução,
talvez até de um preparativo essencial. Mas é preciso cuidado, muito cuidado. É
melhor refletir um pouco mais.
Examinando a tendência dos próprios passos num determinado sentido, ele
deu uma ou duas voltas pela rua já ensombreada pelo final da tarde e analisou as
possíveis conseqüências de sua idéia.
— É melhor — tornou pensar num murmúrio, finalmente decidido — que
essas pessoas saibam da minha existência.
E ele se virou na direção de Santo Antônio.
Naquele dia, Defarge se havia descrito como um taberneiro do subúrbio de
Santo Antônio. Não seria difícil, para alguém que, como ele, conhecia bem a
cidade, localizar a taberna sem precisar fazer perguntas. Tendo traçado seu plano
de ação, Carton voltou a caminhar pelas ruas, jantou numa estalagem e, em
seguida, adormeceu. Era a primeira vez, em muitos anos, que bebia pouco.
Desde a noite anterior, bebera apenas um pouco de vinho suave, tendo
derramado o conhaque lentamente na lareira do senhor Lorry num gesto de
quem renuncia ao vício.
Eram sete horas quando despertou e, refeito, tornou a sair. No caminho para
Santo Antônio, parou diante de uma vitrina onde havia um espelho e arrumou a
gravata, o colarinho e os cabelos revoltos. Isso feito, encaminhou-se diretamente
para a taberna de Defarge.
Por acaso, não havia fregueses lá, com exceção de Jacques terceiro, aquele
dos dedos inquietos e da voz cacarejada. Esse homem, que estivera entre os
jurados, bebia junto do balcão e conversava com o casal Defarge. “A Vingança”
assistia à conversação, na qualidade de membro regular do estabelecimento.
Quando Carton entrou, sentou-se numa cadeira e pediu (num francês
absolutamente medíocre) uma pequena medida de vinho, madame Defarge
lançou-lhe um olhar destituído de interesse e, em seguida, olhou-o de novo, dessa
vez de modo penetrante e atento. Aproximou-se dele e indagou-lhe o que havia
pedido.
Ele repetiu que desejava uma pequena medida de vinho.
— Inglês? — inquiriu madame Defarge, erguendo as sobrancelhas escuras.Depois de fitá-la como se o simples som de uma única palavra em francês
lhe fosse impossível de decifrar, ele respondeu, com um forte sotaque
estrangeiro:
— Sim, madame, sim. Eu sou inglês!
Madame Defarge retornou ao balcão para apanhar o vinho. Enquanto se
debruçava sobre um jornal jacobino[263], fingindo um grande esforço para
entender alguma coisa, ele ouviu-a comentar:
— Eu lhe juro, é idêntico a Evrémonde! Defarge trouxe-lhe o vinho e
desejou-lhe “boa noite”.
— Como?
— Boa noite.
— Oh! Boa noite, cidadão — encheu o copo. — Ah! Que vinho bom! Um
brinde à República! Defarge voltou para o balcão e disse:
— De fato, é um pouco parecido. Madame retorquiu com autoridade:
— Pois eu lhe afirmo que é muito parecido. Jacques terceiro interveio,
conciliador:
— Decerto é porque ele não lhe sai do pensamento, madame. A amigável
“Vingança” acrescentou, rindo:
— É verdade! Além disso, você está muito ansiosa pelo prazer de vê-lo
amanhã!
Carton seguia as linhas e palavras do jornal com o dedo, simulando grande
concentração na leitura. Os outros, com os cotovelos apoiados no balcão,
confabulavam em voz baixa. Após uma pausa, durante a qual todos o
examinaram sem lhe distrair a atenção do editorial jacobino, retomaram a
conversa.
— Madame está coberta de razão — observou Jacques terceiro. — Por que
parar? Há uma grande força em tudo isso. Por que parar?
— Certo, certo — ponderou Defarge —, mas é preciso parar em algum
momento. A questão é: quando?
— Após o extermínio — ripostou madame.
— Magnífico! — cacarejou Jacques terceiro. “A Vingança” também
aprovou sem reservas.
— Extermínio é uma boa doutrina, cara esposa — argumentou Defarge, um
tanto perturbado. — Em geral, não tenho nada contra ela. O doutor, porém, já
sofreu demais. Você o viu hoje, notou sua expressão quando o papel foi lido.
— Eu notei a expressão dele! — ecoou madame, desdenhosa e irada. —
Sim, eu notei a expressão dele. Eu notei que não é a expressão de um verdadeiro
amigo da República. Ele que se preocupe com a própria expressão!
— E você observou, minha cara esposa — prosseguiu Defarge, em tom de
súplica —, a angústia da filha, que deve tê-lo atormentado terrivelmente!
— Eu observei a angústia da filha — tornou a ecoar madame. — Sim, eu
observei a filha mais de uma vez. Eu a observei hoje como a observei em outros
dias. Eu a observei na corte e também na esquina em frente à prisão. E me basta
levantar um dedo!... — ela pareceu levantá-lo (os olhos do freguês continuavam
presos ao jornal) e deixá-lo cair com um ruído seco na borda do balcão, como se
fosse o cutelo da guilhotina.— A cidadã é soberba! — cacarejou o jurado.
— Ela é um anjo! — exclamou “A Vingança”, abraçando-a.
— E quanto ao senhor — continuou madame, implacável, dirigindo-se ao
marido —, se dependesse de sua vontade, o que, felizmente, não acontece, o
senhor se apressaria a salvar aquele homem.
— Não! — protestou Defarge. — Contudo, não iria mais longe. Pararia aí.
— Veja você, Jacques — bradou madame Defarge, encolerizada —, e você
também, minha pequena “Vingança”. Vejam, os dois! Ouçam! Por outros
crimes, além de tirania e opressão, eu tenho toda essa raça há muito tempo em
meus registros, como condenados à destruição e ao extermínio. Perguntem ao
meu marido se é ou não verdade.
— É verdade — confirmou Defarge, sem ser perguntado.
— No início dos grandes dias, quando a Bastilha caiu, ele encontrou esse
papel de hoje e trouxe-o para casa. No meio da noite, depois de fecharmos a
taberna, nós o lemos, aqui mesmo, junto do balcão, à luz de velas. Perguntem-lhe
se é ou não verdade.
— É verdade — concordou Defarge.
— Naquela noite, eu lhe disse, quando acabamos de ler e a vela se apagou,
enquanto o dia clareava lá fora, que eu tinha um segredo para lhe revelar.
Perguntem-lhe se é verdade.
— É verdade — Defarge tornou a concordar.
— Eu lhe revelei o segredo. Eu bati neste peito com minhas duas mãos
como bato agora e lhe disse: “Defarge, eu cresci entre os pescadores no litoral
porque aqueles camponeses tão injuriados pelos dois irmãos Evrémonde, como
descreve o papel da Bastilha, eram a minha família. Defarge, aquela irmã do
rapaz mortalmente ferido era minha irmã, aquele marido era meu cunhado, a
criança não nascida era filha deles, o rapaz era meu irmão, aquele pai era o meu
pai, aqueles mortos são os meus mortos, e esse fato me dá o direito de pedir
contas desses assassinatos a todos os descendentes dos Evrémonde”. Perguntem-
lhe se é verdade ou não.
— É verdade — concordou Defarge mais uma vez.
— Então, diga ao vento e ao fogo quando devem parar — replicou madame
—, não a mim.
Ambos os ouvintes extraíram uma tenebrosa satisfação da natureza letal do
ódio dela (o freguês pôde perceberlhe a palidez mesmo sem vê-la) e elogiaram-
na profusamente. Defarge, compondo uma fraca minoria, interpôs algumas
palavras em favor da compassiva esposa do marquês, conseguindo obter da
esposa apenas a repetição de sua última réplica:
— Diga ao vento e ao fogo quando devem parar, não a mim.
Outros fregueses entraram e o grupo se dispersou. O inglês pagou pelo
vinho, contou o troco com grande dificuldade, e pediu, como um estrangeiro que
não conhece a cidade, que lhe indicassem o caminho para o Palácio Nacional.
Madame Defarge levou-o até a porta, pousou o braço no dele e apontou a
direção. Pelas reflexões do inglês, pas-sou a idéia de que talvez fosse um ato
louvável agarrar aquele braço, erguê-lo e cravar um punhal até o cabo em suas
costelas.Entretanto, seguiu seu caminho e logo foi tragado pelas sombras do muro da
prisão. Na hora combinada, emergiu delas para apresentar-se nos aposentos do
senhor Lorry, onde encontrou o velho cavalheiro andando de um lado para o
outro com ansiosa inquietude. Ele lhe anunciou que estivera com Lucie até pouco
antes e que só a deixara por alguns instantes, para cumprir o compromisso. Não
haviam visto mais o doutor Manette desde que este saiu do Tellson por volta das
quatro da tarde. Lucie alimentava algumas esperanças de que a intercessão de
seu pai pudesse salvar Charles, mas as possibilidades eram bastante escassas. Já
fazia mais de cinco horas que o médico saíra: onde poderia estar?
O senhor Lorry esperou até as dez. Contudo, como o doutor Manette não
havia ainda regressado, e como ele não desejava que Lucie permanecesse
sozinha, decidiu volver à casa dela e retornar ao banco à meia-noite. Nesse
ínterim, Carton esperaria sozinho, junto da lareira, pelo doutor.
Carton esperou e esperou, e o relógio bateu doze vezes. Mas o doutor
Manette não voltou. O senhor Lorry chegou, sem achar nem trazer notícias do
médico. Onde ele poderia estar?
Ambos discutiam essa questão, já começando a construir uma frágil
estrutura de esperança com base em sua prolongada ausência, quando o ouviram
subir a escada. No momento em que ele entrou no aposento, já não havia dúvidas
de que tudo estava perdido.
Se ele realmente procurara alguém ou se apenas vagara pelas ruas, nunca
se soube. Eles o viram ali, parado, e não lhe fizeram nenhuma pergunta, pois seu
semblante era eloqüente o bastante.
— Não consigo encontrá-lo — disse —, e preciso tanto dele. Onde o
puseram? Sem chapéu e sem gravata, esquadrinhou o quarto com ar de
desamparo e deixou cair a casaca no chão.
— Onde está meu tamborete? Procurei-o por toda a parte e não o encontrei.
O que fizeram com o meu trabalho? O tempo urge, preciso terminar aqueles
sapatos. Carton e o senhor Lorry se entreolharam, sentindo o coração falhar.
— Andem, vamos! — o doutor prosseguiu, com um tom lamurioso e infeliz
—, devolvam meu trabalho. Preciso terminar os sapatos. Não recebendo
resposta, começou a puxar os próprios cabelos e a sapatear no chão como uma
criança malcriada.
— Não torturem um pobre desgraçado — implorou, num brado assustador
—, devolvam meu trabalho! O que será de nós, se eu não terminar aqueles
sapatos esta noite?
Perdido, irremediavelmente perdido.
Era tão evidentemente inútil argumentar com ele, ou tentar chamá-lo à
razão, que, num acordo tácito, os dois pousaram a mão em seu ombro e o
guiaram gentilmente até uma cadeira perto do fogo, prometendo-lhe devolver o
tamborete o quanto antes. O doutor afundou na cadeira e contemplou as chamas
com os olhos cheios de lágrimas. Como se tudo o que acontecera desde o tempo
da água-furtada não tivesse passado de uma quimera, de um breve sonho, o
senhor Lorry viu-o transformar-se na mesma figura que Defarge mantivera no
sótão.
Por mais abalados e aterrorizados que estivessem com o pavorosoespetáculo da ruína do doutor Manette, sabiam que aquele não era o momento de
expressar tais emoções. A lembrança de sua única filha, despojada de sua última
fonte de esperança, impunha-se mais forte do que tudo. Mais uma vez num
acordo tácito, eles se entreolharam imbuídos do mesmo sentimento. Carton foi o
primeiro a romper o silêncio:
— Foi-se a última chance: não era muito grande, portanto não há o que
lamentar. Sim, creio que deve levá-lo para junto da filha. Contudo, antes que o
senhor se vá, poderia ouvir-me por um instante? Não me pergunte por que
imponho as condições que pretendo impor nem por que lhe suplico a promessa
que pretendo suplicar-lhe. Eu tenho um bom motivo para agir assim.
— Não duvido — replicou o senhor Lorry. — Pode falar.
O homem na cadeira entre ambos balançava-se monotonamente de um
lado para o outro, lamentando-se. Os dois conversaram em voz baixa, como se
velassem o sono irrequieto de um enfermo.
Carton abaixou-se para apanhar a casaca que jazia amarfanhada aos pés
dele. Ao fazê-lo, uma pequena pasta, na qual o doutor costumava carregar a lista
de suas obrigações diárias, escorregou para o chão. Carton abriu-a e viu uma
folha de papel dobrada.
— Acho que devíamos verificar de que se trata.
O senhor Lorry sacudiu a cabeça em assentimento. Carton desdobrou a
folha e exclamou:
— Graças a Deus!
— O que está escrito aí? — indagou o senhor Lorry, com ansiedade.
— Só um momento! Deixe-me primeiro contar-lhe sobre isto. — Ele pôs a
mão no bolso e retirou outro documento. — Este é o certificado que me autoriza
a sair da cidade. Preste atenção: Sydney Carton, inglês, certo? O senhor Lorry
segurou o papel, dirigindo-lhe à face um olhar esgazeado.
— Guarde-o para mim até amanhã. Eu irei visitar Darnay amanhã na
prisão, lembra-se? Não é prudente leválo comigo.
— Por que não?
— Não sei. Mas prefiro não o levar. Agora, examine esse documento do
doutor Manette. É um certificado similar, que autoriza o doutor, a filha e a neta a
passarem pela barreira a qualquer tempo. Correto?
— Sim.
— Talvez ele o tenha obtido ontem como sua última e maior precaução
contra a desgraça. De quando é a data? Não importa. Não perca tempo
examinando-o. Coloque-o cuidadosamente junto com o meu e o seu. Agora,
escute! Eu jamais duvidei, até uma ou duas horas atrás, que ele tivesse, ou
pudesse ter, esse salvo-conduto. O documento é válido, até que o anulem, o que
pode acontecer a qualquer instante. Tenho razões para supor que acontecerá em
breve.
— Então, eles correm perigo?
— Um grande perigo. Ouvi da própria boca de madame Defarge que ela
pretende denunciá-los. Sem que notassem, eu a escutei traçar com cores fortes a
extensão do perigo que os ameaça. Não desperdicei um segundo mais e procurei
o espião, que me confirmou tudo. Um determinado serrador, que mora perto daprisão e é controlado pelos Defarge, foi treinado por madame para declarar tê-la
visto — ele nunca pronunciava o nome de Lucie — fazendo sinais e acenando
para os prisioneiros. É fácil prever que a acusação será a usual, conspiração, e
porá em risco a sua vida e talvez a da menina, provavelmente também a do pai,
pois tanto o serrador quanto madame viram-no com a filha no mesmo local. Não
se aflija tanto. O senhor os salvará.
— Queira Deus, Carton! Mas, como?
— Eu lhe direi como. Tudo dependerá do senhor, e não poderia depender de
ninguém melhor. Essa nova denúncia certamente só ocorrerá depois de amanhã,
ou nos dois ou três dias subseqüentes. Talvez ainda demore uma semana. Como
sabe, lamentar ou simpatizar com uma vítima da guilhotina constitui crime
capital. Ela e o pai serão indiscutivelmente culpados desse ato criminoso, e
aquela mulher (cuja perseguição implacável não é possível descrever) esperaria
para acrescentar mais esse delito à sua denúncia, assegurando-se duplamente da
vitória. Está acompanhando meu raciocínio?
— Com tanta atenção e confiança em suas palavras que, por um minuto,
cheguei a esquecer — o senhor Lorry tocou o espaldar da cadeira do doutor —
esse infortúnio.
— O senhor dispõe de dinheiro e pode providenciar os meios de viagem
mais adequados para chegar rapidamente à costa. Os seus preparativos para
retornar a Londres já estão concluídos há alguns dias. Amanhã cedo, apronte os
cavalos para que todos possam partir às duas da tarde.
— Assim farei!
Carton mostrava-se tão fervoroso e inspirador que o senhor Lorry se
entusiasmou e revelou-se ágil como na juventude.
— O senhor tem um coração nobre. Eu não disse que não poderíamos
depender de um homem melhor? Conte-lhe, esta noite, tudo o que sabe sobre a
ameaça que paira sobre a filha e o pai. Insista nesse ponto, pois ela alegremente
pousaria a linda cabeça na guilhotina junto com a do marido — sua voz falhou
por um instante; então, prosseguiu com a firmeza de antes. — Ressalte que, pelo
bem de sua filha e de seu pai, ela tem de sair de Paris com eles às duas horas.
Argumente que esse é o último desejo de Darnay. Enfatize que em suas mãos
repousa o destino daqueles a quem ama, pois acredita que o pai, mesmo nessa
triste condição, a seguirá e obedecerá. Acredita nisso, não?
— Tenho certeza.
— Foi o que pensei. Sem alarde, arranje para que estejam todos prontos
aqui no pátio. Mesmo o senhor deverá aguardar-me dentro do coche. Assim que
eu chegar, partiremos.
— Devo esperá-lo em quaisquer circunstâncias?
— O senhor estará com meu salvo-conduto e reservará um lugar para mim.
Espere até meu lugar ser ocupado e parta para a Inglaterra!
— Muito bem — retrucou o senhor Lorry, agarrandolhe a mão ansiosa,
porém firme —, vejo que a situação não dependerá apenas deste velho, mas
também do jovem ardoroso que terei a meu lado.
— Que os céus permitam que assim seja! Prometa-me solenemente que
nada o fará alterar este plano que acabamos de traçar.— Nada, Carton.
— Lembre-se dessas palavras amanhã: se mudar ou atrasar nossos planos,
por qualquer razão, nenhuma vida poderá ser salva, e muitas vidas terão de ser
sacrificadas.
— Não esquecerei. Espero cumprir a minha parte fielmente.
— E eu espero cumprir a minha. Agora, adeus!
Conquanto houvesse pronunciado seu pequeno discurso com um sorriso
grave e sincero, e embora houvesse mesmo levado as mãos do velho aos lábios,
não se separou dele de imediato. Em vez disso, ajudou-o a erguer o homem que
se balançava de um lado para o outro em frente às chamas da lareira, agasalhou-
o com uma capa e convenceu-o a acompanhá-los, alegando que iam em busca
do tamborete e do trabalho inacabado pelos quais o homem ainda suplicava.
Deu-lhe o braço, amparando-o e protegendo-o ao longo do caminho até o pátio
da casa onde o coração aflito, tão feliz no memorável tempo em que lhe revelou
as aflições de seu próprio coração, velava a terrível noite. Ele entrou no pátio e
ali permaneceu por alguns minutos, sozinho, contemplando a luz que vinha do
quarto dela. Antes de ir embora, suspirou uma bênção em sua direção e
sussurrou: “Adeus”.XIII. Cinquenta e Duas Cabeças
CAPÍTULO XIII
CINQÜENTA E DUAS CABEÇAS
Na escura prisão de Conciergerie, os que deviam morrer aguardavam seu
destino. Eram em número igual ao das semanas do ano. Dos vagalhões da cidade
para o oceano eterno e infinito, cinqüenta e duas cabeças rolariam naquela
tarde[264]. Antes que esvaziassem suas celas, novos ocupantes eram designados;
antes que seu sangue se misturasse ao sangue derramado na véspera, aquele que
se misturaria ao deles já estava separado.
Cinqüenta e dois condenados. Desde o rendeiro de setenta anos, cujas
riquezas não lhe podiam comprar a vida, até a costureira de vinte anos[265], cuja
pobreza e obscuridade não a puderam salvar. As doenças físicas, engendradas
nos vícios e negligências dos homens, agarram suas presas em todas as classes
sociais. E a temível desordem moral, nascida de um indescritível sofrimento, de
uma opressão intolerável e de uma desalmada indiferença, também ceifava sem
fazer distinções de qualquer natureza.
Charles Darnay, sozinho em sua cela, deixara de apegar-se a qualquer ilusão
desde que saíra do tribunal. Em cada linha da narrativa que ouvira, ouvira sua
condenação. Compreendera que nenhuma influência pessoal poderia salvá-lo,
que fora virtualmente sentenciado por milhões de votos e que simples unidades
nenhum benefício poderiam trazer-lhe.
Contudo, não era fácil, tendo diante dos olhos a imagem de sua amada
esposa, convencer seu espírito a resignar-se com o que deveria suportar. Laços
poderosos o prendiam à vida e era muito, muito difícil rompê-los. Quando, por
meio de esforços, conseguia aos poucos afrouxá-los, logo sentia-os apertarem-se
ainda mais; e quando buscava energia em sua mente para apoiar-se, esta lhe
faltava. Além disso, havia um sentimento de urgência em todos os seus
pensamentos, uma turbulenta e acalorada batalha travada em seu coração contra
o conformismo. Se, por um momento, ele se conformava com a sua sorte,
parecia-lhe ouvir os protestos da esposa e da filha, que teriam de sobreviver a
ele, recriminando-o pela atitude egoísta.
Esses conflitos, porém, assaltaram-no apenas no início. Não tardou em que a
consideração de que não havia desonra no destino que o aguardava, que
inúmeras pessoas seguiam o mesmo injusto caminho, trilhando-o com firmeza
todos os dias, surgiu para estimulá-lo. Depois, seguiu-se a idéia de que muito da
futura paz de espírito de que seus entes queridos desfrutariam dependia de ele
demonstrar uma serena fortitude. Assim, gradualmente, alcançou um estado de
bem-vinda tranqüilidade, que lhe permitiu elevar os pensamentos e deles extrair
conforto.Antes de se espalharem as trevas da noite de sua condenação, sua mente
havia, assim, alçado seu derradeiro vôo. Tendo conseguido comprar papel, pena
e tinta, além de uma vela, sentou-se para escrever até a hora em que as luzes da
prisão teriam de extinguir-se.
Escreveu uma longa carta para Lucie[266], dizendo-lhe que nunca havia
sabido coisa alguma acerca da prisão de seu pai até ela mesma lhe contar, e, até
o momento em que fora lido o documento no tribunal, ignorara o papel que seu
próprio pai e seu tio haviam representado naquela infâmia. Também explicou
que lhe ocultou o nome ao qual renunciara por ser essa a única condição, agora
inteiramente compreensível, que o doutor lhe impôs no acordo de noivado e por
ser a promessa que fez a ele na manhã do casamento. Rogou-lhe, pelo bem de
seu pai, que jamais procurasse descobrir se o doutor esquecera por completo a
existência daquelas folhas ou se a recordara (momentaneamente ou para
sempre) ao ouvir a narrativa do episódio ocorrido na Torre, naquele longínquo
domingo, sob a sombra do plátano. Se ele preservara uma lembrança definitiva,
decerto julgara que o documento fora destruído junto com a Bastilha, já que não
fora mencionado em nenhum dos relatórios acerca das relíquias dos prisioneiros
que o populacho descobrira ali e que foram divulgados para o mundo inteiro.
Suplicou-lhe, embora acrescentando saber que era desnecessário, que consolasse
o pai, empregando todos os meios que a ternura lhe inspirasse para fazê-lo ver
que, na verdade, não tinha motivos para sentir-se culpado, enfatizando que, ao
invés, ele fora capaz dos maiores sacrifícios pela filha e pelo genro. Por fim,
enviou-lhe seu eterno amor e implorou-lhe que vencesse a dor e se dedicasse à
filha. Uma vez mais, insistiu para que confortasse o pai até o momento em que
todos se reunissem no céu.
Para o sogro, escreveu algo no mesmo estilo, mas declarando que confiava
a esposa e a filha aos seus cuidados. Enfatizou esse ponto, na esperança de que
pudesse arrancá-lo do desalento e livrá-lo da ameaça de uma crise provocada
pelas funestas recordações, que receava o estivesse rondando.
Para o senhor Lorry, pediu-lhe que zelasse por todos e descreveu-lhe as
condições em que deixava seus negócios. Isso feito, e depois de acrescer várias
linhas acerca de sua gratidão e amizade, deu a correspondência por encerrada.
Não pensou em Carton. Sua mente estava tão concentrada naqueles a quem
amava, que nem sequer lhe ocorreu pensar nele.
Darnay teve tempo de terminar as cartas antes do apagar das luzes. Quando
se estendeu no catre, refletiu que, para ele, tudo estava acabado neste mundo.
Mundo que, entretanto, acenou-lhe em seu sono, revelando-se nas cores
mais brilhantes. Livre e feliz, de volta à velha casa do Soho (embora, no sonho,
fosse totalmente di-versa da casa real), indescritivelmente aliviado e de coração
leve, ele estava novamente com Lucie, que lhe dizia que fora um pesadelo, que
ele jamais havia partido. Uma pausa de esquecimento, e então ele foi executado,
mas regressou para ela, morto e em paz, sem ter sofrido qualquer mudança.
Outra pausa de esquecimento e ele acordou na cela sombria, inconsciente de
onde estava e do que acontecera até que a lembrança assomou-lhe à memória:
“este é o dia da minha morte!”.
Assim chegou ele, através de longas horas, ao dia em que cinqüenta e duascabeças iriam rolar. E agora, calmo e esperançoso de que pudesse enfrentar seu
fim com sereno heroísmo, novas dúvidas apossavam-se de sua mente, dúvidas
difíceis de controlar.
Nunca vira o instrumento que poria fim à sua vida. De que altura seria o
cadafalso, quantos degraus teria, onde deveria postar-se, que mãos iriam tocá-lo,
estariam elas manchadas de sangue, para que lado deveria virar a cabeça, seria
o primeiro ou o último a morrer? Estas e muitas outras perguntas da mesma
ordem lhe acudiam à idéia, de modo algum dirigidas por sua vontade, impondo-
se vezes sem conta. Não eram produzidas pelo medo, pois não sentia nenhum.
Eram, antes, fruto de um estranho desejo de saber o que fazer quando se
aproximasse o momento. Um desejo gigantescamente desproporcional aos
poucos e rápidos instantes a que se referiam, uma curiosidade que parecia vir de
um outro espírito encerrado dentro do seu, e não de si mesmo.
As horas passavam, ele vagava de um lado para o outro, e os relógios
batiam os números que jamais ouviria de novo. Nove horas, foram-se para
sempre; dez... onze horas, foram-se para sempre; meio-dia prestes a ir-se para
sempre. Após uma árdua luta contra os excêntricos pensamentos que o haviam
atordoado, ele vencera. Caminhava de um lado para o outro, repetindo
suavemente os nomes adorados. O pior do embate havia passado. Podia andar de
um lado para o outro, livre de fantasias perturbadoras, rezando por si e por
aqueles a quem amava.
Meio-dia, foi-se para sempre.
Fora informado de que o número três correspondia à derradeira hora de sua
vida, e ele sabia que viriam buscálo um pouco antes, para que os carros
mortuários pudessem chegar a tempo. Assim sendo, considerou as duas horas
como o momento da partida e resolveu aproveitar o intervalo para fortalecer-se,
a fim de poder, mais tarde, encorajar seus companheiros.
Caminhando com regularidade de um lado para o outro, os braços cruzados
sobre o peito, era um homem muito diferente daquele prisioneiro que contara os
passos no calabouço de La Force. Sem surpresa, ouviu o relógio bater uma hora.
Devotamente agradecendo a Deus por ter recobrado o domínio sobre si mesmo,
pensou: “Só falta mais uma, agora”, e retomou a marcha.
Passos no corredor de pedra. Param diante da porta.
A chave girou na fechadura. Antes que a porta se abrisse, ou enquanto se
abria, um homem disse em voz baixa, em inglês:
— Ele jamais me viu aqui. Fiquei longe de seu caminho. Entre sem mim...
eu esperarei do lado de fora. Não perca tempo.
A porta fechou-se com rapidez e, diante dele, face a face, calmo, atento,
com um ligeiro sorriso e um dedo encostado aos lábios numa advertência muda
para que permanecesse em silêncio, estava Sydney Carton.
Havia um quê tão luminoso e notável em seu semblante que, pela primeira
vez, o prisioneiro desconfiou tratar-se de uma aparição de sua própria imagem.
Contudo, ele falou e aquela era a sua voz. Ele tomou a mão do prisioneiro, e sua
mão era real.
Entre todas as pessoas do mundo, eu sou a que menos você esperava ver,
certo?Não pude acreditar que era você. Mesmo agora, custa-me crer. Você não
foi... — a apreensão invadiu-lhe de súbito a mente — não é um prisioneiro, é?
Não. Por um acaso, adquiri certo poder sobre um dos carcereiros daqui e,
graças a isso, aqui estou. Vim da parte dela... de sua esposa, caro Darnay.
O prisioneiro torceu as mãos.
— Trago-lhe um pedido dela.
— De que se trata?
— Da mais sincera e veemente súplica, endereçada a você no tom mais
comovente de sua voz que lhe é tão querida e da qual se recorda tão bem. O
prisioneiro voltou o rosto para ocultar a emoção.
— Você não dispõe de tempo para me fazer perguntas, e eu não teria tempo
para respondê-las. Assim, limitese a fazer o que eu mandar... tire as suas botas e
calce as minhas.
Havia uma cadeira encostada na parede, atrás do prisioneiro. Apressado,
Carton já se havia sentado e arrancado as botas com a velocidade de um raio.
— Depressa, calce as minhas botas!
— Carton, não há como fugir deste lugar. Você só conseguirá morrer junto
comigo. É loucura.
— Seria loucura se o aconselhasse a fugir. Eu fiz isso? Quando eu lhe pedir
para atravessar aquela porta, então diga que é loucura e não arrede o pé daqui.
Agora, troque de gravata comigo; troque também o casaco. Enquanto despe o
casaco, deixe-me tirar essa faixa de sua testa e despentearlhe os cabelos, para
que fiquem revoltos como os meus[267]. Com prodigiosa rapidez e uma força
física e moral que parecia sobre-humana, ele lhe impôs todas essas mudanças. O
prisioneiro obedecia-lhe como uma criança.
— Carton! Meu caro Carton, é loucura! Não pode dar certo, jamais deu. Já
foi tentado antes e sempre falhou. Eu lhe imploro que não some a sua morte à
amargura da minha.
— Eu lhe pedi, meu caro Darnay, para atravessar aquela porta? Quando eu
pedir, recuse. Vejo papel e tinta sobre a mesa. Sua mão está firme o bastante
para escrever?
— Estava quando você chegou.
— Então, torne-a firme novamente e escreva o que lhe vou ditar. Rápido,
amigo, rápido!
Atordoado, Darnay se sentou à mesa, apertando a cabeça entre as mãos.
Carton, com a mão direita no peito, aproximou-se dele.
— Escreva exatamente o que eu disser.
— A quem devo endereçar?
— A ninguém — Carton ainda tinha a mão no peito.
— Devo pôr a data?
— Não.
O prisioneiro suspendia a cabeça para fitá-lo a cada pergunta. Carton,
curvado e com a mão no peito, olhava para baixo.
— “Caso se lembre” — ditou Carton — “das palavras que lhe disse um dia,
compreenderá imediatamente o sentido destas linhas. Estou certo de que já as
recorda agora, porque não é de sua natureza esquecê-las.”Darnay ergueu os olhos para Carton, que retirava a mão do peito, e sua mão
imobilizou-se sobre o papel.
— Já escreveu “esquecê-las”? — Carton inquiriu.
— Já. O que traz aí? Uma arma?
— Não, não estou armado.
— O que tem na mão?
— Em breve saberá. Continue, só faltam algumas linha — ele voltou a ditar:
— “Sinto-me grato por ter chegado a hora de prová-las. No que faço agora não
há motivo para remorso ou pesar”. — Enquanto pronunciava essas palavras,
contemplava o prisioneiro atentamente, levando a mão, num movimento lento e
suave, até junto do rosto dele.
A pena caiu dos dedos de Darnay, que olhou em torno com ar distante.
— Que vapor é este? — perguntou.
— Vapor?
— Alguma coisa passou diante de mim.
— Não percebi nada. Não há nada aqui. Tome outra vez a pena e escreva.
Rápido, rápido!
Como se sua memória se tivesse debilitado, ou como se suas faculdades
mentais se houvessem perturbado, o prisioneiro fez um esforço para concentrar-
se. Ao levantar o rosto para Carton, com os olhos nublados e a respiração
alterada, este o olhava fixamente, com a mão novamente no peito.
— Rápido, rápido! O prisioneiro inclinou-se outra vez sobre o papel.
“Se tivesse sido diferente” — a mão de Carton tornava a descer
cautelosamente — “eu jamais teria aproveitado esta grande oportunidade. Se
tivesse sido diferente” a mão chegara à altura do rosto do prisioneiro — “eu seria
obrigado a responder por tantos erros. Se tivesse sido diferente...” — Carton
desviou o olhar para a pena e percebeu que se arrastava pela folha, garatujando
caracteres ininteligíveis.
Carton não levou mais a mão ao peito. O prisioneiro levantou-se de um salto
e fitou-o com censura, mas Carton apertou-lhe as narinas com firmeza,
enquanto, com o outro braço, amparava-o pela cintura. Durante alguns segundos,
Darnay lutou debilmente com o homem que viera dar a vida em troca da sua.
Logo, porém, estendeu-se no chão, inconsciente.
Rápido, e com as mãos tão leais ao seu propósito quanto seu coração, Carton
vestiu a roupa que o prisioneiro tinha deixado de lado, alisou os cabelos para trás
e prendeuos com a fita de Darnay. Então, chamou em voz baixa, abrindo a porta:
— Venha, já pode entrar. E o espião entrou.
— Vê? — disse Carton, olhando para cima, pois se ajoelhara ao lado do
homem inconsciente, enquanto colocava uma folha de papel sob sua camisa. —
Ainda acha que você corre um risco muito grande?
— Senhor Carton — o espião replicou, estalando os dedos com timidez —, o
risco que corro não é esse, mas sim a possibilidade de o senhor não cumprir a sua
parte na barganha.
— Não tema. Cumprirei a minha parte até morrer.
— Assim espero, senhor Carton, para que haja cinqüenta e dois lá, e nem
um a menos. Vestido como está, sinto-me mais tranqüilo.— Não tenha receio. Em breve, deixarei de ser um perigo para você e os
outros já estarão longe daqui. Agora, consiga alguém para ajudá-lo a carregar-
me para a carruagem.
— Carregar o senhor?
— Ele, o homem com quem troquei de lugar. Sairá pelo mesmo caminho
por onde me conduziu na entrada?
— Naturalmente.
— Eu me encontrava fraco e indisposto quando você me trouxe e piorei. A
emoção da despedida me fez desmaiar. Isso ocorre muitas vezes aqui. A sua vida
está nas suas próprias mãos. Depressa! Peça auxílio.
— Jura que não me trairá? — indagou o trêmulo espião, hesitando.
— Ora, homem! — retorquiu Carton, batendo com o pé no chão. — Já não
lhe prestei um juramento solene? Vamos! Não perca um tempo tão precioso!
Leve-o você mesmo para o pátio e coloque-o na carruagem. Mostre-o ao senhor
Lorry, diga-lhe que não lhe dê nada, além de ar fresco, para voltar a si. E diga-
lhe para lembrar minhas palavras de ontem à noite e a promessa que me fez. Ele
deve partir imediatamente.
O espião retirou-se e Carton sentou-se à mesa, pousando a cabeça sobre as
mãos. Barsad retornou em seguida, acompanhado de dois homens.
— O que houve? — perguntou um deles, contemplando o homem caído no
chão. — Ficou assim aflito só porque seu amigo tirou a sorte grande na loteria da
Sainte Guillotine?
— Que bom patriota! — exclamou o outro. — Não podia ficar mais aflito se
o aristocrata tivesse tirado a sorte em branco. Ergueram o homem inconsciente,
colocaram-no sobre uma padiola que tinham trazido para junto da porta e se
dispuseram a sair.
— Aproxima-se a hora, Evrémonde — comunicou o espião em tom de
advertência.
— Eu sei — respondeu Carton. — Tenha cuidado com meu amigo, suplico-
lhe, e deixe-me em paz.
— Então, vamos, rapazes — Barsad comandou.
A porta se fechou e Carton ficou a sós. Aguçando ao máximo suas
faculdades auditivas, concentrou-se para não perder o mais leve rumor que
indicasse suspeita ou alarma. Mas não ouviu nenhum. Chaves rangiam nas
fechaduras, portas batiam e passos ressoavam nos corredores distantes: nenhum
grito ou ruído que parecesse anormal. Respirando mais livremente, sentou-se à
mesa e prestou novamente atenção até que o relógio bateu duas horas.
Sons que não receava, pois lhes adivinhava o significado, começaram a
tornar-se audíveis. Abriram-se várias portas em seqüência, e finalmente a dele.
Um carcereiro, com uma lista na mão, olhou para dentro e limitou-se a ordenar:
— Siga-me, Evrémonde!
E ele o seguiu até um amplo e escuro salão, a certa distância. Era um dia
cinzento de inverno, obscurecido ainda mais pelas sombras que, ao mesmo
tempo, desprendiam-se dos condenados e os envolviam, de forma que ele não
pôde senão distinguir vagamente os outros que eram guiados até ali para que lhes
amarrassem os braços. Uns estavam sentados, outros, de pé. Alguns selamentavam, movendo-se com inquietação; esses, porém, eram poucos. A
grande maioria mostrava-se silenciosa e calma, olhando fixamente para o chão.
Carton encostou-se na parede, num canto, enquanto se trazia o restante dos
cinqüenta e dois; um homem, ao passar por ele, abraçou-o como se o
conhecesse. Carton estremeceu, receando ser descoberto. O tal homem, porém,
soltou-o e afastou-se. Pouco depois, uma moça franzina, de pequena estatura,
com um rosto suave em que não se via nenhum vestígio de cor, e resignados
olhos arregalados, levantou-se de onde estivera sentada a observá-lo e foi falar-
lhe.
— Cidadão Evrémonde — tocou-lhe o braço com a mão gelada —, nós nos
conhecemos em La Force. Sou aquela pobre costureira, lembra-se? Carton
murmurou, à guisa de resposta.
— É verdade. Mas esqueci qual era a acusação contra você.
— Conspiração. Embora os céus saibam que sou inocente. Acha possível?
Quem pensaria em conspirar com uma criatura infeliz e fraca como eu? O
sorriso desolado com que ela proferiu aquelas palavras comoveu-o tanto que seus
olhos encheram-se de lágrimas.
— Não tenho medo de morrer, cidadão Evrémonde, mas sou inocente.
Tampouco me nego a morrer pela República, que tanto bem deve fazer aos
pobres. Contudo, não compreendo em que lhe seja útil a minha morte, cidadão
Evrémonde. Uma criatura tão fraca e pobre como eu?! Como a última coisa na
face da terra que lhe aqueceria e abrandaria o coração, aquela moça
enterneceu-o.
— Ouvi dizer que o tinham libertado, cidadão Evrémonde. Tive esperança
de que fosse verdade.
— E foi. Mas prenderam-me de novo e condenaram-me.
— Se formos no mesmo carro, cidadão Evrémonde, permitirá que lhe
segure a mão? Embora não tenha medo, sou muito fraca e isso me daria
coragem.
Quando os olhos resignados se ergueram para fitá-lo, ele percebeu uma
dúvida repentina estampar-se em seu semblante, logo substituída pelo espanto.
Carton apertou a mão calejada pelo trabalho e emaciada pela forme, colocando
um dedo sobre os lábios.
— Vai morrer por ele? — ela sussurrou.
— E por sua esposa e filha. Shh! Sim.
— Oh, deixe-me segurar sua corajosa mão, meu caro desconhecido?
— Shh! Sim, minha pobre irmã. Até o fim...
As sombras que caíam sobre o cárcere também caíam, naquela mesma
hora de começo de tarde, sobre a multidão que se estendia em fila diante da
barreira, quando um coche, que saía de Paris, parou para ser inspecionado.
— Quem vai aí? Quem são as pessoas aí dentro? Os salvo-condutos! Os
papéis foram entregues e lidos.
— Alexandre Manette. Médico. Francês. Onde está?
Está ali, um velho abatido, murmurando palavras incoerentes.
— Aparentemente, o cidadão doutor não está no seu juízo. Será que a febrerevolucionária foi demais para ele? Realmente, foi demais.
— Ah! Muitos sofrem desse problema. Lucie. Filha dele.
Francesa. Onde está? Ali está ela.
— Muito bem. Lucie, esposa de Evrémonde, não é? É, sim.
— Ah! Evrémonde tem um compromisso em outra parte. Lucie, sua filha.
Inglesa. É essa criança aí? Ela mesma.
— Dê-me um beijo, filha de Evrémonde. Agora, você acabou de beijar um
bom republicano. Isso é novidade em sua família. Lembre-se disso! Sydney
Carton. Advogado. Inglês. Onde está?
Ele está ali, no fundo da carruagem. Também não se sente bem.
— Aparentemente, o inglês está desmaiado.
Espera-se que volte a si com o ar fresco. Sua saúde não anda muito boa, e
não lhe fez bem a triste despedida do amigo que incorreu no desagrado da
República.
— Não é grande coisa, então! Muitos têm incorrido no desagrado da
República e, por isso, têm de espiar pela janelinha. Jarvis Lorry. Banqueiro.
Inglês. Onde está?
— Sou eu. Só podia ser, já que não há mais ninguém.
Foi Jarvis Lorry quem respondeu a todas as perguntas anteriores. É Jarvis
Lorry quem desce do coche e fica à porta, submetendo-se à entrevista com o
grupo de oficiais. Eles pachorrentamente sobem para o bagageiro, a fim de
vistoriar as poucas malas ali empilhadas; os camponeses cercam a carruagem,
olhando com curiosidade para seu interior; uma criancinha, carregada por sua
mãe, estende os bracinhos para tocar a esposa de um aristocrata condenado à
guilhotina.
— Guarde seus documentos, Jarvis Lorry. Já estão assinados.
— Podemos partir, cidadão?
— Podem. Adiante, postilhões! Boa viagem.
— Eu os saúdo, cidadãos. “Vencemos o primeiro perigo!” É Jarvis Lorry, de
novo, quem pronuncia essas palavras, apertando as mãos e erguendo a cabeça.
Na carruagem imperam o terror, o som de soluços abafados e da respiração
pesada do viajante inconsciente.
— Não estamos indo demasiado devagar? Será que não pode induzir os
cavalos a acelerar o passo? — indaga Lucie, agarrando a mão do velho amigo.
— Pareceria que estamos fugindo, minha querida. Não devemos despertar
suspeitas.
— Olhe para trás, olhe! Veja se somos perseguidos!
— A estrada está deserta, minha querida. Até aqui, ninguém nos persegue.
Casas em grupos de duas e três passam por nós, fazendas isoladas, prédios
em ruínas, curtumes, campos abertos, alamedas de árvores desfolhadas. O
pavimento áspero e desigual jaz sob nós, a profunda e macia lama nos rodeia. Às
vezes, entramos no lamaçal para evitarmos as pedras do caminho, que nos fazem
sacolejar dolorosamente; outras vezes, nós nos atolamos e ficamos presos. A
agonia de nossa impaciência, então, cresce a tal ponto que, em nossa angústia e
desmesurada pressa, queremos fugir, correr, correr mais, fazer qualquer coisa
menos parar.Pelo campo aberto, novamente entre prédios em ruínas, fazendas isoladas,
curtumes, casas em grupos de duas e três, alamedas de árvores desfolhadas. Será
que esses homens nos enganaram e nos levaram de volta por outra estrada? Já
não passamos por aqui agora há pouco? Não, graças a Deus! Uma aldeia. Olhe
para trás, olhe! Veja se não nos estão perseguindo! Silêncio! A estalagem de
posta.
Vagarosamente, nossos cavalos são retirados. O coche permanece parado
na pequena rua, sem cavalos e sem possibilidade de mover-se. Vagarosamente,
novas cavalgaduras surgem à nossa frente, uma a uma; vagarosamente, os novos
postilhões aparecem, testando e enrolando seus chi-cotes. Vagarosamente, os
antigos postilhões contam suas moedas, erram na soma e chegam a resultados
errados. Todo o tempo, nossos desesperados corações batem num ritmo
frenético, mais veloz do que o mais veloz galope do mais veloz dos cavalos.
Por fim, os novos cocheiros tomam seus lugares e os velhos ficam para trás.
Nós atravessamos a aldeia, subimos e descemos a colina, chegamos a um vale
pantanoso. De súbito, os postilhões começam a gesticular e a falar com grande
animação, e repentinamente detêm os cavalos, que se empinam, assustados.
Estamos sendo perseguidos!
— Ho! Vocês aí dentro da carruagem!
— O que há? — indaga o senhor Lorry, olhando pela janela.
— Quantos disseram que são?
— Não compreendo.
— Na última barreira, não lhes informaram quantos foram para a Guillotine
hoje?
— Cinqüenta e dois.
— Bem que eu disse! Um bom número! Meus companheiros cidadãos aqui
teimaram que eram quarenta e dois.
Dez cabeças a mais fazem diferença. A Guillotine vai indo de vento em
popa. Eu a adoro! Em frente! Ho, ho...
A noite derrama seu negrume sobre nós. Ele se mexe; está voltando a si.
Começa a falar de modo inteligível, mas julga que os dois ainda estão juntos.
Pergunta-lhe, chamando-o pelo nome, o que tem na mão, será uma arma? Oh,
Deus teve piedade de nós e nos salvou! Olhe para trás, olhe! Veja se nos estão
perseguindo!
O vento corre atrás de nós e as nuvens se espalham à nossa frente. A lua está
lá atrás, ainda escalando o céu. A selvagem noite nos está perseguindo. Além
dela, porém, nada mais nos persegue. XIV. Encerra-se o Tricô
CAPÍTULO XIV
ENCERRA-SE O TRICÔ
No mesmo momento em que os cinqüenta e dois aguardavam seu destino,
madame Defarge reunia-se em sinistro conclave com “A Vingança” e Jacques
terceiro, membro do júri revolucionário. A reunião de madame Defarge com
seus ministros não se realizava na taberna, mas na oficina do serrador, outrora
reparador de estradas. O próprio serrador não participaria da conferência, mas
aguardaria a pequena distância, como um subalterno que não devia abrir a boca,
a menos que recebesse ordens nesse sentido, nem externar opiniões, exceto se
lhas pedissem.
— Mas será que o nosso Defarge — questionou Jacques terceiro — é, sem
sombra de dúvida, um bom republicano? Será?
— Não há outro melhor — protestou a volúvel “Vingança” com a sua voz
estridente — na França.
— Acalme-se, pequena “Vingança” — interveio madame Defarge,
pousando a mão nos lábios de sua “tenente” com a testa ligeiramente franzida —,
deixe-me falar. Meu marido, companheira cidadã, é um bom republicano e um
homem destemido; ele merece muito da República e conta com a sua
confiança. Contudo, meu marido tem suas fraquezas[268], como, por exemplo,
apiedar-se do doutor.
— É uma pena — cacarejou Jacques terceiro, sacudindo a cabeça e
enfiando os dedos irrequietos na boca voraz —, mas isso não é próprio de um
bom cidadão. É lamentável.
— Vejam — prosseguiu madame —, eu não me importo nada com esse
doutor. Ele pode preservar a cabeça ou perdê-la, não me interessa. Para mim,
eles são todos iguais. Entretanto, a família de Evrémonde tem de ser
exterminada. A mulher e a filha devem segui-lo.
— Ela tem uma bela cabeça para a guilhotina — cacarejou Jacques
terceiro. — Tenho visto olhos azuis e cabelos dourados lá, e essas cabeças ficam
muito charmosas quando Sansão as levanta no ar — embora não passasse de um
ogro, falava como um epicurista. Madame Defarge baixou os olhos e refletiu por
um momento.
— A criança também — comentou Jacques terceiro, saboreando as palavras
— possui cabelos dourados e olhos azuis. E nós raramente temos uma criança lá.
É um belo espetáculo.
— Resumindo — observou madame Defarge, voltando de seu curto
momento de abstração —, não posso confiar em meu marido no que se refere aesse assunto. Desde ontem à noite, sinto que não devo revelar-lhe detalhes do
meu plano; mas também sinto que, se eu demorar para colocá-lo em prática,
existe o risco de ele avisá-los a fim de que fujam.
— Isso não pode acontecer — cacarejou Jacques terceiro. — Ninguém
pode escapar. Ainda não eliminamos nem metade do que pretendemos.
Precisamos elevar o número de execuções para cento e vinte por dia.
— Resumindo — madame Defarge continuou —, meu marido não possui as
minhas razões para perseguir essa família até o extermínio total, e eu não tenho
as razões dele para me sensibilizar com o doutor. Portanto, devo agir por conta
própria. Venha aqui, pequeno cidadão.
O serrador, que lhe devotava um grande respeito e obedecia-lhe sempre
com extrema submissão, tomado por um medo mortal daquela mulher, avançou
com o barrete vermelho nas mãos.
— Quanto àqueles sinais e acenos, pequeno cidadão — indagou madame
Defarge, com severidade —, que a viu fazer aos prisioneiros, está pronto para
descrevê-los sob juramento hoje mesmo?
— Ai, ai, por que não?! — bradou o serrador. — Todos os dias, qualquer que
fosse o tempo, das duas às quatro horas, sempre acenando, às vezes em
companhia da criança, quase sempre sozinha. Eu sei o que sei. E vi com estes
dois olhos.
Ele produziu todo o tipo de gestos enquanto falava, como se num incidental
mostruário da grande diversidade de sinais que conhecia.
— Claramente uma conspiração — afirmou Jacques terceiro. — Clara e
cristalinamente!
— Posso contar com o júri? — inquiriu madame Defarge, voltando-se para
ele com um sorriso sombrio.
— Confie no patriótico júri, querida cidadã. Eu respondo por meus
companheiros jurados.
— Agora, deixe-me ver... — ponderou madame Defarge, tornando a se
abstrair. — Pela última vez! Posso poupar esse doutor, para satisfazer meu
marido? Eu não me importo, de qualquer modo. Posso poupá-lo?
— Seria uma cabeça a menos — argumentou Jacques terceiro em voz
baixa. — Nós realmente não dispomos de cabeças suficientes. Em minha
opinião, seria uma pena.
— Ele também estava acenando, junto com ela, quando a vi — refletiu
madame Defarge. — É impossível denunciá-la sem mencionar o pai. E não me
posso calar, entregando o caso nas mãos desse pequeno cidadão aqui. Afinal, não
seria má testemunha. “A Vingança” e Jacques terceiro rivalizaram entre si nos
protestos fervorosos de que ela seria a mais admirável e maravilhosa das
testemunhas. O pequeno cidadão, para não ficar por baixo, proclamou-a uma
testemunha celestial.
— O doutor que se arranje como puder — concluiu madame Defarge. —
Não, eu não posso poupá-lo! Você tem compromisso às três horas, deve
acompanhar a fornada de hoje. E você... irá?
A pergunta endereçava-se ao serrador, que apressouse a ripostar
afirmativamente, aproveitando a oportunidade para acrescentar que ele era omais ardente dos republicanos, e que se tornaria o mais desolado entre todos se
qualquer coisa o impedisse de desfrutar o prazer de fumar seu cachimbo na
contemplação do simpático barbeiro nacional. Seu entusiasmo era tão efusivo
que poderia ter despertado suspeitas (e talvez as tivesse despertado, a julgar pelo
olhar desdenhoso de madame Defarge) de que ele nutrisse, todo o tempo, seus
pequenos e individuais temores quanto à própria segurança.
— Eu também — disse madame — tenho compromisso no mesmo local.
Depois que acabar, lá pelas oito da noite, venha ver-me em Santo Antônio e nós
denunciaremos aquelas pessoas ao meu distrito.
O serrador declarou-se lisonjeado e orgulhoso por servir à cidadã. A cidadã
fitou-o, e ele, embaraçado, evadiu-se de seu olhar como um cachorrinho teria
feito, retirou-se para junto de sua madeira e ocultou sua confusão curvando-se
sobre o cabo da serra.
Madame Defarge acenou para que o jurado e “A Vingança” se
aproximassem um pouco mais da porta e lhes expôs suas intenções nos seguintes
termos:
— Ela agora deve estar em casa, aguardando o momento da morte do
marido. Com certeza, lamenta-se, chora, enfim: encontra-se num estado de
espírito que a justiça da República não admite. Ela decerto tem pena dos inimigos
do povo. É um bom momento para visitá-la.
— Que mulher extraordinária! Adorável! — exclamou Jacques terceiro,
extasiado.
— Ah, minha estimada! — bradou “A Vingança”, abraçando-a.
— Leve o meu tricô — pediu madame Defarge, colocando o trabalho nas
mãos de sua “tenente” —, e guarde a minha cadeira favorita. Vá direto para lá,
pois hoje estará mais apinhado do que de hábito.
— De bom grado obedeço às ordens de minha chefe — retrucou “A
Vingança” com alacridade, antes de beijá-la no rosto. — Você vai demorar?
— Estarei lá antes que o espetáculo comece.
— E antes que os carros fúnebres cheguem. Trate de aparecer, meu anjo —
recomendou “A Vingança”, correndo atrás dela, pois madame já alcançara a rua
—, antes das carroças!
Madame Defarge acenou de leve para indicar que ouvira e que pretendia
chegar cedo, e continuou sua marcha através do barro, contornando o muro da
prisão. “A Vingança” e o jurado, contemplando-a afastar-se, admiravam-lhe a
bela figura e os soberbos atributos morais.
Havia muitas mulheres, naquela época, a quem o tempo impunha medonhas
deformações; nenhuma delas, porém, era tão temível quanto aquela implacável
mulher que agora caminhava pelas ruas. Dotada de um caráter forte e intrépido,
de perspicácia e disposição, de uma grande determinação, de um tipo de beleza
que não só parecia revelar-lhe a firmeza e animosidade mas também despertar
nos outros um instintivo reconhecimento dessas qualidades. O conturbado tempo
a teria contaminado, sob quaisquer circunstâncias. Contudo, imbuída desde a
infância de um crescente ressentimento e de um ódio inveterado contra a
aristocracia, a ocasião transformara-a numa tigresa. Ela era absolutamente
destituída de compaixão. Se algum dia abrigou essa virtude, perdera-a emdefinitivo havia muito.
Nada significava, para ela, que um inocente morresse pelos pecados de seus
antepassados. Ela não o enxergava, mas sim a eles. Nada significava, para ela,
que sua esposa enviuvasse e que sua filha se tornasse órfã. A punição ainda lhe
parecia insuficiente, porque eles eram seus inimigos naturais, suas presas, e,
como tais, não tinham direito à vida. Apelar para ela resultava inútil, pois era
incapaz de um gesto de misericórdia, nem para consigo mesma. Se houvesse
tombado nas ruas, num dos tantos embates de que tomou parte, não teria sentido
pena de si própria. E se a enviassem para o cadafalso no dia seguinte, não
acalentaria outro sentimento que não o feroz desejo de trocar de lugar com a
pessoa que a enviara.
Tal era o coração que batia sob o modesto vestido de madame Defarge.
Negligentemente usado, transformava-se cada vez mais numa túnica sinistra;
seus cabelos escuros pareciam fartos debaixo do grosseiro barrete vermelho.
Escondida em seu seio, havia uma pistola carregada; oculta em sua cintura, uma
adaga afiada. Assim armada, e caminhando com o andar confiante típico de um
tal caráter, e com a flexível liberdade de uma mulher que habitualmente
caminhara na infância, descalça, pela areia da praia, madame Defarge
avançava pelas ruas.
Naquele exato instante, os viajantes aguardavam que se empilhasse a
bagagem sobre o coche para iniciar a longa jornada. Ao planejá-la, na véspera,
o senhor Lorry debateu-se com a dificuldade de levar a senhorita Pross. Não se
tratava apenas da necessidade de não sobrecarregar a carruagem, mas era da
mais alta importância que o tempo gasto em examinar o carro e seus passageiros
fosse o me-nor possível, já que sua fuga poderia depender dos segundos que
ganhassem aqui e ali. Por fim, ele propôs, depois de ansiosas reflexões, que a
senhorita Pross e Jerry, que estavam liberados para deixar a cidade a qualquer
momento, partissem às três horas no veículo mais ligeiro conhecido na época.
Desembaraçados das malas, eles logo ultrapassariam o coche, e, chegando antes
à estalagem, poderiam providenciar a troca dos cavalos com antecedência,
poupando-lhes minutos preciosos e facilitando-lhes o avanço durante as horas da
noite, quando qualquer atraso era mais perigoso.
Vendo nesses arranjos a esperança de prestarem um serviço real naquela
emergência, a senhorita Pross concordou com satisfação. Ela e Jerry viram o
coche sair, e, sabendo quem era o homem que Solomon trouxera, tinham se
torturado por dez minutos com o suspense. Agora, concluíam os preparativos
para seguir o coche, enquanto madame Defarge, caminhando pelas ruas,
aproximava-se mais e mais da casa quase deserta.
— O que acha, senhor Cruncher — indagou a senhorita Pross, cuja agitação
era tão grande que mal lhe permitia falar, respirar, mover-se, ou viver —, da
idéia de não partirmos daqui do pátio? Outra carruagem já saiu daqui hoje, os
vizinhos podem desconfiar.
— Minha opinião, senhorita — respondeu o senhor Cruncher — é a de que
está coberta de razão. E mesmo que não estivesse, eu concordaria.
— Estou tão avoada, temendo e rezando por eles — volveu a senhorita
Pross, chorando copiosamente. —, que me sinto incapaz de traçar qualquer planode ação. Será que o senhor é capaz de traçar um plano, meu caro e bondoso
senhor Cruncher?
— Quanto ao meu futuro, senhorita — retrucou o senhor Cruncher —,
espero que sim. Quanto ao presente, porém, acho que a minha fraca inteligência
não tem capacidade para nada. Poderia prestar-me o favor, senhorita, de ouvir e
registrar duas promessas e votos que faço em meio a esta crise?
— Oh, pelo amor de Deus! — bradou a senhorita Pross, ainda chorando
copiosamente — Fale de uma vez, e seja breve, como um bom homem.
— A primeira — proclamou o senhor Cruncher, que tremia inteiro, em tom
solene — é que, se os nossos queridos amigos escaparem dessa, eu nunca mais...
farei aquilo, nunca mais!
— Estou absolutamente certa, senhor Cruncher — comentou a senhorita
Pross — que nunca mais fará aquilo, seja lá o que for, e lhe suplico que não entre
em detalhes a esse respeito.
— Não, senhorita — replicou Jerry —, isso não pode ser dito na sua frente.
A segunda é que, se os nossos pobres amigos escaparem dessa, eu jamais voltarei
a interferir nas orações da senhora Cruncher, jamais!
— Seja lá o que esse arranjo doméstico signifique — tornou a senhorita
Pross, esforçando-se para secar os olhos e recompor-se —, não tenho dúvidas de
que é melhor que a senhora Cruncher possa decidir por si própria sobre esses
assuntos. Oh, meus pobres queridos!
— E digo mais, senhorita — prosseguiu o senhor Cruncher, com uma
alarmante tendência a pregar como se estivesse num púlpito —, escreva essas
minhas palavras e leve-as para a senhora Cruncher, que minha opinião a respeito
das orações dela mudou tanto que espero, de todo o coração, que a senhora
Cruncher esteja neste momento ajoelhada rezando por nós.
— Também espero, meu caro — soluçou a avoada senhorita Pross —, como
espero que suas preces sejam atendidas.
— Queira Deus — continuou o senhor Cruncher, com maior solenidade,
maior lentidão e maior tendência a continuar discursando — que tudo quanto fiz e
disse seja perdoado em vista da sinceridade dos meus votos por aqueles nossos
pobres amigos! Devíamos todos pedir a Deus de joelhos (se for de algum modo
conveniente) para salvá-los do terrível perigo! Que Deus o permita, senhorita! Eu
insisto, que Deus o per... mi... ta! — essa foi a peroração do senhor Cruncher,
após um prolongado e vão esforço para encontrar um final melhor. Enquanto
isso, madame Defarge, caminhando pelas ruas, aproximava-se mais e mais.
— Se conseguirmos regressar ao nosso país — redargüiu a senhorita Pross
—, pode confiar que contarei à senhora Cruncher tudo o que eu for capaz de
entender e lembrar das palavras que o senhor tão impressionantemente proferiu
aqui. E asseguro-lhe que prestarei meu testemunho da sua sinceridade neste
momento tão difícil. Agora, suplico-lhe, vamos pensar! Meu estimado senhor
Cruncher, vamos pensar! Enquanto isso, madame Defarge, ainda caminhando
pelas ruas, aproximava-se mais e mais.
— Se o senhor fosse na frente — sugeriu a senhorita Pross — e detivesse o
veículo e os cavalos para que, em vez de virem até aqui, aguardassem-me em
outro lugar... não seria melhor? O senhor Cruncher concordou que seria melhor.— Onde o senhor pretende esperar-me? — inquiriu a senhorita Pross.
O senhor Cruncher estava tão desorientado que não conseguiu lembrar-se de
outro local além de Temple Bar. Ai dele! Temple Bar ficava a centenas de
quilômetros de distância, e madame Defarge estava realmente bem perto.
— Na porta da catedral — propôs a senhorita Pross. — Ficaria muito fora do
caminho, se me aguardasse próximo da porta da grande catedral, entre as duas
torres?
— Não, senhorita — respondeu o senhor Cruncher.
— Neste caso, como o melhor dos homens — rogou à senhorita Pross —,
corra direto até a posta e diga-lhes para mudar o itinerário.
— Não tenho certeza — hesitou o senhor Cruncher, sacudindo a cabeça —
se devo deixá-la sozinha, entende? Não sabemos o que pode acontecer.
— Só Deus sabe o que pode acontecer — retrucou a senhorita Pross —, mas
não tema por mim. Apanhe-me na catedral às três horas. Estou convencida de
que será melhor assim. Agora, vá! Boa sorte, senhor Cruncher, Deus o proteja!
Pense... não em mim, mas nas vidas que dependem de nós!
Esse exórdio, bem como o fato de que a senhorita Pross agarrara-lhe o
braço com as duas mãos numa súplica angustiada, decidiu o senhor Cruncher.
Tomar aquela precaução, que já estava sendo executada, representou um
grande alívio para a senhorita Pross. A necessidade de recompor sua aparência
de forma a não chamar atenção nas ruas constituiu outro motivo de alívio.
Consultou o relógio e verificou que passavam vinte minutos das duas horas. Não
tinha tempo a perder, precisava aprontarse imediatamente.
Receando, em seu extremo nervosismo, a solidão dos aposentos desertos, e
as imaginadas faces que a estariam espreitando por trás de cada porta aberta, a
senhorita Pross encheu uma bacia com água e começou a banhar os olhos
vermelhos e inchados. Assombrada por suas alucinações febris, ela não
suportava ficar com a vista obscurecida pela água; por esse motivo, interrompia-
se constantemente e voltava a cabeça para certificar-se de que não a
espionavam. Numa dessas interrupções, recuou e soltou um grito, pois acabara
de avistar uma figura no meio da sala.
A bacia caiu no chão, espatifando-se, e a água derramada alcançou os pés
de madame Defarge. Aqueles pés haviam percorrido um estranho e implacável
caminho, através de muitas manchas de sangue, para encontrar aquela água
límpida.
Madame Defarge fitou-a com frieza e inquiriu:
— Onde está a esposa de Evrémonde?
Como um raio, ocorreu à senhorita Pross a idéia de que as portas abertas
poderiam sugerir a fuga. Sua primeira reação foi correr para cerrá-las. Havia
quatro portas que se comunicavam com a sala, e ela fechou-as todas. Então,
postou-se à frente da porta do quarto que Lucie ocupara.
Os olhos escuros de madame Defarge seguiram-lhe os apressados
movimentos e permaneceram sobre a governanta quando esta terminou. Nada
havia de gracioso na senhorita Pross; os anos não lhe tinham domado o aspecto
selvagem, nem suavizado a severidade de seu semblante. Contudo, ela também
era uma mulher determinada, a seu modo, e mediu madame Defarge com osolhos, centímetro por centímetro.
— Pelo seu aspecto, a senhora bem pode ser a mulher de Lúcifer —
comentou, ofegando. — Mesmo assim, não levará a melhor, desta vez. Eu sou
uma inglesa.
Madame Defarge olhou-a com desdém, embora também com uma
expressão que fez a senhorita Pross perceber que ela também estava acuada.
Madame Defarge via na senhorita Pross uma rígida, sólida, vigorosa mulher,
como o senhor Lorry, muitos anos antes, vira na mesma figura uma mulher de
mão forte. Ela sabia bem que a senhorita Pross era a devotada amiga da família.
E a senhorita Pross sabia bem que madame Defarge era a malévola inimiga da
família.
— A caminho do lugar onde — disse madame Defarge, apontando
ligeiramente para o local fatídico — tenho uma cadeira reservada e o meu tricô
à minha espera, resolvi parar para cumprimentar a esposa de Evrémonde. Quero
vê-la.
— Sei que suas intenções são maldosas — replicou a senhorita Pross — e
você pode apostar que lutarei contra elas.
Cada uma falava em seu próprio idioma. Nenhuma entendia as palavras da
outra. Ambas mostravam-se vigilantes, atentas ao semblante e aos gestos uma da
outra para deduzirem o que significavam as ininteligíveis palavras.
— De nada lhe servirá esconder-se de mim agora — retrucou madame
Defarge. — Os bons patriotas entenderão o que isso representa. Deixe-me vê-la.
Vá avisá-la que desejo vê-la. Está me ouvindo?
— Mesmo que esses seus olhos lançassem labaredas, não me meteriam
medo — retorquiu a senhorita Pross. — Não, sua maldita estrangeira. Eu sou a
sua adversária.
Não era provável que madame Defarge compreendesse aquela observação
em detalhes. Todavia, compreendeu o bastante para constatar que a oponente a
estava menosprezando.
— Mulher imbecil! — vociferou madame Defarge, franzindo as
sobrancelhas. — Não é possível arrancar de você uma resposta. Eu exijo vê-la!
Vá avisá-la ou saia da porta e deixe-me ir até ela! — reforçou a ordem com um
movimento enérgico do braço.
— Nunca imaginei — ripostou a senhorita Pross — que um dia desejaria
entender essa sua algaravia. Mas eu daria tudo, menos a roupa que visto, para
descobrir se você desconfia de pelo menos parte da verdade.
Nenhuma delas, por um segundo que fosse, despregou os olhos da outra.
Madame Defarge, que não arredara o pé do lugar onde se plantara desde que a
senhorita Pross reparou em sua presença, agora, porém, avançou um passo em
sua direção.
— Eu sou uma britânica — prosseguiu a senhorita Pross. — Estou
desesperada, mas não ligo uma moeda inglesa de dois pences pela minha vida.
Sei que, quanto mais tempo eu a prender aqui, maiores serão as esperanças para
a minha menina. E se você encostar um dedo em mim, não deixarei sequer um
fio de cabelo nessa sua cabeça!
Assim falou a senhorita Pross, os olhos flamejando a cada sentençaproferida de um só fôlego. Assim falou a senhorita Pross, que jamais agredira
ninguém em toda a sua vida.
Contudo, sua coragem era daquela espécie emocional, que lhe trazia
lágrimas incontroláveis aos olhos. Era a coragem que madame Defarge entendia
tão pouco que a confundia com fraqueza.
— Ha, ha! — madame riu. — Sua bruxa infeliz! Você não vale coisa
alguma! Vou chamar o doutor! — então, elevou o tom de voz e gritou: —
Cidadão doutor! Esposa de Evrémonde! Filha de Evrémonde! Não haverá
ninguém aqui para atender a cidadã Defarge a não ser essa miserável idiota?
Talvez o silêncio subseqüente, talvez alguma revelação latente no semblante
da senhorita Pross, talvez uma suspeita repentina que nada tivesse a ver com
qualquer dos indícios, sussurrasse à madame Defarge que eles haviam partido.
Abriu três das portas e espionou os aposentos.
— Estes quartos estão em total desordem. Há miudezas espalhadas pelo
chão, alguém arrumou malas às pressas aqui. Não há ninguém no quarto atrás de
você! Deixeme ver.
— Nunca! — recusou a senhorita Pross, que decifrara a ordem tão
perfeitamente quanto madame Defarge decifrou sua resposta. — Enquanto você
não tiver certeza se eles estão ou não naquele quarto, não poderá decidir o que
fazer — refletiu para si mesma. — E você não terá essa certeza, se eu a puder
impedir. Tendo ou não certeza, porém, você não sairá daqui enquanto eu puder
segurá-la.
— Desde o começo, tenho lutado pelas ruas sem me deter diante de nada.
Eu vou abrir essa porta, nem que, para isso, tenha de fazer você em pedaços —
volveu madame Defarge.
— Estamos sozinhas no último andar de uma casa erguida num pátio isolado,
não é provável que alguém nos ouça. Usarei de toda a minha força para impedi-
la de sair, pois cada minuto que você passa aqui vale cem mil guinéus para a
minha menina — retrucou a senhorita Pross.
Madame Defarge correu para a porta. A senhorita Pross, seguindo seu
instinto, capturou-lhe a larga cintura com os dois braços e prendeu-a com
firmeza. Foi em vão que madame Defarge lutou para se desvencilhar e para
revidar a agressão, porque a senhorita Pross, com a vigorosa tenacidade do
amor, sempre muito mais forte do que a do ódio, apertava-a mais e mais,
chegando mesmo a erguê-la do chão. As duas mãos de madame Defarge
esbofeteavam-na e arranhavam-lhe o rosto. Mas a senhorita Pross, abaixando a
cabeça, mantinha-lhe a cintura bem presa, agarrando-se a ela com um empenho
maior do que o de alguém agarrado a uma bóia para não se afogar.
Logo em seguida, as mãos de madame Defarge cessaram os golpes e
dirigiram-se à cintura enlaçada.
— Eu a tenho bem presa — disse a senhorita Pross, com a voz abafada —,
não conseguirá soltar-se. Sou mais forte do que você, agradeço aos céus por isso,
e vou segurá-la até que uma de nós duas caia desmaiada ou morta!
As mãos de madame Defarge chegaram ao peito. A senhorita Pross seguiu-
as com o olhar, viu do que se tratava, apoderou-se da arma, disparou-a e quedou-
se, sozinha, cega pela fumaça[269].Tudo isso se passou num segundo. Quando a fumaça começou a dissipar-se,
deixando apenas um medonho silêncio, desvaneceu-se no ar como o espírito da
furiosa mulher cujo corpo sem vida jazia no chão.
No horror inicial que lhe inspirou a sua situação, a senhorita Pross afastou-se
do cadáver o mais que pôde e correu escada abaixo numa busca inútil por
socorro. Felizmente, refletiu melhor e pesou as conseqüências de seu ato em
tempo de controlar-se e retornar à sala. Aterrorizava-a entrar novamente por
aquela porta, mas ela obrigou-se a fazêlo e até passou perto do corpo, a fim de
apanhar o chapéu e os outros complementos que devia usar. Colocou-os, já na
escadaria, depois de trancar a porta e guardar a chave. Então, sentou-se num
degrau por alguns instantes, para respirar e chorar. Por fim, levantou-se, resoluta,
e apressou-se a partir.
Por sorte, seu chapéu era enfeitado com um véu. Caso contrário, não
conseguiria atravessar as ruas sem ser detida. Por sorte, também, sua aparência
era naturalmente tão peculiar que não se mostrava especialmente transtornada,
como teria ocorrido com outras mulheres. Ela precisava das duas vantagens, pois
as marcas das unhas de madame Defarge eram profundas em seu rosto, seu
cabelo estava desgrenhado e seu vestido (recomposto rapidamente com mãos
trêmulas) achava-se amarfanhado e até esgarçado em vários lugares.
Ao cruzar a ponte, ela jogou a chave no rio. Quando chegou à catedral,
poucos minutos antes de seu acompanhante, enquanto o esperava, ela se pôs a
imaginar se algum pescador já teria recolhido, em sua rede, a chave do fundo do
rio. E se identificassem aquela chave, e abrissem a porta, e encontrassem o
cadáver? E se ela fosse interceptada na barreira e enviada para a prisão, acusada
de assassinato? Em meio àqueles apavorantes pensamentos, seu acompanhante
chegou e levou-a embora.
— Você ouviu algum alarido pelas ruas? — ela inquiriu-o.
— Não, só o de sempre — o senhor Cruncher respondeu, parecendo
surpreendido pela pergunta e pelo aspecto da senhorita Pross.
— Não o escutei. O que foi que disse?
De nada adiantou o senhor Cruncher repetir a resposta. A senhorita Pross
não podia escutá-lo. “Já que é assim, é melhor eu balançar a cabeça”, pensou o
senhor Cruncher, intrigado, “para tudo o que ela perguntar.” E ela perguntou:
— Está ouvindo algum barulho nas ruas, agora? O senhor Cruncher balançou
a cabeça, assentindo.
— Eu não ouço nada — a senhorita Pross replicou, ansiosa.
— Ficou surda em apenas uma hora? — indagou o senhor Cruncher,
ruminando, extremamente perturbado. — O que será que aconteceu com ela?
— Sinto — declarou a senhorita Pross — como se um estampido muito alto
e estridente tivesse soado junto de meu ouvido, e que esse estampido foi o último
som que ouvirei nesta vida.
— Ora, parece que enlouqueceu — considerou o senhor Cruncher, cada vez
mais perturbado. — O que posso fazer para reanimá-la? Ouça! Ali vão várias
carruagens barulhentas! Consegue ouvi-las?
— Não consigo — replicou a senhorita Pross, percebendo que ele lhe dirigia
a palavra — ouvir coisa alguma. Oh, meu bom homem, houve aquele estampidoe, depois, um profundo silêncio. Um silêncio imutável e eterno, que nada jamais
romperá enquanto eu viver.
— Se não escuta o barulho infernal daquelas carruagens — concluiu o
senhor Cruncher, fitando-a por sobre o ombro —, creio que, de fato, ela nunca
mais escutará nada neste mundo.
E, de fato, ela nunca mais escutou. XV. Últimos Ecos
CAPÍTULO XV
OS ÚLTIMOS ECOS
Os carros fúnebres desfilam ruidosamente pelo leito áspero e esburacado das
ruas de Paris. Seis carros mortuários carregam o vinho de cada dia para La
Guillotine. Todos os devoradores e insaciáveis monstros imaginados desde que a
imaginação surgiu no Homem se fundiram numa única realização, a Guilhotina.
E, contudo, não existe na França, a despeito de sua rica variedade de solo e de
clima, uma folha, ou grama, ou raiz, ou um ramo novo, ou um grão de pimenta
que possa amadurecer em condições melhores do que aquelas que engendraram
esse horror. Devolva-se a humanidade à forja que a criou e utilizem-se martelos
semelhantes para tornar a esculpi-la e ela se contorcerá na mesma imagem
torturada. Cultivem-se de novo as mesmas sementes de desordem e opressão
rapaces e certamente serão colhidos os mesmos frutos amargos.
Seis carros mortuários rodam com estrondo pelas ruas de Paris. Faça-os
regressar ao que eram antes, ó Tempo, poderoso mago, e eles serão vistos como
luxuosas carruagens de monarcas absolutos, como equipagens de nobres feu-
dais, como toucadores de mulheres deslumbrantes como Jezebel[270], como
igrejas que não são a casa de meu Pai, mas covis de ladrões[271], como
choupanas de milhões de camponeses esfaimados! Não. O grande mago que
majestosamente executa a ordem estabelecida pelo Criador jamais reverte as
transformações que promoveu. “Se tu assumiste essa forma por vontade de
Deus”, dizem os videntes ao encantado nos sábios contos árabes, “então
conserva-te como estás! Mas, se tu assumiste essa forma por mero passe de
mágica, então volta a teu aspecto anterior!”[272]Inalterados e sem esperança, os
carros fúnebres desfilam.
À medida que as sinistras rodas das seis carroças giram, parecem arar um
sulco profundo e tortuoso entre o populacho ao longo das ruas. Estrias de rostos
são arremessadas de um lado e de outro, e os arados seguem em frente. Tão
habituados estão os habitantes das casas àquele espetáculo que, em muitas
janelas, não se vê ninguém e, em outras, a escassa platéia não interrompe o
trabalho manual enquanto seus olhos fiscalizam as faces que desfilam nos carros
mortuários. Aqui e ali, os moradores recebem visitantes que foram apreciar a
exposição; então, apontam os dedos, com a complacência de um curador ou de
um expositor autorizado, para essa e aquela carroça, aparentemente informando
quem desfilou por ali ontem e anteontem.
Dos ocupantes dos carros, uns observam esses detalhes e todos os demais ao
longo de seu derradeiro trajeto, com um semblante impassível; outros, com umpersistente interesse pelos caminhos da vida e dos homens. Alguns, sentados de
cabeça baixa, estão imersos em silencioso desespero; há alguns tão zelosos de sua
aparência que lançam à multidão olhares copiados de peças teatrais e de
quadros. Muitos, de olhos fechados, meditam ou procuram organizar seus
caóticos pensamentos. Apenas um, uma criatura miserável com aspecto
ensandecido, está tão alucinado e embriagado de horror que canta e tenta dançar.
Nenhum deles apela, por gestos ou por palavras, para a compaixão do povo[273].
Um piquete de cavalaria guarnece os flancos das carroças. Muitos rostos se
levantam para fazer perguntas aos soldados, mas parece que a questão é sempre
a mesma, já que a resposta invariavelmente conduz a multidão para o terceiro
dos carros, onde se encontra um homem para quem os guardas apontam
freqüentemente com a ponta das espadas. Todos querem saber qual dos
prisioneiros é ele. Ele está no fundo da carroça, com a cabeça curvada para
conversar com a moça humilde que, sentada a seu lado, segura-lhe a mão. Ele
não sente curiosidade nem preocupação com o que acontece ao redor, apenas
ocupa-se com a moça. Aqui e ali, pela longa rua de Saint Honoré[274], erguem-
se gritos contra ele. Se chegam a produzir-lhe alguma reação, esta não passa de
um sorriso sereno, enquanto sacode os cabelos para ocultar mais a face. Não lhe
é possível tocar o rosto com os braços amarrados.
Nos degraus de uma igreja, o espião e “carneiro” das prisões aguarda a
chegada dos carros fúnebres. Procura no primeiro carro: não está lá. Olha o
segundo: também não. Ele já se indaga “Será possível que me tenha
sacrificado?”, quando vê o terceiro carro e se acalma.
— Qual é Evrémonde? — inquire um homem atrás dele.
— Aquele. No fundo da carroça.
— De mãos dadas com a moça?
— Sim. O homem brada:
— Abaixo Evrémonde! Para a Guillotine com todos os aristocratas! Abaixo
Evrémonde!
— Shh... silêncio — roga-lhe Barsad, timidamente.
— Por quê, cidadão?
— Ele vai expiar as suas faltas. Em cinco minutos terá pago a sua dívida.
Deixe-o em paz.
Mas, continuando o homem a exclamar: “Abaixo Evrémonde!”, o rosto de
Evrémonde por um momento se volta para ele. Evrémonde então avista o espião,
fita-o atentamente e segue seu caminho.
Os relógios estão prestes a anunciar as três horas, e o sulco aberto entre o
populacho faz uma curva para alcançar a praça onde se realizam as execuções e
ali termina. As estrias arremessadas de um lado e de outro agora desmoronam e
se fecham atrás do último arado depois que ele se vai, pois todos estão se
dirigindo para a Guillotine. Em frente a ela, instaladas em cadeiras, como se num
jardim de diversão pública, acham-se numerosas mulheres atarefadas com seu
tricô. Numa das cadeiras da frente, está “A Vingança”, procurando a amiga.
— Thérèse! — ela berra com a sua voz estridente. — Alguém a viu?
Thérèse Defarge!
— Nunca faltou antes — observa uma tricoteira da irmandade.— Não, nem faltará hoje — replica “A Vingança”, petulantemente. —
Thérèse!
— Grite mais alto — recomenda a mulher.
Ai! Mais alto, “Vingança”, muito mais alto, e nem assim ela a ouvirá. Mais
alto ainda, “Vingança”, acrescentando uma pequena imprecação, e nem assim
ela virá. Envie mulheres para dar-lhe busca onde quer que ela se demore; e,
contudo, embora essas mensageiras tenham praticado atos terríveis, é
questionável se elas, por vontade própria, iriam longe o suficiente para encontrá-
la!
— Que azar! — lamenta-se “A Vingança”, batendo os pés na cadeira. — E
eis que chegam os carros! Evrémonde será despachado num piscar de olhos e
ela não está aqui! Vejam, tenho o tricô dela em minhas mãos e guardei-lhe uma
cadeira vaga. Oh, vou chorar de contrariedade e desapontamento!
Enquanto “A Vingança” desce de seu pedestal para cumprir a palavra, as
carroças começam a descarregar seu peso. Os ministros da Santa Guilhotina
estão paramentados e a postos. Crash! Uma cabeça é exibida para a platéia e as
tricoteiras, que mal suspendiam os olhos para contemplála um momento antes,
quando ainda podia pensar e falar, contaram:
— Uma.
A segunda carroça se esvazia e parte. A terceira chega. Crash! E as
tricoteiras, jamais hesitando ou interrompendo seu trabalho, contam:
— Duas.
O suposto Evrémonde desce e a costureira é retirada em seguida. Ele não
abandonou a resignada mão dela ao descer, continuando a segurá-la conforme
prometera. Gentilmente, vira-a de costas para o medonho engenho, que
constantemente voa para o alto e desaba, e ela fita-lhe o rosto com gratidão.
— Não fosse por você, querido desconhecido, eu não estaria tão calma, pois
sou uma pobre moça de coração frágil.
Nem seria capaz de elevar meus pensamentos para Ele, que foi crucificado
para que nós tivéssemos esperança e conforto aqui, hoje. Acho que você me foi
enviado pelos céus.
— Posso dizer-lhe o mesmo — responde Sydney Carton.
— Olhe sempre para mim, querida criança, e não se aflija com mais nada.
— Não me aflijo com coisa alguma enquanto lhe seguro a mão. E não me
afligirei, quando chegar a minha hora, se eles forem rápidos.
— Eles serão rápidos. Não tema.
Os dois se encontram em meio à multidão de vítimas, que diminui
aceleradamente, mas conversam como se estivessem a sós. Olho a olho, voz a
voz, mão a mão, coração a coração, esses dois descendentes da Mãe Universal,
de outra forma tão distantes e diferentes, foram unir-se no sombrio caminho,
para regressarem juntos ao lar e lá repousarem em seu regaço.
— Meu valente e generoso amigo, permite-me que lhe faça uma última
pergunta? Eu sou muito ignorante e... essa questão me perturba... um pouco.
— Diga-me de que se trata.
— Tenho uma prima, minha única parente, órfã como eu e a quem amo
com ternura. É cinco anos mais nova do que eu, e vive numa casa de fazenda, nosul. A pobreza nos separou e ela não sabe da minha sorte, pois não sei escrever, e,
se soubesse, como poderia contar-lhe? É melhor assim.
— Tem razão, é melhor assim.
— O que eu vinha pensando, no carro, e que penso neste momento em que
lhe contemplo o rosto vigoroso que me transmite tanta segurança, é o seguinte: se
a República realmente beneficia os pobres, diminuindo sua fome e seu
sofrimento, minha prima poderá viver por muito tempo, poderá até envelhecer.
— E isso a preocupa, minha gentil irmã?
— Você acredita — os resignados olhos, nos quais há tanta tolerância, se
enchem de lágrimas, e seus lábios se entreabrem, trêmulos — que não me
parecerá longo demais o tempo em que esperarei por ela na terra melhor onde
confio que você e eu seremos misericordiosamente acolhidos?
— Impossível, minha criança. Lá não existe tempo nem aflições.
— Você me conforta tanto! Sou tão ignorante. Posso beijá-lo agora? Chegou
o momento?
— Sim.
Ela lhe beija os lábios; ele beija os dela; solenemente, abençoam um ao
outro. A mão calejada não treme quando ele a desprende das suas; no resignado
rosto nada mais há além de uma doce e luminosa firmeza. Ela é a próxima antes
dele... já se foi. As tricoteiras contam:
— Vinte e duas.
“Eu sou a ressurreição e a vida”, disse o Senhor; “quem crê em mim, ainda
que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive, e crê em mim, nunca
morrerá.”
O murmúrio de muitas vozes, o virar de muitos rostos, a impaciência de
muitos passos nas extremidades da multidão, pressionando para que esta
avançasse em massa, como uma gigantesca onda do mar, e, de súbito, tudo se
aquieta.
— Vinte e três.
Naquela noite, disseram a respeito dele, na cidade, que a sua face foi a mais
plácida já vista ali. Muitos acrescentaram que sua expressão era sublime e
profética.
Uma das mais notáveis vítimas[275] do mesmo machado, uma mulher,
havia pedido, ao pé do mesmo patíbulo, não muito tempo antes, que lhe
permitissem escrever os pensamentos que a estavam inspirando. Se ele tivesse
expressado os seus pensamentos, e se estes fossem proféticos, seriam assim:
“Vejo Barsad e Cly, Defarge, ‘A Vingança’, os jurados,
o juiz, longas fileiras de novos opressores que se ergueram para destruir os
antigos, perecendo sob o mesmo instrumento de vingança antes que seu uso seja
abandonado. Vejo uma linda cidade e um povo brilhante surgindo do abismo e,
em suas batalhas pela verdadeira liberdade, em seus triunfos e derrotas, através
de muitos e muitos anos no futuro, vejo o mal deste tempo e o do tempo anterior,
do qual é o fruto natural, gradualmente sendo expiado[276] e redimido.
Vejo as vidas pelas quais doei a minha vida, serenas, úteis, prósperas e
felizes, naquela Inglaterra que não verei jamais. Eu a vejo com uma criança nocolo, que tem o meu nome. Vejo o pai dela, velho e curvado, mas saudável e fiel
a todos os homens em seu ofício de cura, e em paz. Vejo o bom ancião, amigo
tão antigo deles, dentro de dez anos, enriquecendo-os com tudo quanto possui, e
tranqüilamente recebendo sua recompensa.
Vejo que tenho um santuário em seus corações, e nos corações de seus
descendentes, por várias gerações. Eu a vejo, idosa, chorando por mim no
aniversário deste dia. Eu a vejo e a seu marido, tendo percorrido o caminho,
jazendo lado a lado em seu último leito terreno, e sei que cada um não foi mais
querido e sacralizado na alma do outro do que eu na alma dos dois.
Eu vejo aquela criança que se aconchegou no colo dela e que tem o meu
nome, já homem feito, conquistando vitórias no campo que um dia foi o meu. Eu
o vejo tão vitorioso que meu nome se torna ilustre pela luz de seus feitos. Vejo as
máculas que atirei sobre meu nome desaparecerem. Eu o vejo como o primeiro
entre os juízes e os homens honrados, conduzindo um menino, que também tem o
meu nome e a fronte expressiva que conheço e os cabelos dourados, a este lugar,
que será então bonito de se olhar, desprovido de qualquer vestígio da
desfiguração deste dia[277], e eu o ouço contar ao filho a minha história, com
voz terna e comovida.
O que faço hoje é muito, muito melhor do que tudo quanto já fiz. E a paz
que tenho hoje é muito, muito maior do que a paz que jamais conheci”. Posfácio
POSFÁCIO ANDREW SANDERS
Como um subterfúgio para distrair a atenção de Charles Darnay na cela na
Conciergerie, Sydney Carton lhe pede para escrever o que ele lhe ditaria em
seguida. “Caso se lembre das palavras que lhe disse um dia”, compreenderá
imediatamente o sentido destas linhas. Estou certo de que já as recorda agora,
porque não é de sua natureza esquecê-las.” A carta de Darnay jamais foi
terminada, embora as poucas palavras que escrevera terão, presumimos, um
significado para ele no desconhecido futuro que Carton não partilharia. Palavras
trocadas no passado projetam-se no futuro e assumem uma nova importância,
uma vez compreendidas dentro de um contexto próprio. O tempo, como ocorre
com freqüência em Um Conto de Duas Cidades, revelará o significado. O fato de
aqueles condenados à guilhotina escreverem cartas não era incomum durante a
primeira Revolução Francesa. Caixas de cartas como essas sobrevivem nos
Archives Nationales, em Paris, todas retidas pelo promotor público da era do
terror, Fouquier-Tinville. Nenhuma alcançou seu destinatário e a maioria, muito
provavelmente, foi arquivada, sem ser lida, até que uma seleção delas foi
publicada, em 1984, por Olivier Blanc (La Dernière Lettre: Prisons et
Condamnées de la Révolution 1793-94). Apenas os longos últimos testamentos de
Maria Antonieta e de madame Roland tornaram-se familiares para os
historiadores e divulgadores. Aqueles deixados por vítimas menos notáveis foram
guardados como relíquias à parte, um arquivo dissociado das paixões de seus
escritores e possíveis leitores. A necessidade de registrar algo de significativo
claramente se impôs a muitos dos que aguardavam a morte na Conciergerie
(embora tal significância freqüentemente se perca entre os desapaixonados
leitores de hoje). Um historiador como Thomas Carlyle teria imediatamente
reconhecido a importância dessas cartas, se estivessem ao seu alcance na década
de 1830, pois elas constituíam precisamente o tipo de material de que ele se
utilizou para moldar sua excelente narrativa The French Revolution; a primeira
fonte de que se valeu Dickens para o seu romance histórico, onde lança mão da
mesma base factual. Carlyle registra que, quando madame Roland esperava sua
vez de morrer, pediu papel e pena “para anotar os estranhos pensamentos que a
acometiam”. Seu pedido foi recusado, presumivelmente por alguém que temia o
poder das palavras. Esse silêncio imposto, contudo, serviu para inspirar Dickens
na articulação dos pensamentos de Sydney Carton ao subir à mesma guilhotina.
Um hiato histórico se torna um estímulo para a ficção.
Cartas, registros, memorizações e recordações assumem singular
importância em Um Conto de Duas Cidades, e nossa leitura do romance depende,
freqüentemente, de como personagens e leitores interpretam esses testemunhos.
A suposta última carta de Darnay é interrompida, mas Carton retoma seu temade lembrar-se e ser lembrado em sua “profética” última alocução. A base da
trama ficcional é a semelhança entre Carton e Darnay, mas, como persona-gens
que se manifestam através da palavra escrita e oral, eles se acham ligados a
personalidades históricas reais ou imaginadas. A exemplo do que ocorre em The
French Revolution, de Carlyle, os dados arquivológicos se apresentam sob a
forma de narrativa, e as efemeridades adquirem o peso de testemunhos. A
instância fundamental deste romance é representada pelo depoimento oculto do
doutor Manette, por meio do qual o passado é dramaticamente trazido à cena no
presente. É provável que Dickens se tenha inspirado na citação de Carlyle acerca
da petição outrora esquecida de um prisioneiro real da Bastilha, um certo Quéret-
Démery, patético exemplo de carta não enviada que se descobriu na época da
demolição da prisão, quando sua relevância inicial já se havia perdido. A carta de
Manette é, ao mesmo tempo, igual e diferente dessa última. A de Quéret-
Démery endereçava-se a um ministro da corte e implorava clemência. A de
Manette dirigia-se a um futuro não conhecido e à “piedosa mão” que porventura
a descobrisse; não rogava clemência, mas justiça; é acusadora e não patética.
Ironicamente, seria descoberta não por uma mão piedosa, mas por uma
vingativa. Não seria publicada, como a de Quéret-Démery, quando seu autor e
seus sofrimentos já se houvessem reduzido a pó, e sim quando Manette encontrou
a família e fez novos amigos e assumiu novas responsabilidades. Manette supera
a própria amargura, mas a carta sobreviveu à paixão que a inspirara. O médico,
que fora antes forçado a refugiar-se num silêncio não natural, torna-se eloqüente
quando o silêncio teria sido preferível. Na qualidade de testemunha compulsória
diante do tribunal revolucionário, ele não mais interpretava seu passado da
maneira dolorosa como fizera na Bastilha. Criara uma nova realidade para si
mesmo. Seu recente sofrimento advém do fato de que outras pessoas,
principalmente os Defarges, leram sua carta sob um prisma que permitia uma
compreensão totalmente diversa de uma história que era tanto particular quanto
pública.
É por intermédio de uma outra carta, enviada com esperança a um homem
que tentara evitar as conseqüências de seu nome, que Charles Darnay retorna à
França revolucionária, no verão de 1792. No último capítulo da Segunda Parte, o
apelo “urgentíssimo” de Gabelle ao “monsieur, outrora, marquês de St.
Evrémonde, da França”, alerta os leitores sobre o segredo dos ancestrais e dos
nomes ocultos por Darnay. Que ele era o sobrinho de um marquês francês já
fora evidenciado na história, mas o nome da família (que ecoará e tornará a
ecoar nos estágios finais da narrativa) ainda não havia sido mencionado. Aqui
repousa outra ironia. A carta alcança o homem que, ao mesmo tempo, é e não é
o marquês de Saint Evrémonde. Na Inglaterra, ele é Charles Darnay, embora
pudesse reclamar legalmente o título de marquês. Na França, como se haviam
abolido os títulos de nobreza, ele é um Evrémonde, porém não mais um marquês.
Darnay lê a carta e compreende sua importância: o nome dos Evrémonde é a
“pedra-ímã” que o atrai inevitavelmente para um destino histórico e para as
“obrigações” que ele admite quando escreve as cartas de despedida para a
esposa e para o sogro. A carta de Gabelle alcança seu destinatário. Darnay
reconhece o contexto dela e o seu próprio.Os depoimentos e os nomes devem sempre ser lidos com atenção. No
julgamento de Darnay em Old Bailey, na Inglaterra, os depoimentos contra ele
são tão ambíguos como seu nome verdadeiro. Darnay é absolvido apenas porque
sua extraordinária semelhança com Carton lança uma dúvida positiva quanto a
sua identidade. Um estratagema paralelo liberta-o da Conciergerie, embora,
nessa instância, Carton se submeta ao destino reservado ao nome Evrémonde,
enquanto Charles fica livre para retomar o nome e o destino de Darnay. Uma
confusão de nomes e identidades similar marca o aparecimento e o
desaparecimento de Solomon Pross, refletindo o jogo de duplicidades que
permeia todo romance. A maneira como as coisas ou as pessoas são chamadas é
fundamental numa narrativa que abrange duas cidades e dois idiomas. Dickens
nos oferece personagens bilíngües (Manette, Darnay, Carton), mas também
experimenta o recurso de traduzir literalmente as expressões francesas da fala de
personagens que só conhecem esse idioma (os Defarges e os Jacques) para o
inglês. Esse expediente pode parecer canhestro, e tem sido freqüentemente
condenado pela crítica, mas sutilmente enriquece a complexidade de uma
narrativa em que o modo como se interpretam as palavras é de vital importância.
Em algumas circunstâncias, os eventos e ações servem para que se revejam
palavras e conceitos, assim como a própria Revolução havia buscado redefinir
eras, meses e dias. Dickens cita com duplo sentido o lema revolucionário —
“Liberdade, Fraternidade, Igualdade ou Morte”, de tal forma que as palavras
pareçam ecoar tanto de maneira reverente quanto irônica na experiência dos
personagens. O título de “cidadão”, imposto por decreto, pouco significa para
aqueles a quem se negaram os direitos e privilégios da cidadania. Às vezes, as
palavras falham em seu conjunto, notadamente no confronto final entre madame
Defarge e a senhorita Pross, ambas tão encerradas em seus idiomas quanto na
batalha física, a qual é a única representação, no romance, do embate entre bem
e mal. No final da história, é a voz do narrador que desempenha o papel de
articulador das reflexões proféticas de Carton, projetando-as num futuro humano
que necessariamente excluiria o silencioso profeta.
Nos últimos parágrafos de Um Conto de Duas Cidades, Carton também
antecipa os descendentes dos Darnay que purgarão o seu nome das “máculas”
com que ele o manchara. O primeiro desses futuros Sydneys será também “o
primeiro entre os juízes e os homens honrados”, e, assim, ofertará o tipo de
justiça que se oporá à injustiça que destruiu Carton e ameaçou a todos os
Evrémonde-Darnay. Pode muito bem ser que as máculas às quais Carton se
refere sejam nódoas que ele indiretamente lançou sobre a reputação do herói
inglês republicano em homenagem a quem foi nomeado, Algernon Sydney. Esse
Sydney foi também vítima de injustiça, tendo sido julgado e executado no século
dezessete pelo famoso juiz Jeffreys (a quem Carton é comparado em sua
embriaguez). A opção de Dickens pelo nome de batismo apresenta uma
ramificação posterior na trama ficcional, conferindo uma dimensão extra à
discussão das causas e efeitos históricos e à idéia de justiça que permeia a
narrativa. O Carton fictício se entrega a uma espécie de expiação, não só pelo
“desperdício” de sua vida mas também pela injustiça das instituições judiciais
revolucionárias. Algernon Sydney acabou sendo considerado um mártir da causada liberdade pelo partido político inglês dos Whigs, morrendo, como Macaulay
descreveu, “com a fortitude de um estóico”; Carton morre à maneira cristã, com
um texto acerca da ressurreição em seus lábios e com um semblante que
impressiona a platéia por ser “sublime e profético”. A imolação de Carton
reverte a percepção da justiça como vingança, própria dos Defarges, do mesmo
modo como fez o doutor Manette ao descobrir o caminho para a própria
recuperação através da virtude da misericórdia. O conceito de martírio contém
uma série de paradoxos. A morte de Carton, que reúne e contrasta conceitos de
justiça e de misericórdia, induz o leitor a examinar um paradoxo particularmente
complexo dentro da estrutura de uma trama tão firmemente assentada na
verdade histórica.
Ao ser condenado pelo tribunal, Darnay tenta acalmar sua transtornada
família com as palavras: “Não podia ser de outro modo... Todas as circunstâncias
contribuíram para esse resultado”. O romance de Dickens retrata tanto essa
“contribuição das circunstâncias” quanto a forma pela qual a interferência de
Carton permite uma conclusão imprevista da seqüência dos eventos. Seguindo as
pegadas de Carlyle, Dickens vê a Revolução como uma conseqüência inevitável
da História. Ao iniciar sua trama nos anos 1750, ele não só a provê de vívidos
testemunhos dos crimes pelos quais o ancien régime seria condenado por suas
vítimas mas também pre-para a intervenção individual no processo histórico que
impede o castigo dos filhos pelos pecados dos pais. A impressão que recebemos
da França de Luís XV e de Luís XVI é altamente desfavorável; trata-se de uma
sociedade baseada no privilégio e no abuso dele. Acima de tudo, tanto no capítulo
inicial do romance, de forma genérica, quanto nas discussões dos Jacques mais à
frente, paira a idéia do século dezoito de justiça criminal como dolorosa e
sangrenta retaliação (somos remetidos aos casos históricos de De La Barre e
Damiens, e ao exemplo ficcional do assassinato do marquês). Dickens, contudo,
não nos oferece nenhum exemplo de líder revolucionário que articule uma
reação contra um sistema político e social moribundo. Em vez disso, temos os
tacanhos preconceitos dos Defarges, sequiosos por vingança pessoal, a cujos
olhos a Revolução é simplesmente uma conseqüência de seus sofrimentos
passados e uma resposta às opressões suportadas por seus ancestrais. O romance
nos fornece um contexto histórico, mas com uma visão limitada de como um
processo revolucionário em particular evoluiu. Isso tem parecido, para muitos
críticos, ser uma óbvia esquiva à análise, constituindo mais uma série de vívidas
impressões do que uma investigação séria. Adotar essa postura é subestimar a
inteligência de Dickens como artista. Como penosamente sugeriu em seu
Prefácio, ele não visava a “acrescentar nada à filosofia do excelente livro do
senhor Carlyle”. Um Conto de Duas Cidades figura ao lado de The French
Revolution não como uma alternativa ficcional desta. Carlyle fundiu muitas
perspectivas em sua narrativa; Dickens compôs um romance dickseniano sobre
indivíduos fictícios durante o período revolucionário. O sacrifício de Carton não
soluciona o problema do Reinado do Terror mais do que o casamento de Esther e
Allan Woodcourt resolve o dilema da Inglaterra dividida em Bleak House.
Ambos os gestos, todavia, podem ser interpretados como simbólicos. Dickens não
insinua que a trama de seu romance descreve o processo revolucionário, nemque as revoluções deveriam evoluir conforme a dialética moral da história, mas
sim que os indivíduos, diante de escolhas morais, podem escolher a misericórdia
e não a justiça, o sacrifício e não o egoísmo, e que tais escolhas podem provar o
caminho humano mais perfeito. O romance meramente fornece aos leitores um
certo tipo de testemunhos, mas deixa-os abertos para a interpretação. Um dos
primeiros críticos a questionar a precisão e a validade da compreensão de
Dickens do período revolucionário foi seu amigo Edward Bulwer-Lytton. Tendo
defendido sua compreensão das fontes de que se utilizou, o romancista continuou
a insistir na propriedade de introduzir em sua trama o acaso por meio do qual ele
dá fim a madame Defarge:
Onde o acaso é inseparável da paixão e da ação da personagem; onde é
rigorosamente compatível com todo o esquema e surge da culminância de um
procedimento individual a que toda a história conduziu; ele me parece
transformar-se num ato de justiça divina. (5 de junho de 1860.)
O acaso, analisado sob determinada luz, aparece como um ato providencial.
A história, da qual Dickens tanto se orgulhava, é um “projeto” que tem de ser lido
e entendido como um padrão. Esse padrão pode representar uma ordenação
humana que oferece algum sentido em meio de uma seqüência de eventos
históricos que pareceram a Carlyle oscilar à beira do caos.
A ênfase conferida por Dickens à intervenção do indivíduo, mais do que uma
demonstração ou um pincelamento dos mais importantes eventos e idéias da
Revolução, pode também estar ligada a fatores em sua vida e experiência
pessoais. Seus sentimentos com relação à França e aos franceses, e seu íntimo e
afetuoso conhecimento sobre Paris, certamente contribuíram muito. Ao longo de
Um Conto de Duas Cidades, Paris é vista como de algum modo presa de um
temível encantamento; suas ruas são violentas, sujas de sangue, e pobres; seu
povo é mal-humorado, ameaçador e defensivo. Essa não era a Paris que Dickens
parece ter conhecido em meados do século dezenove, e a disparidade entre a
cidade imaginada e a vivenciada certamente o perturbou. Quando viu Paris pela
primeira vez, em 1844, ele a achou o “lugar mais extraordinário do mundo”; suas
ruas lhe mostravam “inovações, inovações, inovações”. Daí em diante, quando
ele descreve a cidade em suas cartas, em sua ficção secundária ou em seus
ensaios periódicos, descreve-a como um lugar de luz, cores, asseio, prazer e
deliciada fantasia. Ele estava, é claro, ciente do papel que a capital desempenhou
nas revoluções de 1830 e de 1848, mas, de alguma forma, essas mudanças
liberais de regime eram recebidas pelo progressista Dickens como apropriadas à
sua época, em nada semelhantes ao “tempo terrível” do início dos anos 1790. Sua
perplexidade diante do contraste entre a cidade da luz e a cidade da destruição se
expressa em uma extraordinária imagem. Quando Carton é levado através das
ruas em seu caminho para a guilhotina, o narrador sugere que a cidade
revolucionária está sob o jugo de um “encanto poderoso” ou de um “grande
mago” que está “executando a ordem estabelecida pelo Criador”. Mais uma vez
nos vemos diante de um paradoxo. Como pode esse lugar de destrutiva desordem
coexistir com a ordem do Criador? Em certa medida, a trama oferece umasolução especulativa, mas, neste ponto da narrativa, a resposta é um eco das Mil
e Uma Noites. Em uma dessas histórias favoritas da infância de Dickens, um
homem, transformado em macaco, é revertido à forma humana através de uma
simples fórmula questionadora que rompe o encanto. Carton pode não se ter
libertado de sua condenação, mas Paris está em vias de se libertar. Não existe
fórmula, nem princesa, para apresentar a questão vital, exceto os pensamentos
proféticos que, no final, inspiram o homem prestes a morrer, vendo Paris
novamente bela e “um povo brilhante surgindo do abismo”. O tempo se
encarregará da expiação, cumprindo os propósitos da providência, e o sonho
suplantará o pesadelo.
Parece provável que, durante suas repetidas visitas a Paris nos anos 1840 e
1850, Dickens procurou pelas relíquias do pesadelo. Sua leitura de The French
Revolution, de Carlyle, já o teria familiarizado com as associações dos principais
sítios históricos sobreviventes (ou seja, sobreviventes às mudanças
implementadas pelo primeiro Napoleão), mas quase certamente ele visitou as
prisões da cidade durante suas fascinadas caminhadas pelas ruas. A Bastilha
havia sido sistematicamente demolida em 1789, mas a Conciergerie, La Force e
Abbaye ainda existiam. Tanto La Force (demolida em 1851) quanto Abbaye
(demolida em 1854-5) ainda eram utilizadas como casas de detenção. Como seus
escritos publicados amplamente testificam, Dickens se sentiu instintivamente
atraído por prisões ao longo da vida. A sombra da detenção do pai em Marshalsea
nos anos 1820 paira sombriamente sobre sua ficção, desde as descrições de
Newgate e de Fleet em Sketches by “Boz” e Pickwick Papers à despercebida
cena em que uma cela de condenados que talvez devesse ser a causa da crise em
The Mystery of Edwin Drood. Em Pictures from Italy, há descrições horrorizadas
das masmorras de Avignon e das celas adjacentes ao Palácio do Doge em
Veneza. Estranhamente, foi o moderno sistema carcerário norte-americano que
provavelmente forneceu o estímulo inicial para o perfil do Dr. Manette. No
sétimo capítulo de American Notes, Dickens descreve minuciosamente sua visita
à Eastern Penitentiary, na Filadélfia, e é incisivo em sua condenação ao sistema
de confinamento solitário lá praticado:
Acredito que muito poucos homens são capazes de avaliar quanta tortura e
agonia esse medonho castigo, prolongado por anos, inflige aos que o sofrem. E, ao
refletir comigo mesmo, ponderando sobre o que vi escrito em seus rostos e sobre o
que por uma certa experiência sei que eles sentem, só me convenço mais que há
uma profundidade de terrível persistência na qual ninguém além dos próprios
sofredores pode mergulhar, e a qual nenhum homem tem o direito de infligir a um
semelhante. Eu sustento que esse lento e diário corrompimento dos mistérios do
cérebro é incomensuravelmente pior do que qualquer tortura do corpo.
A descrição dos efeitos do longo cativeiro de Manette, de sua recuperação e
de seus lapsos de silêncio, é uma das mais persuasivas exposições da perturbação
mental em toda a obra de Dickens (e Dickens geralmente observava mais as
aberrações mentais do que qualquer outro romancista inglês). Ao fundir suas
impressões do sistema da Filadélfia com os horrores imaginados da Bastilha, omonstro entre as prisões, o romancista encontra o germe de sua história. A
imagem do prisioneiro solitário aparece como uma vinheta na páginatítulo da
primeira edição do romance, e Dickens preparou, mas não chegou a dar a
público, uma leitura baseada na condensação de Um conto de Duas Cidades, que
seria chamada simplesmente de “O Prisioneiro da Bastilha”. Ao escrever o
romance, ele cuidadosamente antecipou a partida de Darnay para a França para
1792, a fim de que ele pudesse estar em Paris em setembro daquele ano, época
do massacre nas prisões, e insistiu em que o confinamento de Darnay em La
Force fosse “en secret” (solitário), uma condição um tanto extraordinária,
considerando-se a superpopulação dos cárceres.
A notícia da libertação de Manette da Bastilha (“De Volta à Vida”, Primeira
Parte) dá início à trama do romance. Quando o impacto e o significado da notícia
calam no espírito, Dickens começa o Capítulo III com uma reflexão sobre os
“mistérios do cérebro”, o qual se relaciona com sua evidente perturbação ao
descrever o sistema de confinamento solitário da Filadélfia. Jerry Cruncher
chega a Londres à noite e encontra a cidade adormecida, e o narrador oferece
uma reflexão em seu nome:
...cada ser humano se constitui num profundo e indecifrável enigma para
todos os demais. Sempre que entro numa grande cidade à noite, considero com
gravidade que todas aquelas casas fechadas e escuras encerram seu próprio
segredo, que cada aposento em cada uma delas oculta um mistério, que cada
coração pulsando nessas centenas de milhares de peitos esconde algum segredo
para o coração que está a seu lado! Alguma coisa do horror, até mesmo da Morte,
tem a ver com esse fato.
A mente humana, por meio da qual o mundo externo é apreendido,
articulado e de alguma forma ordenado, dorme. Mais perturbador, cada mente é
distinta da de seu vizinho; durante o sono, ela se isola, incomunicável, entregue a
si mesma. Essa passagem em parte sugere por que Dickens se mostrava sempre
pouco inclinado a analisar os pensamentos e motivos de suas personagens,
preferindo registrar-lhes as palavras e observar seu comportamento externo; mas
esse fato também está intimamente ligado aos temas deste romance em
particular. Os “mistérios do cérebro”, e os perigos de se corromperem esses
mistérios, estão em toda a parte. A catatonia de Manette se mostra suscetível ao
tratamento persuasivo (notadamente no capítulo XIX, “Uma Opinião”), mas
outras conseqüências do trauma mental têm calamitosos resultados sociais. De
muitas formas, a mente torturada de Manette prefigura as mais propagadas
distorções produzidas pela França do ancien régime. Esse sistema doentio (“a
lepra da irrealidade”, como é chamada), é bastante visto no romance através dos
olhos parciais de Carlyle. Contudo, em sua determinação de estabelecer relações
de causa e efeito, Dickens situa o estímulo para o excesso revolucionário na
condição da França pré-revolucionária. Thérèse Defarge é tão produto do
sistema quanto Manette; a diferença entre ambos repousa no fato de que o
prolongado confinamento dela se dá numa camisa-de-força mental e moral. É
sob essa perspectiva que podemos apreender a importância da retórica semprecitada (e criticada) do narrador, que abre o último capítulo do romance:
Devolva-se a humanidade à forja que a criou e utilizem-se martelos
semelhantes para tornar a esculpi-la e ela se contorcerá na mesma imagem
torturada. Cultivem-se de novo as mesmas sementes de desordem e opressão
rapaces e certamente serão colhidos os mesmos frutos amargos.
Essa é uma advertência insistente tanto em relação ao passado, o capítulo
inicial da narrativa, quanto ao futuro não ficcional. A Revolução teve suas causas,
e desenvolveuse como um fruto natural das más sementes que haviam
aguardado a estação apropriada para germinar. Essa é uma visão inteiramente
Carlyleana. A primeira imagem de Dickens também deriva de Carlyle, mas
podemos reconhecêla por suas reiterações em outros romances. O espírito
humano, distorcido pelos sistemas, pelas falsidades e pelas filosofias fraudulentas,
produz distorções sociais. Uma hipocrisia opressiva provavelmente gerará outra
em reação, como aconteceu na França nos anos 1790. A colheita do filosofismo
francês pode ter sido pior do que a do Benthamismo inglês, mas trata-se apenas
de uma questão de gradação. Como sempre ocorre na obra de Dickens, são os
indivíduos que se libertam da rígida imposição das instituições, e não as
instituições que promovem mudanças em si mesmas. Nessa limitada liberdade
de uns poucos indivíduos jaz a única esperança para o futuro. É por isso que
Dickens desconfia tanto, e, conseqüentemente, não retrata em seus romances, o
idealismo da Revolução Francesa. A trajetória de Manette não é a mesma de
Marat, nem a de Carton é igual à de Saint-Just.
Uma ramificação pessoal da natureza do romance necessita, por fim, ser
mencionada. Em seu prefácio, Dickens menciona ter concebido a idéia principal
da história enquanto atuava, com seus filhos e amigos, no “drama The Frozen
Deep, do senhor Wilkie Collins”. A peça de Collins hoje só não está esquecida
justamente por sua conexão com Um Conto de Duas Cidades, mas o elenco
reunido para sua representação em 1857 oferece mais do que um interesse
passageiro. Dickens era, segundo diziam todos, um ator talentoso e
verdadeiramente apaixonado, e seu desempenho como o herói imperfeito da
peça parece ter exigido muito dele, em termos emocionais. Essas emoções se
complicaram durante as três primeiras apresentações públicas em Manchester,
em julho de 1857, pois aqui atores profissionais passaram a compor o elenco.
Esses atores, todos membros da família Ternan, assumiram os papéis femininos,
tirando-os da filha de Dickens e da esposa de seu assistente, Wills. A mais jovem
dos Ternan, Ellen, representou o papel de Lucy Crayford. A trama da peça é
melodramática e se articula na rivalidade de dois homens no amor: o pretendente
rejeitado, Richard Wardour (representado por Dickens), termina a peça
morrendo nos braços da mulher que ele ainda ama, após ter salvado a vida de
seu rival durante uma expedição no Ártico (a “profundeza gelada”, que dá nome
à peça). A ligação com o romance parece a princípio tênue, por não haver ecos
verbais ou estruturais de natureza óbvia na ficção posterior. O que parece ter
ficado impresso na mente de Dickens foi a elevada noção de sacrifício e sua
relação com o poder de redenção e purificação do amor. A presença de EllenTernan no elenco, e a clara atração física de Dickens por ela durante a época da
composição do romance, parecem ter moldado certos aspectos da narrativa.
Ellen torna-se o modelo vivo para Lucie Manette, como sinaliza a fácil
transformação de “Lucy” em “Lucie”, e Richard Wardour parece ter sugerido a
concepção do caráter de Sydney Carton. Como o manuscrito do romance revela,
Dickens primeiramente deu a Carton o nome de “Dick”, mas mudou de idéia
pouco depois. A ligação entre “Dick” e “Richard” é óbvia, mas pode-se apenas
especular sobre a motivação inconsciente que deve ter sugerido a Dickens suas
próprias iniciais “C.D.” para Darnay e sua inversão, “D.C.”, originalmente para
Carton. Os dois homens assemelham-se muito, é claro, mas a perspectiva das
duas principais figuras masculinas na história se chamarem “Charles” e “Dick”
deve ter logo ocorrido ao romancista como um código por demais manifesto.
Não devemos observar demais do autobiográfico ou muito do Dickens ator
em Um Conto de Duas Cidades, embora claramente uma forte simpatia pessoal,
tanto por Darnay quanto por Carton, transpareça em sua criação. É interessante
notar como o fato de cada um deles espelhar o outro fisicamente, enquanto se
opõem em termos de caráter ecoa na ficção posterior de Dickens. Pares de
personagens, que também são rivais, em Great Expectations (Pip e Orlick) e em
Our Mutual Friend (Wrayburn e Headstone) têm grande importância estrutural
em seus romances aparentados. Estes romances também estão relacionados ao
tema de homens desempenhando dois papéis distintos que, às vezes, revelam-se
difíceis de conciliar. A personalidade dividida de Jasper em The Mystery of Edwin
Drood é o último e mais perturbador exemplo desse fenômeno, embora se
possam citar Wemmick, Pip, Harmon, e Boffin como paralelos menos
complexos. Um Conto de Duas Cidades exibe dualidade tanto em sua trama
quanto em seus personagens, mas o desempenho de papéis e a mudança das
vestimentas têm muito mais que uma significância e origem teatrais. O esquema
pelo qual Darnay escapa da guilhotina tem uma importância que vai além do
mero assumir de um papel e de sua interpretação.
Um Conto de Duas Cidades iniciou como uma peça e deve ainda algo de sua
presente aceitação popular ao sucesso das versões dramatizadas dessa história, a
mais famosa das quais foi The Only Way. As simplificações demandadas pelas
adaptações do romance para o palco, para o cinema ou para a televisão,
diminuíram necessariamente seu impacto e a sutileza da narrativa. Ele continua a
ser um dos romances mais subestimado de Dickens, se não efetivamente
negligenciado. Isto pode ser atribuído ao descrédito hostil generalizado contra a
ficção histórica inglesa e à crença de que Dickens não estava à vontade ao
descrever um outro período que não o seu. O tema da Revolução Francesa
assombrou grandemente a consciência do século dezenove na Inglaterra, não
apenas porque ameaçou ou mudou tantas posturas políticas mas também porque
sua violência social e caráter sanguinário parecia minar a noção de estabilidade e
feliz desenvolvimento no futuro. O segundo romance histórico de Dickens se
desenvolve num período crucial de turbulências e reajustamentos, e oferece-nos
uma séria de vias (não apenas uma única via) de formar julgamentos morais e
textuais tanto quanto históricos. Não é insignificante que Dickens brincasse com a
idéia de intitular sua história de Memory Carton, pois o final do romance jogaconsistentemente com o tempo, as gerações e atos de memória. O simples ato de
olhar para o período da Revolução de uma perspectiva de 1859 é ao mesmo
tempo uma celebração da memória e uma tentativa de harmonizar modos de ver
e de ler a história. Um teórico “melhor dos tempos” é sempre contraposto ao
“pior dos tempos”, épocas de crença contra épocas de incredulidade. Apêndice A
APÊNDICE A
A Serialização de Um Conto de Duas Cidades em 1859
Um Conto de Duas Cidades surgiu primeiramente, sem ilustrações, nas páginas
do novo periódico de Dickens All the Year Round em trinta e um pequenos
episódios semanais. O romance ocupou um lugar de destaque no jornal, mas
Dickens estava evidentemente constrangido pela brevidade das seções exigida
por este tipo de publicação (seções às quais Carlyle se refere como “colheres de
chá”). A “incessante condensação” da história serializada pareceu ao romancista
conspirar contra a rígida estrutura de sua narrativa e inibir a percepção do leitor
quanto ao seu “desenho”. Para compensar essa deficiência, Dickens resolveu
publicar, paralelamente, a história em partes mensais, com o que ele estava mais
acostumado. Ela apareceu em oito números, ilustrada por Phiz (H. K. Browne), e
publicada por Chapman & Hall. O último número, como era costumeiro, era
duplo. Essa foi a última colaboração entre Dickens e Browne. Apêndice B
APÊNDICE B
Uma Cronologia para Um Conto de Duas Cidades:
História e Ficção Histórica
Eventos Eventos
Data
FiccionaisHistóricos
22.dez.1757Manette Janeiro de
contratado 1757: Atentado
pelos irmãos de Damiens
Evrémonde.contra a vida de
Luís XV
29.dez.1757Visita do
marquês31.dez.1757Prisão de
Manette
1766:
Julgamento e
execução de la
Barre.
Dez. 1767Manette inicia
seu testamento
na Bahstilha.
Nov. 1775Libertação de
Manette
Mar. 1780Julgamento de
Darnay em Old
BaileyJun. 1780Tempestade no 1780: junho,
Soho.Revolta de
Gordon.
Jul. 1780O marquês em
Paris,
Visita de
Darnay ao
castelo,
Morte do
marquês.
Jul.-Ago. Propostas de 14.jul.1781:
1781Darnay e
Julgamento de
Stryver a Lucie.
la Motte em
Tentativas
Old Bailey.
ressurrecionista Compte Rendu,
de Cruncher.
de Necker.
Progressivo
déficit de
impostos na
França.
Verão de Nascimento da
1783pequena Lucie
(1783).
Jul.1789Morte do filho
de Darnay.
Maio 1789:
Assembléia
dosEstados-
Gerais em Versalhes.
20 de junho:
juramentode
Tennis Court.
12 de julho:
exoneraçãode
Necker.
Os Defarges na 14 de
tomada da julho:tomada da
Bastilha.Bastilha.
Assassinato de Estados-Gerais
Foulon.iniciam
Incêndio do Assembléia
castelo.Constituinte. A Família Real
trazida para
Paris.
Outubro-
Dezembro:
“Primeira
Emigração”da
aristocracia.
Junho 1790:
Abolição
dostítulos de
nobreza.
14 de julho de
1790:
“Festa da Federação”.
Abril 1791:
Morte de
Mirabeau.
Junho 1791:
“Fuga para
Varennes”.
Agosto 1791:
Convenção de
Pilnitz —
Príncipes
germânicos
declaram sua
intenção de
intervir na França.
Setembro de
1791:
A Constituição
é aceita por
Luís XVI.
Outubro 1791:
Assembléia
Legislativa.
Fev.-Março
1792:
última
emigração de
nobres.
20 de abril de 1792:
Assembléia
declara guerra
ao Imperador e
seus aliados.
Junho de 1792:
Invasão das
Tulherias.
Verão de A jovem Lucie
1792com a idade de
9 anos.
21 de junho:
carta de
Gabelle, de
Paris. 22 de julho de
1792:
“La Patrie en
Danger”.
24 de julho:
Manifesto do
Duque de
Brunswick.
10 de agosto:
Invasão armada
das Tulherias.
Massacre da
Guarda Suíça.
13 de agosto:
Família Real removida para
o Temple.
Direito de veto
real suspenso.
14.ago.1792Darnay viaja
para Paris.
16-Darnay preso.23 de agosto:
18.ago.1792Queda de
Longwy
Austríacos
sitiam
Thionville.
3.set.1792Lucie e Manette 2 de setembro:
chegam a ParisPrussianos tomam Verdun.
2-6 de
setembro:
Massacre de
prisioneiros em
Paris.
20 de setembro:
A França
proclama a
República.
7.set.1792Manette Dezembro de
Outubro trabalha nas 1792:
1793prisões de Julgamento de
Paris.Luís XVI.
21 de janeiro de 1793:
Execução de
Luís XVI.
Embaixador
britânico deixa
Paris.
1º de fevereiro
de 1793:
A Inglaterra e a
França em
guerra.
Janeiro-
Fevereiro:
Formado o
Comitê de Segurança
Pública.
Março 1793:
Instituição do
Tribunal
Revolucionário.
13 de julho:
assassinato de
Marat.
Julho:
prisão de
deputados
girondinos.
Julho-Agosto
de 1793: Instauração do
“Reinado do
Terror”.
23 de agosto:
a França
“Levantada
contra os
tiranos”.
17 de setembro:
“Lei dos
Suspeitosos”.
18 de outubro:
Execução de
Maria-
Antonieta. 31 de outubro:
Execução de
girondinos.
Novembro
1793: Terror
“a ordem do
dia”.
8 de novembro:
Execução de
madame
Roland.
Nov./Dez. Lucie faz sua Novembro:
1793vigília no Culto da Razão.
exterior de la
Force.Dez. 1793Primeiro Dezembro de
julgamento de 1793:
Darnay“Noyades”, em
Nantes.
Dez. 1793Darnay preso
novamente.
Dez. 1793Carton encontra
Barsad.
Resolve
resgatar
Darnay.
Dez. 1793Segundo
Jan. de julgamento de
1794Darnay. Condenado à
morte.
Carton troca de
lugar com ele
na
Conciergerie.[1]The Frozen Deep, drama do sr. WILKIE COLLINS: The Frozen Deep, um
drama em três atos de William Wilkie Collins (1824-89), amigo de Dickens, foi
encenado pela primeira vez em Tavistock House, em janeiro de 1857. Nessa
apresentação e nas posteriores ocorridas nesse mesmo ano, Dickens representou
o papel de Richard Wardour. Os demais papéis foram desempenhados por
amigos do novelista (incluindo-se o próprio Collins, como Frank Aldersley) e por
membros da família de Dickens.
A ação se inicia numa casa de campo em Devonshire, onde Clara Burnham
expressa a sua amiga, Lucy Crayford, sua preocupação com a segurança do
noivo, Frank Aldersley. Aldersley está seguindo numa expedição ao Pólo Norte,
juntamente com Richard Wardour, que foi por ela rejeitado. Embora Wardour
ainda não conhecesse a identidade do seu bem-sucedido rival, havia jurado
matá-lo se alguma vez o encontrasse. O primeiro ato termina com a premonição
da ama Ester acerca de um desastre iminente. O segundo ato se desenvolve
numa barraca no Ártico, onde Aldersley e Wardour se abrigam com seus
companheiros, quando a expedição se vê impedida de prosseguir. Wardour
descobre que Aldersley é seu rival, mas ambos são escolhidos como membros
de um grupo que deve sair à procura do último lugar alcançado pelas expedições
anteriores. No terceiro ato, Lucy e Clara chegam a uma “caverna na costa de
Newfoundland”, procurando por Frank Aldersley. Nessa caverna, chega
cambaleando o exausto e esfarrapado Wardour. Clara o reconhece e o acusa de
assassinar o seu rival. Wardour sai apressadamente e retorna carregando Frank
em seus braços. Afastando a forte tentação de abandonar Frank na neve, ele
acaba por salvar-lhe a vida. Wardour morre de exaustão, beijado por Clara,
enquanto se fecham as cortinas.
[2]do livro extraordinário do sr. CARLYLE: The French Revolution: A History, de
Thomas Carlyle (1795-1881), foi publicado pela primeira vez em três volumes
em 1837. Na época da redação de seu romance, Dickens tinha em sua biblioteca
a edição de dois volumes da narrativa de Carlyle, publicada por Chapman and
Hall em 1857.
[3]foi o melhor dos tempos: o uso do pretérito aqui adverte-nos de que se trata de
um romance histórico. Dickens se utiliza das palavras “tempos”, “idade”,
“época”, e “estação” com o intuito de alertar o leitor para a existência, no século
dezenove, da consciência da identidade de certos períodos históricos. Carlyle
refere-se ironicamente ao início do reinado de Luiz XVI como a “Idade da
Esperança”, embora ele tenha também intitulado o segundo volume de The
French Revolution, que refere-se ao mesmo período, de “A Idade do Papel”, e
observa que Rousseau declarou que “a Idade das Revoluções se aproxima”. A
tentativa de Dickens em definir a natureza do período histórico durante o qual seu
romance se desenrola, e sua advertência de que “o período era em tal medida
semelhante ao presente” em termos de definições contraditórias, também fora
feita originalmente por Carlyle aos leitores de um seu ensaio anterior, Signs of the
Times (1829), e de The Spirit of the Age (1825), de Hazlitts.
[4]um rei com uma grande mandíbula... uma rainha com um belo rosto, no trono
da França: uma referência a Jorge III da Inglaterra (1760-1820) e sua rainha,
Carlota Sofia de Mecklenburg-Strelitz, e a Luiz XVI de França (1774-93) e suaconsorte, Maria Antonieta de Áustria.
[5]a sra. Southcott: Joanna Southcott (1750-1814) era a filha de um fazendeiro de
Devonshire, a qual, em 1791, tornou-se metodista “por ordem divina” e, em
1792, começou a redigir suas “profecias” em verso e prosa. Publicou o primeiro
volume dessas “profecias” em 1801 e gradualmente atraiu muitos milhares de
seguidores aos quais ela certificava, ou “testemunhava”, o que havia apreendido
do iminente milênio. Em 1813, com a idade de 63 anos, anunciava que estava
prestes a se tornar a mãe de Shiloh, o Príncipe da Paz, mas após sua morte no
ano seguinte uma autópsia não revelou nenhum sinal de gravidez ou de alguma
doença fatal. Ela deixou uma caixa lacrada, que continha profecias adicionais.
[6]um profético soldado raso da Guarda Real: embora Dickens esteja reforçando
a idéia de que a década de 1770 era particularmente supersticiosa, com forte
tendência milenarista, a referência acima é o resultado de alguma confusão. O
Annual Register de 1775 registra que, em fevereiro desse ano, “um profeta
louco” havia previsto que Deptford e Greenwich seriam tragadas por um
terremoto. Dickens parece ter confundido essa história com o caso de um
“soldado louco da Guarda Real”, que, em abril de 1750, profetizou a destruição
de Londres e Westminster. O soldado foi confinado em Bedlam, mas sua
predição causou grande pânico na capital, conforme apontam as Letters de
Horace Walpole e o Gentleman’s Magazine.
[7]o fantasma de Cock-Lane: em janeiro e fevereiro de 1762, acreditou-se que
um poltergeist tenha se manifestado em Londres, em Cock-Lane, West
Smithfield. Uma garota de doze anos estava sendo perturbada pelos sons de
arranhaduras e batidas, e a casa em Cock-Lane rapidamente tornou-se o centro
de considerável interesse popular.
A afirmação de que o espírito de uma mulher assassinada havia se manifestado
foi investigada pelo doutor Johnson, entre outros, mas descobriu-se que se tratava
de uma fraude. O pai da garota foi julgado e sentenciado a um ano de prisão e
esteve no pelourinho em três ocasiões diferentes, mas o povo de Londres, em vez
de escarnecer do prisioneiro, fez correr uma subscrição a seu favor.
[8]assim como fizeram os espíritos nestes anos mais recentes: uma referência ao
modismo importado da América na década de 1850, referente ao espiritualismo.
O médium mais notório da época era Daniel Dunglas Home (1833-86), o qual
promoveu uma série de sessões em Londres em 1856. Home parece ter sido o
modelo para o senhor Sludge, de Browning. A curiosidade de Dickens sobre o
tema é evidente numa série de artigos encomendados pelo periódico Household
Words e, também, em dois artigos separados, The Spirit Business (7 de maio de
1853) e Well-Authenticated Rappings (20 de fevereiro de 1858).
[9]um congresso de súditos britânicos na América: o primeiro congresso geral de
representantes dos Estados americanos realizado em Filadélfia entre 5 de
setembro e 26 de outubro de 1774 e que apresentou sua petição ao rei Jorge III,
juntamente com uma lista de reivindicações ao Parlamento em janeiro de 1775.
[10]sua irmã do escudo e tridente: a Inglaterra.
[11]fabricando e esbanjando papel-moeda: referência aos problemas financeiros
do reinado de Luiz XVI e ao que Carlyle denominou literariamente de “os negros
horrores da bancarrota nacional”. Carlyle também fala do problema da Françacomo uma questão moral; ela não apenas imprimia papel-moeda mas também
imprimia especulações filosóficas demais em seu prejuízo, daí a avaliação
contida no capítulo “A Idade do Papel”, do seu livro The French Revolution.
[12]sentenciar um jovem a ter as mãos decepadas: em 1776, o jovem Chevalier
de la Barre foi acusado de um ato de sacrilégio em Abbeville e julgado perante o
tribunal de Amiens, sob a acusação de não ter tirado o chapéu quando uma
procissão que carregava um crucifixo passou
diante dele, e também por ter falado de forma irreverente da Virgem Maria. Ele
foi condenado e sentenciado a ter sua língua e sua mão direita decepadas, e
depois ser queimado vivo. A sentença, entretanto, foi comutada pelo Parlamento
de Paris em decapitação. Dickens certamente estava ciente desse acontecimento
pela leitura de Voltaire, o qual publicou dois vigorosos protestos contra tal
exemplo de intolerância, no Relation de la mort du Chevalier de la Barre (1766) e
no Cri du sang innocent (1775).
[13]uma certa estrutura móvel, com um saco e uma lâmina: a guilhotina. O uso
desse instrumento de execução foi recomendado, por razões humanitárias, pelo
doutor Joseph Ignace Guillotin (1738-1814). Antes da invenção de Guillotin
tornar-se de utilização comum, o privilégio da execução por decapitação era
reservado à nobreza; as vítimas menos privilegiadas eram enforcadas, às vezes
de forma ineficiente.
[14]o transporte sinistro da Revolução: as carroças rurais utilizadas no transporte
dos condenados pelo Tribunal Revolucionário, da Conciergerie para o cadafalso.
[15]Na Inglaterra... excessiva vanglória nacional: a maior parte dos exemplos de
desordem nacional na Inglaterra, descritos neste parágrafo, foram extraídos dos
volumes do Annual Register para os anos de 1775 e 1776, os quais Dickens tinha
em sua biblioteca.
Há ali muitos exemplos de “audaciosos arrombamentos” e “assaltos nas ruas”, os
quais certamente servem para justificar a larga generalização de Dickens, mas a
história do “salteador de estradas na escuridão” que era “um respeitável
comerciante do centro financeiro à luz do dia” é baseada numa anedota
referente ao ataque do senhor Brewer de Aldersgate Street por um companheiro
de ofício. Quando Brewer reconheceu o homem e chamou-o pelo nome, o
salteador deu um tiro em si mesmo (não em Brewer) (4 de janeiro de 1775). O
correio de Norwich foi atacado por sete homens armados, da mesma forma
descrita por Dickens, quando passava através da Epping Forest, mais tarde, nesse
mesmo ano (5 de dezembro de 1775). Em 6 de setembro de 1776, John
Sawbridge, o lorde prefeito de Londres, foi assaltado em Turnham Green, então
um descampado no oeste de Londres. Um sério distúrbio teve lugar em New
Gaol, em Southwark, em 14 de março de 1775, e foi contido por soldados
armados. Na outra ponta da escala social, lorde Stormont foi roubado de sua Cruz
de Santo André, “pendente de seu cordão da Ordem do Cardo”, enquanto
aguardava sua admissão no palácio de Saint James para marcar presença no
aniversário de Jorge III (22 de junho de 1775). Em 27 de setembro de 1775, um
funcionário da alfândega, acompanhado por uma “fila de mosqueteiros desde o
Savoy”, entrou numa casa na rua Buckridge, no bairro miserável de Saint Giles, e
encontrou cerca de 3,6 kg de chá contrabandeado; ao sair da casa os soldadosforam apedrejados e alvo de disparos, sendo obrigados a responder ao fogo.
As concludentes observações de Dickens sobre o carrasco, “sempre ocupado e
sempre ineficaz”, remetem-nos à sua conhecida repugnância pelo uso exagerado
da pena de morte e seu particular horror pelo número de crimes capitais no
século dezoito. Em Barnaby Rudge (1841), ele zomba do carrasco Dennis pela
defesa do enforcamento como uma forma de deter o crime, mas ele também
teria encontrado evidência suficiente no Annual Register para sustentar a
afirmação do enforcamento de “longas filas de criminosos diversos” por volta de
1775. Em 16 de janeiro de 1775, o Annual Register relata:
As sessões terminaram em Old Bailey, quando a corte sentenciou à morte oito
condenados; condenou ao desterro por sete anos outros quarenta e três; e por
catorze anos mais três. A três mandaram marcar a ferro nas mãos, e outros quatro
foram condenados a açoites, privadamente.
Em 15 de fevereiro, quatro dos condenados à pena capital foram executados em
Tyburn, e um quinto foi perdoado sob a condição de deportação por toda a vida.
Um daqueles que foram executados tinha sido considerado culpado de roubar
uma moedinha de um camponês. Em 6 de março, um periódico, The Crisis, nº 3,
foi condenado pelo Parlamento por uma “falsa, maliciosa e sediciosa calúnia”,
determinando-se que fosse queimado pelo carrasco na porta do Westminster
Hall.
[16]a colina de Shooter: a colina além de Backheath, a pouco mais de treze
quilômetros a sudoeste de Londres, na Dover Road. A colina de Shooter tornou-se
notória em certa época como um lugar freqüentado por salteadores, em razão de
sua inclinação íngreme e da vegetação densa de suas vertentes; na verdade,
dizem que seu nome deriva dessa associação com assaltos à mão armada (N.T.:
de shooter, atirador).
[17]para calçar a roda: para fixar uma sapata de ferro à roda de um coche, com
a finalidade de provocar atrito com o solo e permitir o controle da velocidade da
descida.
[18]o Banco Tellson: Dickens possivelmente derivou o nome deste banco daquele
de um famoso banqueiro de Paris, Thelusson, que foi o patrão de Jacques
Necker, o ministro das Finanças de Luiz XVI. O Banco Tellson propriamente dito
se baseou na antiga casa comercial Child & Co., que era estabelecida no nº 1 da
rua Fleet, em Londres, e alugava salas sobre o Temple Bar, como depósitos para
seus livros contábeis.
[19]Temple Bar: o pórtico de pedra entre a extremidade leste do Strand e o
extremo oeste da rua Fleet, sinalizando a entrada para a cidade de Londres. Ele
foi construído, pelo que consta, de acordo com o projeto de Sir Christopher Wren,
em 1670-72, mas foi removido em 1878.
[20]Hotel Royal George: Dickens parece ter baseado o Royal George no Ship at
Dover. Essa hospedaria foi demolida por volta de 1860, mas Dickens esteve ali en
route para a França, em abril de 1856.
[21]Concord: um aposento, ou conjunto de aposentos, provavelmente assim
designado pelo tipo de coche de viagem, que é originário de Concord, New
Hampshire.
[22]uma jovem de não mais de dezessete anos: as características físicas de LucieManette se inspiraram nas de Ellen Ternan, a atriz de dezoito anos que fez o papel
de Lucy Crayford nas apresentações, em Manchester, da peça The Frozen Deep,
em agosto de 1857.
[23]Prerrogativas... de preencher formulários em branco: uma referência às
lettres de cachet, mandados de captura e aprisionamento, os quais poderiam ser
emitidos para permitirem um prazo indefinido de encarceramento, sem prévio
julgamento. Dickens, seguindo o relato de Carlyle sobre as circunstâncias
vigentes na França de Luiz XV, sustenta que essas lettres de cachet estariam
livremente disponíveis para os nobres mais influentes. O escândalo ligado a esse
abuso também é objeto de registro em outra das fontes de Dickens, Travels in
France, de Arthur Young:
As lettres de cachet e a Bastilha, utilizadas de modo infame durante todo o reinado
de Luiz XV, eram vistas com bons olhos por pessoas mal informadas na Inglaterra,
que as consideravam como uma das maiores realizações do despotismo francês.
Elas davam ensejo a excessos inacreditáveis; ao ponto de serem vendidas com
espaços em branco para serem preenchidas com os nomes à vontade do
comprador, que podia, dessa forma, satisfazendo o desejo de uma vingança
particular, arrancar um homem do seio de sua família e sepultá-lo numa
masmorra, onde morreria esquecido e ignorado! Mas tais excessos não poderiam
se perpetuar em qualquer país, e foram reduzidos a quase nada, a partir da subida
ao trono do presente Rei (Luiz XVI).
As lettres de cachet foram finalmente abolidas pela recém-formada Assembléia
Nacional, em 1º de novembro de 1789.
[24]recipiente de madeira de um granadeiro: Dickens faz graça sobre o tamanho
dos altos chapéus femininos em moda nos anos 1770, que se assemelhavam a um
balde de madeira invertido, e que bem poderiam conter uns dez litros de líquido.
O doutor Johnson define a palavra “granadeiro” no seu Dicionário como um
“alto soldado de infanta-ria”, significando, por extensão, “do tamanho de um
granadeiro”, ou, simplesmente, “substancial, considerável”.
[25]o subúrbio de Santo Antônio: o subúrbio mais a leste da Paris do século
dezoito, desdobrando-se até além da Bastilha. A área se estende ao longo da rua
do Faubourg-Saint-Antoine e presentemente faz parte do Oitavo Arrondissement.
Ele foi por longo tempo um pobre distrito fabril e ainda era assim ao tempo de
Dickens. Carlyle usa o nome desse subúrbio como uma versão resumida dos
pobres de Paris, que eram a base da plebe revolucionária. Santo Antônio
manteve o seu fervor revolucionário no século dezenove, através das barricadas
nas ruas que foram erguidas na área durante a Revolução de 1848 e novamente
ao tempo da crise constitucional de 1851.
[26]moinho fabuloso que transformava velhos em jovens: um produto do folclore
relacionado à milagrosa fonte da juventude. Imagens de um moinho triturando
homens e mulheres velhos e expelindo-os novamente jovens aparecem no século
dezoito nos utensílios domésticos de Staffordshire. Dickens refere-se novamente a
este “moinho fabuloso” no capítulo 27 de The Mystery of Edwin Drood.
[27]rodelas finas de batata: esta poderia ser a primeira vez que se utiliza a palavrachips na acepção atual de rodelas fritas de batata. Elas eram ainda uma
especialidade francesa em 1859, embora, como registra Mayhew, já existissem
muitos vendedores de peixes fritos nas ruas de Londres.
[28]toscos lampiões suspensos por roldana e corda: um fenômeno
particularmente francês, como eram os sinais de comércio mencionados mais
adiante nesse parágrafo. O New Paris Guide, de Galignani, de 1842, observa:
Até o reinado de Luiz XVI, Paris era iluminada somente durante nove meses no
ano, e apenas na ausência de luar. Este monarca decretou que a iluminação
ocorresse durante o ano inteiro. Até agora, são utilizadas lâmpadas suspensas por
cordas penduradas ao longo da rua, as quais, embora ajudadas por refletores, e
mantidas bem limpas, pouco têm servido para afastar a escuridão. De há muito,
entretanto, vem sendo introduzida a iluminação a gás nas casas de comércio,
prédios públicos e nas ruas mais importantes, esperando-se que brevemente toda a
cidade seja iluminada por esse processo.
Como Dickens observa no próximo parágrafo, essas roldanas provaram-se um
sistema facilmente acessível para o enforcamento das vítimas da plebe de Paris,
nos primeiros estágios da Revolução.
[29]“Diga, então, meu Gaspar, o que faz aí?”: o equivalente inglês do francês
“Dites donc, mon Gaspar, que fait-vous là”. Em todo o romance, Dickens se
esforça por representar o linguajar de seus persona-gens que falam o francês,
traduzindo literalmente expressões idiomáticas dessa língua para o inglês. Dickens
já havia explorado esse recurso no linguajar de Hortense, em Bleak House, e
naquele de Rigaud, em Little Dorrit. Na sua crítica impiedosa de Um Conto de
Duas Cidades, no Saturday Review de dezembro de 1859, James FitzJames
Stephen queixa-se da extensão desse peculiar recurso literário:
O senhor Dickens... transforma esses diálogos num linguajar que, para algumas
poucas expressões, tem alguma graça, mas que se torna intoleravelmente maçante
e afetado quando se estende por páginas sem conta. Ele traduz cada termo em
francês por seu exato equivalente em inglês... Além do mau gosto, isto revela uma
total ignorância da natureza e dos princípios da linguagem. O tipo de pessoa que
diria em inglês “Behold”, não é o mesmo daquela que diria em francês “Voilà”; e,
ao descrever os mais terríveis eventos neste jargão abastardado demonstra uma
grande falta de sensibilidade para as exigências da arte literária.
[30]Madame Defarge: o manuscrito de Um Conto de Duas Cidades, preservado
na Coleção Forster, no Museu Vitória e Alberto, revela que Dickens inicialmente
pretendia que madame Defarge fosse uma “pequena mulher” absorvida em seu
trabalho de costura. Ele apagou o parágrafo original e substituiu-o pela versão
atual, na qual nós podemos vê-la tricotando. Essa mudança foi sem dúvida
sugerida por uma lembrança das famosas tricoteuses, as patrióticas tricoteiras de
Paris, que aparecem com destaque em The French Revolution, de Carlyle.
[31]“O que diabos fazem estes senhores nesta galé?”: o equivalente do francês:
“Que faites-vous dans cette galère?”.
[32]“Como foi, Jacques?”: Dickens adaptou o cognome “Jacques Bonhomme”,utilizado comumente para designar os camponeses franceses, como uma forma
de encobrir a identidade dos associados de Defarge. Ele também sugere aqui
uma ligação com a “Jacquerie”, originariamente uma expressão vinculada à
revolta camponesa ocorrida na região de Beauvais em 1357-58, mas
posteriormente aplicada aos extensos ataques às propriedades aristocráticas, nos
primeiros anos da Revolução de 1789.
[33]Cento e Cinco, Torre Norte: Dickens parece ter sabido da narrativa de Carlyle
que a Bastilha tinha oito torres, mas, nunca tendo visto o edifício que já fora
destruído, não podia saber que havia duas torres no lado menor da ala norte da
alongada fortaleza. Essas duas torres, a Tour du Puits e a Tour du Coin eram,
contudo, as mais seguras, pois só eram alcançadas através do segundo pátio, o
Cour du Puits.
[34]na expectativa de uma ponte levadiça: Mais uma vez, Dickens parece ter
extraído esse detalhe da narrativa de Carlyle da tomada da Bastilha:
Poderia alguém, depois de tantos estudos, deixar de conhecer tão bem a planta
deste edifício? Mas abre-se a Esplanada, no final da rua Santo Antônio; existem as
chamadas Forecourts, Cour Avancé, Cour de l’Orme, arcada Gateway...; então as
pontes levadiças, as pontes suspensas, os bastiões das muralhas, e as cinzentas
Oito Torres: um con-junto labiríntico. (The French Revolution, I, V. 3)
[35]“Para a Barreira!”: as Barreiras, construídas para a cobrança de taxas de
entrada em Paris, faziam parte da chamada Muralha do Coletor Geral. As duas
barreiras setentrionais, que tinham jurisdição sobre as vias que conduziam aos
portos do Canal, eram a Barrière St. Denis e a Barrière de la Villette.
[36]que os seus raios podem ainda não ter descoberto este minúsculo ponto do
espaço: Dickens provavelmente derivou esta idéia do verbete Astronomy, em seu
exemplar do Dictionary of Dates (1847), de Joseph Haydn:
Supõe-se que a distância das estrelas fixas de nosso planeta seja 400.000 vezes
maior que nossa distância do Sol, ou seja, 38 milhões de milhas; de maneira que
uma bala de canhão levaria cerca de nove milhões de anos para alcançar uma
delas, supondo que nada a impedisse de prosseguir o seu curso. Como a luz
demora cerca de oito minutos e um quarto para chegar do Sol até nós, levaria
cerca de seis anos de uma dessas estrelas até a Terra; mas os cálculos de
astrônomos mais recentes comprovam que algumas estrelas estão a tais distâncias
que sua luz pode levar séculos para chegar até nós; e que cada partícula de luz
que atinge nossos olhos deixou a estrela de onde provém há três ou quatro séculos.
Nota do tradutor: Na verdade, as informações contidas no verbete estão
incorretas para nossa época: a distância média da Terra ao Sol é de 149.500.000
quilômetros, ou seja, aproximadamente 92 milhões de milhas terrestres. A luz do
Sol, caminhando no vácuo a uma velocidade de cerca de 300.000 quilômetros
por segundo, leva, realmente, por volta de 500 segundos-luz (mais ou menos 8
minutos e 1/4) para atingir a Terra. A estrela mais próxima da Terra é justamente
a Próxima Centauri, que está distante 4,3 anos-luz, ou seja, 270.000 vezes mais
que o Sol. Há estrelas a distâncias de milhões de anos-luz e, assim, a partícula
luminosa que nos atinge os olhos pode ter deixado a sua fonte há milhões de anosterrestres. De qualquer forma, isso em nada invalida a imagem poética de
Dickens.
[37]Noakes & Cia.: Noakes é o nome genérico usado pro forma nos documentos
legais.
[38]a sala Barmecide: uma referência ao conto das Arabians Nights, no qual um
mendigo é presenteado, por um membro da família Barmecide, com um falso
banquete, no qual lhe são apresentados pratos esplêndidos, mas vazios.
[39]cabeças expostas em Temple Bar: a cabeça e os membros dos criminosos
executados eram expostos em estacas no Temple Bar, embora aparentemente
essa prática tenha cessado por volta de 1780. As últimas cabeças ali expostas
foram as dos rebeldes jacobitas Townley e Fletcher, executados em 1746, mas a
última relíquia sangrenta tombou em 1772. O poeta Samuel Rogers, que morreu
em 1855 com a idade de 92 anos, recorda-se de uma das cabeças como “uma
massa escura e informe”.
[40]abissínios ou achantis: ambos eram proeminentes reinos da África negra, ao
tempo que o romance foi composto. A Abissínia tinha sido perturbada por
conflitos internos durante os primeiros cinqüenta anos da centúria, e a dissidência
e os distúrbios dos líderes das facções nas províncias continuaram durante o
reinado de Negus Theodore III, que proclamou a si mesmo imperador em 1855.
O Reino de Achanti se estendia no que hoje é a parte setentrional de Gana. A
parte meridional era o território dos fantis. Depois de várias incursões no
território dos fantis pelos achantis, uma missão britânica foi mandada para o
norte e um tratado foi assinado em 1820. Esse tratado foi rompido pelo
governador britânico da Costa do Ouro, Sir Charles McCarthy, que em 1824 levou
uma pequena força militar ao interior do território achanti, a qual acabou
destroçada na batalha de Bonsaso, onde McCarthy foi morto e seu crânio tomado
como troféu e transformado num copo de bebida para uso do rei achanti. Dickens
publicou três artigos sobre os achantis, um em Household Words (29 de outubro
de 1853), e dois em All the Year Round (19 de março de 1859 e 30 de abril de
1859).
[41]quando... renunciou por procuração às tentações das trevas: uma referência
à cerimônia do batismo no Book of Common Prayer, na qual os padrinhos da
criança prometem, em nome dela, “renunciar ao demônio e a todas as suas
obras”.
[42]na igreja da paróquia leste de Houndsditch: uma conhecida área pobre a leste
da cidade de Londres, na paróquia de St. Botolph Without Aldgate.
[43]Hanging-sword-alley, Whitefriars: a alameda Hanging Sword, que recebeu o
nome em razão de uma casa que exibia em certa época esse emblema
heráldico, seguia rumo leste saindo de Whitefriars, para o sul da rua Fleet.
Whitefriars era o endereço dos antigos editores de Dickens, Bradbury and Evans,
com quem ele travou uma disputa no início de 1859.
[44]interesse de herdeiro (“his reversionary interest”, no original): Os seus
direitos legais de herança em relação aos bens paternos.
[45]Old Bailey: a rua que segue rumo norte da colina Ludgate à rua Newgate e,
por extensão, a Sessions House, que se localiza ali, num anexo da antiga Prisão
Newgate. A prisão e a Sessions House foram reconstruídas por George Danceem 1773, parcialmente destruídas durante as Revoltas de Gordon de 1780 e
demolidas em 1902-07. A Corte Central Criminal, que atualmente ocupa o local,
foi terminada em 1907. O de Darnay deve ter sido um dos últimos julgamentos
realizados na antiga corte, antes dos distúrbios de junho de 1780. Essa corte
consistia em um salão quadrado com uma galeria para visitantes; a cadeira do
magistrado estava voltada para o banco dos réus e sobre ela ficava uma espada
dourada, um dossel e as armas reais. Os balcões das testemunhas e do júri
estavam à esquerda do banco dos réus. Dickens descreve a corte funcionando por
volta de 1830, em seu Criminal Courts, no Sketches by “Boz”.
[46]Traição: Dickens, para compor o julgamento de Darnay, parece ter-se
inspirado no caso do Rei versus de La Motte, que consta nos volumes do State
Trials e no Annual Register de 1781, ambos existentes em sua biblioteca. De La
Motte, cujo julgamento se iniciou em 14 de julho de 1781, era um barão francês
residente na Inglaterra. Foi acusado tanto de “conspirar contra a vida do rei”
quanto de “conexões, com natureza de traição, com a corte francesa, visando a
destruir o
poderio naval desse país”. O processo apurou que ele, por alguns anos, manteve a
referida correspondência com a França, tratando do poderio naval inglês, e
especialmente, de seu arsenal; seu antigo auxiliar, um tal de Lutterloh, depôs
contra ele. De La Motte foi condenado com base, principalmente no depoimento
de Lutterloh e sentenciado à morte. O relacionamento entre os dois casos foi
apontado primeiramente por Sir James FitzJames Stephen, no seu artigo na
Saturday Review, em 1859.
[47]a pena será esquartejamento: esta punição para os considerados culpados de
traição representava, segundo a citação do Annual Register para o caso que
envolveu de La Motte, “ser pendurado pelo pescoço, mas não até morrer; então
ser aberto ao meio, ter suas vísceras extraídas e queimadas em sua presença, sua
cabeça cortada, seu corpo cortado em quatro partes, e ser colocado à disposição
de sua majestade”.
[48]Os enforcamentos tinham lugar em Tyburn: o antigo local das execuções
públicas em Londres era Tyburn, nome do rio que passa por ali e que é hoje
conhecido como Westbourne. A forca ficava próxima do que é hoje o Marble
Arch, no extremo oeste da rua Oxford. Os réus condenados foram executados
em Tyburn até novembro de 1783, quando o lugar das execuções foi transferido
para uma área mais restrita, mas de maior conveniência: Old Bailey, no lado
externo da prisão Newgate.
[49]onde se cultivavam moléstias terríveis: uma referência ao alastramento da
“febre das prisões”, que se propagava a partir dos cárceres para as vizinhanças
da corte. Essa febre causou a morte de dois juízes, do Lorde Prefeito e de vários
membros da banca de advogados e do júri, em 1750. Ela irrompeu novamente
em 1772.
[50]poste onde se prendiam as pessoas para açoitá-las, outra antiga e querida
instituição: a ironia de Dickens aqui reflete tanto sua repulsa pela má condução
da política penal quanto sua crítica da nostalgia da “Jovem Inglaterra” pelos
métodos antigos de tratamento dessa política. Ele tinha uma série de falsas
lombadas em sua biblioteca em Gad’s Hill, com títulos descrevendo a “Sabedoriados Nossos Ancestrais”, sob os rótulos “Ignorância”, “Superstição”, “O Cepo”,
“O Poste de Açoites”, “A Roda de Tortura”, “A Imundície”, e “A Doença”. No
ensaio Criminal Courts, em Sketches by ‘Boz’, ele menciona a visão de um garoto
“desse lugar de açoites, e dessa edificação sombria num dos lados do pátio, onde
está assentada a forca”.
[51]Tudo o que é, é correto (“Whatever is, is right”, no original): uma citação de
Pope (Essays on Man): And, spite of Pride, in erring Reason’s Spite, One truth is
clear, “Whatever IS, is RIGHT”. (I, 293-4.) Numa tradução livre:
“E, a despeito do Orgulho, dos desvios da Razão arrogante, Uma verdade se
impõe, “Tudo o que é, é CORRETO”.
[52]Bedlam: até o ano de 1770, o público em geral era admitido no Royal
Bethlehem Hospital, ou Bedlam, para observar os dementes que ali estavam
internados. A entrada custava 1 penny por pessoa e, desse modo, o hospital
arrecadava um montante de 400 libras por ano. Em meados do século dezoito, o
hospital estava situado em Moorfields, mas foi transferido em 1814 para o St.
George’s Fields.
[53]pontiagudo muro de Newgate: em A Visit to Newgate (Sketches by “Boz”),
Dickens descreve o pátio da prisão “cercado de altos muros guardados por
chevaux de frise”.
[54]Canadá e América do Norte: as hostilidades na América do Norte
perduraram de 1774 até a Paz de Paris, que foi assinada em 20 de janeiro de
1783.
[55]A corte era juncada dessas ervas... contra o ar do cárcere e sua febre: este
costume originou-se como uma precaução contra a propagação da febre dos
cárceres, acreditando-se que essas ervas odoríferas e o vinagre tinham eficácia
contra as doenças transmitidas pelo ar. O costume se perpetuou no ramalhete
simbólico dos juízes.
[56]como o oceano um dia renunciou a seus mortos: referência ao Apocalipse de
S. João, 20,13: E deu o mar os mortos que nele havia; e a morte e o inferno deram
os mortos que neles havia; e foram julgados cada um segundo as suas obras.
[57]pessoa sem medo e sem mácula: referência a uma peça baseada num tema
popular, atribuída a Pierre du Terrail, o Chevalier de Bayard (c., 1473-1524), le
chevalier sans peur et sans reproche.
[58]antes do início das hostilidades entre as tropas britânicas e as americanas: a
batalha de Lexington, em 19 de abril de 1775.
[59]George Washington... Jorge III: em sua A Child’s History of England (1851-
53), Dickens fez mais explícito o contraste entre os dois Georges:
Foi no reinado de Jorge III que a Inglaterra perdeu a América do Norte, ao
insistir em impor-lhe tributos, sem o seu consentimento. Esse imenso país, tornado
independente sob WASHINGTON, e deixado a si mesmo, tornou-se os Estados
Unidos, uma das maiores nações do mundo.
[60]uma guarnição e arsenal naval: o arsenal naval, com a sua guarnição, em
Chatham, no condado de Kent. Foi ali que John, o pai de Dickens, empregou-se
como escrevente da pagadoria naval, entre 1814 e 1823.[61]Anais de Julgamentos do Estado: compilações de relatórios dos julgamentos
relativos aos crimes contra o Estado. A primeira destas compilações foi publicada
por Thomas Salmon em 1719, e foi repetidamente republicada com material
adicional. O próprio Dickens possuía tanto A Collection of the Most Remarkable
and Interesting Trials including State Trials (2 volumes, 1775-76) quanto Cobbett’s
Complete Collection of State Trials, editada por T. B. e T. J. Howell, e publicada
por William Cobbett em 21 volumes, entre 1809 e 1826.
[62]O senhor Stryver, um homem de pouco mais de trinta anos: em suas
Recollections and Experiences (1884), Edmund Yates sugere que Dickens baseou
o caráter e o físico de Stryver nos de Edwin James. James, um advogado
londrino, era, de acordo com Yates, um homem gordo e rosado, com um rosto
grande e gentil... que tinha acomodações no Temple... sua clientela era grande e
seus ganhos, enormes. Yates levou Dickens consigo para uma consulta com
James no final de 1858 ou início de 1859. Quando o folhetim semanal que trazia a
descrição de Stryver surgiu em junho de 1859, Yates afirma ter comentado com
Dickens: Stryver tem uma boa semelhança com James. Dickens teria sorrido e
replicado: Não de todo má, eu suponho, especialmente depois de uma única
consulta.
Edwin James (1812-82) foi admitido no Inner Temple em 1836 e nomeado
Procurador da Rainha em 1853. Chegou a Membro do Parlamento, por
Marylebone, de 1859 a 1861, mas foi declarado insolvente em 1861 e destituído,
por má conduta profissional. Emigrou para a América, onde continuou a praticar
a advocacia.
[63]por um caminho coberto, para o interior de uma taberna: presume-se que
seja o Cheshire Cheese, em Wine Office Court, da rua Fleet. Em seu Hand-book
of London Past and Present (1850), Peter Cunningham observa que o Cheshire
Cheese era merecidamente famoso por suas costeletas de porco, bifes, pudins de
carne e bebidas.
[64]Não me importo com ninguém ... e ninguém na face da terra se importa
comigo: uma reminiscência da outrora famosa canção The Miller of the Dee (“O
Moleiro do Rio Dee”), da peça Love in a Village (1762), de Isaac Bickerstaffe:
There was a jolly miller once, Lived on the river Dee; He worked and sung from
morn till night, No lark more blithe than he. And this the burden of his song Forever
used to be, I care for nobody, no! not I, If nobody cares for me.
(Era uma vez um alegre moleiro, que morava no rio Dee; Trabalhando e
cantando o dia inteiro, Divertia-se como ninguém ali. E de seu canto eis o bordão
Do mesmo refrém antigo: Não me importo com ninguém, não! Se ninguém se
importa comigo.)
[65]um longo sudário no candeeiro: tais “sudários”, produzidos pelas gotas do
sebo das velas, eram freqüentemente tomados como presságio de morte ou
calamidade.
[66]O Chacal: em seu Book of Memoranda, de 1855, Dickens anotou a idéia: O
Bêbado? — desregrado? — o quê? — LEÃO — e seu CHACAL e Factótum —
sempre à sua disposição nas horas mais insólitas. Num local mais à frente eleacrescentou: Carton terminado, entre parênteses. Ele pode ter formulado sua
concepção do relacionamento Leão/ Chacal a partir da descrição do Chacal, na
History of the Earth and Animated Nature (1774), de Oliver Goldsmith, da qual
tinha um exemplar de uma edição posterior em sua biblioteca. Goldsmith
observa que o chacal tem sido popularmente chamado de provedor do leão, mas
acrescenta uma advertência:
A noção costumeira de que ele se associa ao leão, para a caça da mesma presa, é
equivocada. O leão, que não tem boa audição, põe-se em movimento ao ouvir o
regougar do chacal. Ele sabe que algum infeliz desgarrado da manada cruzou o
caminho do chacal, e junta-se à perseguição.
[67]Tribunal Superior de Justiça (no original: the Court of King’s Bench): uma
divisão da Suprema Corte de Justiça (no original: High Court of Justice) que se
situava em Westminster Hall nos anos 1780.
[68]Sydney Carton: é a primeira vez que é usado o nome de batismo de Carton. O
manuscrito do romance mostra que a primeira escolha de Dickens quanto a esse
nome foi Dick (ele não se decidiu por Sydney senão por volta da metade do
presente capítulo, e então voltou atrás em seu manuscrito e alterou o nome). A
escolha de Dick quase certamente reflete o nome do personagem caracterizado
por Dickens em The Frozen Deep, Richard Wardour, mas também teria
enfatizado o paralelo entre Charles Darnay e Dick Carton, dando-lhes iniciais
invertidas.
O nome Sydney origina-se de um tal de Algernon Sydney (1622-83), que foi
julgado perante o juiz Jeffreys, acusado de cumplicidade no complô de Rye
House, sendo julgado culpado e executado. Dickens descreve a execução de
Sydney em Tower Hill em dezembro de 1683, em A Child’s History of England:
Ele morreu como um herói, e morreu, segundo suas próprias palavras, “Por
aquela boa velha causa, na qual ele se engajara desde a juventude, e em favor da
qual Deus tantas vezes e tão maravilhosamente tem se manifestado”. Dickens deu
o nome de Sydney a seu próprio quinto filho em 1847, em homenagem ao seu
amigo, o reverendo Sydney Smith.
[69]de Hilary Term a Michaelmas: ou seja, pela duração do ano forense.
[70]Eles freqüentavam os mesmos Circuitos: Circuitos que ocorriam duas vezes
por ano em cada condado, com os juízes do Circuito sendo designados pelo
soberano.
Nota do tradutor: As Cortes de Circuito eram juízos de baixa instância, que
realizavam audiências periódicas, no mesmo ou em vários locais, dentro de um
território que estava sob a jurisdição de um magistrado.
[71]Passeio do Superior Tribunal de Justiça e o Paper-buildings: os dois blocos
fazem parte do Inner Temple. O Passeio do King’s Bench data de 1677 ou 1678,
mas o atual Paper-buildings é um projeto novo, de 1838, substituindo uma antiga
ala destruída pelo fogo (N.T.: o Paper-buildings era utilizado como alojamento
para os advogados).
[72]do retrato de Jeffries: uma referência ao retrato de George Jeffreys (1648-
89), de William Claret, que foi adquirido pela National Portrait Gallery em 1858.
Dickens parece ter detectado mostras de deterioração nesse quadro,
especialmente a exteriorização de sinais do desregramento de Jeffrey. Ele jáhavia cuidado anteriormente desse tema, em sua A Child’s History of England:
Estes tempos felizes produziram, ocupando o cargo de Chefe de Justiça da Corte
do Superior Tribunal de Justiça, um rufião bêbado chamado JEFFREYS; de faces
vermelhas, intumescidas, inchadas, uma horrível criatura, com uma voz
intimidativa e tonitruante, e talvez a mais selvagem natureza que um peito humano
já tenha abrigado.
É provável que tais comentários tenham resultado da leitura da History
of England (1845-61), de Macaulay:
Ele foi um homem dotado de inteligência e vigor, mas constitucionalmente
propenso à insolência e à paixão colérica... Mesmo quando estava sóbrio, sua
violência era assustadora. Mas em geral seu lado racional era anuviado e suas
paixões perversas estimuladas pelos vapores da intoxicação. Suas noites eram, de
ordinário, dedicadas às farras. As pessoas que o vissem apenas em companhia de
sua garrafa, poderiam supor que se tratasse de um homem realmente grosseiro,
embrutecido pelo álcool e dado às más companhias e à libertinagem, mas sociável
e bem humorado... Mas se o vinho no início parecia abrandar seu coração, o
efeito, algumas horas depois, era muito diferente. (Capítulo 4.)
[73]Escola Shrewsbury: Dickens visitou Shrewsbury em 1838 e novamente em
1858. A Escola Shrewsbury foi fundada em 1551, mas veio a se tornar
nacionalmente famosa sob a direção de Samuel Butler, nos anos de 1798-1836.
Pode-se apenas especular se Dickens sabia ou não que o juiz Jeffreys era um
produto dessa escola.
[74]Bairro dos Estudantes de Paris: na primeira edição deste romance,
mencionava-se o Quartier Latin, a antiga área estudantil de Paris, na margem
esquerda do Sena.
[75]lente de longa distância: um telescópio.
[76]esquina pouco movimentada perto da Praça do Soho: a Praça do Soho foi
criada em 1681. No século dezoito, muitas das paróquias circunvizinhas foram
associadas aos refugiados europeus, mais notoriamente aos huguenotes
franceses, que se estabeleceram na Inglaterra após a revogação do Edito de
Nantes, em 1685. Os alojamentos dos Manette têm sido normalmente situados
num edifício conhecido mais tarde como Carlisle House, localizado no final da
rua Carlisle, a qual começa na Praça do Soho e segue para o oeste. Esse edifício,
com vista para a praça, data de cerca de 1685 e serviu como residência de Lady
Carlisle em 1718. Era um hotel particular na época em que o romance foi
escrito, mas foi destruído por bombas, em maio de 1940.
[77]Clerkenwell: a grande paróquia ao nordeste de High Holborn. Dickens
descreve a área como era nos anos de 1780 no capítulo 4 de Barnaby Rudge:
No venerável subúrbio — ele era outrora um subúrbio — de Clerkenwell, quanto
àquela parte de seus limites que estão próximos de Charter House, e numa dessas
frias, sombrias ruas, das quais algumas poucas ainda podem ser encontradas aqui
e acolá nessas áreas velhas da metrópole — cada moradia vegetando quietamente
como um velho cidadão que há muito se retirou dos negócios, e cochila em suadecrepitude, até que o tempo o faz desabar e é substituído por algum extravagante
jovem herdeiro, exibindo-se com seus estuques e trabalhos ornamentais, e todas as
vaidades destes tempos modernos —, neste quarteirão e numa rua com tais
características, desenvolve-se a ação do presente capítulo... embora exista um
comércio ativo em Clerkenwell, e trabalhem ali muitos joalheiros, era um lugar
mais simples, com granjas mais próximas dela do que muitos modernos londrinos
poderiam acreditar de boa vontade, e locais de passeio dos namorados, a pouca
distância dali, que se transformaram em becos miseráveis, muito antes que os
namorados de hoje tivessem nascido.
O velho Clerkenwell aqui evocado é portanto muito diferente daquele que existia
em 1859, ou mesmo das vizinhanças do armazém do senhor Venus, em Our
Mutual Friend (1864-65).
[78]Havia, na época, alguns poucos prédios ao norte da rua Oxford: embora esta
notícia ecoe afirmações feitas anteriormente em Barnaby Rudge, ela não é
inteiramente válida. A área diretamente ao norte da Praça Soho, ao longo da
estrada de Tottenham Court, era até então em grande parte não desenvolvida, e
havia descampados atrás do Museu Britânico, mas as propriedades
imediatamente ao norte da rua Oxford foram construídas depois de 1780. Esse
desenvolvimento estendeu-se de Portland Place, no oeste, à rua Goodge, no leste.
[79]como os mendigos que perambulam pelas ruas sem endereço certo:
uma referência ao dispositivo da legislação de assistência social, segundo a qual,
se um indigente muda-se para longe de sua residência legal numa determinada
paróquia, isso equivale à renúncia do direito da assistência pelos fundos de auxílio
aos pobres daquela paróquia.
[80]cujo braço dourado projetava-se da fachada: Dickens menciona um vigoroso
braço dourado... como aqueles que são colocados sobre as lojas dos batedores de
ouro, no capítulo 23 de David Copperfield. Um braço de ouro, outrora sobre uma
loja desse tipo na que hoje é a rua Manette, Soho, foi preservado na Dickens
House, em Londres.
[81]a Torre: Darnay, da mesma forma que seu modelo na vida real, de La Motte,
teria sido mantido na Torre, por ser um prisioneiro acusado de alta traição.
[82]Quando faziam algumas reformas: essa história foi inventada por Dickens, de
forma conveniente para o desenrolar da trama, em que se revelará mais adiante
o segredo oculto na antiga cela de Manette na Bastilha. A inscrição à qual Darnay
se refere, entretanto, encontra paralelo em muitas gravações encontradas nas
celas das várias torres da fortaleza. A mais conhecida série de tais inscrições foi
descoberta em 1796, nas celas da torre Beauchamp.
Nota do tradutor: no original de Dickens, as letras que se pensava inicialmente
estarem gravadas na pedra eram “D. I. C.” (talvez, mais uma coincidência
significativa, relacionada ao nome do autor), percebendo-se, num exame mais
cuidadoso, que a última letra era um “G”, formando-se, assim, a palavra “DIG”,
que significa “cavar”. Na tradução, cuidou-se de preservar a idéia, fazendo-se a
necessária adaptação ao nosso idioma.
[83]ajuda de quatro homens fortes, além do cozinheiro: este é o primeiro demuitos detalhes neste capítulo que derivam de ensaios existentes no Tableau de
Paris, de Louis-Sebastien Mercier (12 volumes, Amsterdam, 1782-88). Dickens
noticia seu débito para com os volumes de Mercier, o qual parece ter sido
recomendado a ele por Carlyle, em sua carta a Bulwer-Lytton:
Há um curioso livro impresso em Amsterdam, escrito para demonstrar nada em
particular, e bastante enfadonho em seu detalhismo semelhante ao dos dicionários;
no qual, dispersos aqui e acolá em suas páginas, encontrei a base histórica para a
construção do meu Marquês. Trata-se do Tableau de Paris, de Mercier. (5 de
junho de 1860.) Dickens havia emprestado esses volumes, e sua seqüência
Nouveau Paris (1799), da Biblioteca de Londres. Esse particular comentário
quanto ao número excessivo de criados deriva do ensaio de Mercier
Domestiques, Lacquais (II, CLXXII).
[84]não concebia a existência com menos do que dois relógios de ouro em seu
bolso: isto também deriva do ensaio de Mercier Domestiques, Lacquais: Um
criado realmente elegante utilizava-se de dois relógios, como seu amo; e esta
notável extravagância parecia apenas escandalizar um misantropo.
[85]a Comédia e a Grande Ópera: este detalhe deriva possivelmente de Filles
d’Opera, de Mercier (III, CCXXXIV), em que ele comenta o costume dos
nobres de “adotarem” atrizes e figurantes da ópera.
[86]foi vendida pelos alegres Stuart: uma referência ao “Alegre Monarca”,
Carlos II, o qual, valendo-se das cláusulas do secreto Tratado de Dover, recebia
uma pensão de seu primo, Luís XIV de França. Dickens é severo com Carlos II e
sua corte em A Child’s History of England.
[87]De Monseigneur... e aqueles que nele habitam.: um jogo com as palavras do
Salmo 24: Do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles que nele
habitam.
[88]aliar-se a um coletor de impostos: Sob o ancien régime, um fermiergénéral,
ou coletor de impostos, comprava o direito de coletar taxas para o governo. Era
um negócio lucrativo: o direito era adquirido por uma soma fixa e um coletor
conseguia auferir lucros cobrando o que podia acima e além desse montante.
Abusos eram corriqueiros, e os coletores de impostos eram normalmente
conhecidos como pessoas de bens consideráveis, daí sua tendência para se
aliarem às famílias nobres. Mais tarde eles se tornariam vítimas da justiça
revolucionária. Este comentário de Dickens deriva do ensaio de Mercier,
Domestiques, Lacquais: Mas o setor financeiro é agora aliado à nobreza... o dote
de quase toda esposa de um lorde provém dos cofres de um coletor de impostos.
Nota do Tradutor: Farmer-General, no original. Utilizaram-se, na tradução, de
forma indiferente, os termos “coletor de impostos” e “rendeiro”, este último na
acepção de arrematante ou cobrador de rendas, ou seja, particular que detém a
concessão estatal para a cobrança de taxas ou impostos.
[89]trinta cavalos nas cocheiras... e seis criadas de quarto a serviço de sua
esposa: um detalhe que também deriva de Domestiques, Lacquais: Em tais casas
dos coletores de impostos poder-se-iam encontrar vinte e quatro criados em libré,
sem contar os ajudantes gerais de cozinha, ajudantes de cozinheiro e seis
camareiras para sua senhora... Trinta cavalos escavavam a terra nos estábulos.[90]Oficiais do exército destituídos de conhecimentos militares: Mercier comenta,
em seu ensaio intitulado Officiers (II, CVI): Em geral (com algumas exceções) os
oficiais são muito preguiçosos e têm poucos conhecimentos.
[91]eclesiásticos impudentes: a decadência moral do clero francês no século
dezoito era coisa bastante familiar para os leitores de Dickens. Carlyle apresenta
o afrouxamento dos costumes do clero no reinado de Luís XV como fato
assentado. A fonte imediata de Dickens para este comentário reside, entretanto,
em dois dos ensaios de Mercier:
Paris está repleta de abades, clérigos tonsurados, os quais não servem nem à
Igreja nem ao Estado, mas cultivam a ociosidade, e não são nada, senão trastes
imprestáveis. (Abbés, I, XC.) Os professores de moralidade nunca ensinam
moralidade: eles desafiam os anátemas dos antigos Concílios, e desfrutam
ociosamente dos prazeres da capital, consomem os fundos que recebem para a
assistência de seus infortunados pupilos. (Evêques, I, XCI.)
[92]Médicos que acumularam grandes fortunas: do ensaio de Mercier Medicins
(II, CXXXV): A Medicina é, em nossos dias, um audacioso e sancionado
charlatanismo... este charlatanismo produz dinheiro.
[93]Planejadores: do Faiseurs de Projets, de Mercier (I, LXXIII), um ensaio
cuidando dos teorizadores, economistas e pensadores que abundavam na Paris
pré-revolucionária. Mercier considera muitos desses “filósofos” piores que
loucos, porque, com idéias mal-acabadas e falsas percepções, eles falam de
princípios impossíveis e conseqüentemente tornam-se irracionais.
[94]Filósofos incrédulos: um amálgama de Carlyle e Mercier. Carlyle, cuja
antipatia para com grande parcela do pensamento francês do século dezoito
vinha de longa data, observa, no segundo capítulo de The French Revolution: O
filosofismo francês nasceu... Aqui, realmente, a mentira converte-se no principal
sintoma de uma doença amplamente difundida. A crença se retira; o ceticismo
toma o seu lugar. O mal prospera; ninguém tem fé para opor-se a ele, para
corrigi-lo, começando por corrigir a si próprio; ele deverá portanto continuar a
prosperar. Mercier tem todo um ensaio intitulado Athéisme (VII, DXCV).
[95]químicos incrédulos... transmutação de metais: do ensaio de Mercier
Chercheur de la Pierre philosophale (IX, DCLXXXV). O ensaio comenta a
prevalência de alquimistas buscando a “pedra filosofal” que poderia transmutar
metal sem valor em ouro. O mais notório desses alquimistas foi o Conde
Alessandro Cagliostro (1743-95), que esteve implicado no caso do “Diamante
Necklace” em 1785 e foi objeto de um panfleto de Mirabeau.
[96]espiões em meio à assembléia de devotados: do ensaio de Mercier Espions (I,
LIX): O Parisiense... está cercado por espiões... esse é o método universal de
extrair segredos; isto é o que mais facilmente determina as ações dos ministros.
Mercier também tem um ensaio correlacionado, sob o título de Hommes de la
Police (I, LXI).
[97]As mulheres da aldeia mantinham consigo estes bebês fora de moda:
comentário derivado provavelmente de dois dos ensaios de Mercier. O primeiro,
Remarques (II, CLXXVII), observa: Que dispondo de amas, governantas, tutores,
colégios e conventos, algumas mulheres quase não se apercebiam que eram mães.Num ensaio posterior (Bureau des Nourrices et des Recommandaresses (IV,
CCCXXIX), ele comenta: As mães parisienses não amamentam seus próprios
filhos... O campo é por demais necessário para uma vida equilibrada e pastoral
para ser arruinado por suas mulheres se verem obrigadas a alimentar os filhos
alheios.
[98]charmosas avós de sessenta anos... como jovens de vinte: também dos
Remarques, de Mercier: Somente Paris pode mostrar mulheres de sessenta anos
cuja aparência é a de uma jovem de vinte anos, com suas faces maquiladas,
pequenas pintas para embelezá-las e fitas nos cabelos.
[99]uma fantástica seita de convulsionários: os Convulsionistas, ou
Convulsionários, eram religiosos exaltados dentre os Jansenistas. Suas convulsões,
que se tornaram pela primeira vez conhecidas nos idos de 1730, eram
aparentadas com aquelas dos dervixes no Leste e dos Shakers no Oeste, e
interpretadas como expressões de possessão divina. A seita floresceu nos círculos
da moda durante o reinado de Luís XV, como observa Mercier (II, CXC): Os
Convulsionistas faziam maravilhas, as quais, deve-se admitir, ultrapassavam tudo o
que de extraordinário se podia ver numa feira.
Nota do tradutor: Os Shakers eram os membros de uma seita religiosa surgida na
Inglaterra em 1747, os quais praticavam uma vida comunal e observavam o
celibato. O nome oficial desse grupo era “Sociedade Unida dos Crentes na
Segunda Vinda de Cristo”, e seus membros dançavam com movimentos
convulsivos durante suas cerimônias.
[100]“o Centro da Verdade”: este comentário deriva do ensaio de Mercier
denominado Amour des Merveilheux (II, CXCI). Este ensaio oferece um
divertido balanço dos ensinamentos do assim chamado Philosophe Inconnu,
Louis-Claude de Saint Martin, o autor de Les Erreurs et la Verité. Dickens valeu-se
tanto da terminologia quanto do tom crítico de Mercier.
[101]dependurados pequenos berloques: do ensaio de Mercier Maître
d’Agréments (II, CLXXIV): Observe a entrada de um cavalheiro da moda. Ele
primeiro se faz anunciar pelo delicado tilintar de suas jóias.
[102]Do Palácio das Tulherias: o antigo palácio real de Paris. Ele foi construído
em 1564 para ser inicialmente a residência de Catarina de Medici, e foi
aumentado no reinado de Henrique IV, o qual o ligou ao adjacente Louvre,
através de uma comprida galeria que corre ao longo do Sena. Ele tornou-se a
principal residência real na capital sob Luís XIII, e Luís XIV o utilizou para esse
fim até que mudou sua corte para Versalhes. Em outubro de 1789, Luís XVI foi
obrigado a retornar ao Palácio. Ele foi sitiado ali durante a insurreição de 20 de
junho de 1792, e novamente em 10 de agosto, quando a Guarda Suíça do Rei foi
massacrada. Estes eventos revolucionários são vividamente descritos por Carlyle.
O Palácio tornou-se mais tarde a residência oficial de Napoleão I, e de seus
sucessores, Luís XVIII, Carlos X, Luís-Felipe e Napoleão III. O Palácio foi
incendiado pelos Communards em maio de 1871 e suas ruínas foram depois
demolidas.
[103]verdugos... calçando escarpins e meias brancas de seda: do ensaio de
Mercier sobre o Carrasco Público (III, CCLXXXIX): Ele está frisado, empoado,
engalanado de dourado, calçando escarpins e meias brancas de seda, pronto parasubir ao cadafalso... Ele casa suas filhas, se tem alguma, com os verdugos
provinciais. Entre eles mesmos, chamam uns aos outros de Monsieur de Paris,
Monsieur de Chartres, Monsieur d’Orléans etc., da mesma forma que fazem os
bispos.
[104]como se sacudisse a poeira dos pés: uma referência irônica a Mateus,
10,14: E, se ninguém vos receber, nem escutar as vossas palavras, saindo daquela
casa ou cidade, sacudi o pó dos vossos pés.
[105]Queixas por vezes se faziam ouvir: novamente, Mercier é a fonte desta
asserção. Seu ensaio Gare. Gare (I, XXXIX) descreve os perigos para os
pedestres pela condução descuidada daquelas pessoas ricas o suficiente para
possuírem uma carruagem, e a indiferença das autoridades aos protestos.
Mercier também descreve o acidente sofrido por Jean-Jacques Rousseau durante
um de seus passeios solitários nos subúrbios de Paris em 1776.
[106]Os cavalos recuaram e empinaram as patas dianteiras: é bem provável que
Dickens tenha extraído o incidente do atropelamento de uma criança das cartas
do nobre germânico Herman Ludwig Henrich, príncipe de Pueckler-Muskau, do
qual Tour in England, by a German Prince surgiu numa tradução de Sarah Austin
em 1832. Dickens parece ter satirizado Pueckler-Muskau em sua descrição do
Conde Smorltork em Pickwick Papers (1836-37). O próprio príncipe descreve um
acidente em Jena, no qual ele atropela um menino; reuniu-se rapidamente uma
multidão, o príncipe deu dinheiro à mãe do menino, e tratou de fugir. Mais tarde
fez capotar seu cabriolé e matou um de seus cavalos, batendo numa carroça. A
vítima de Pueckler-Muskau teve um destino melhor que aquela do marquês de
Dickens. A criança sobreviveu, e seis semanas depois do acidente foi levada por
sua mãe para ver o príncipe. Recebendo uma doação adicional de dinheiro, a
mãe exclamou: Oh, senhor, eu desejaria que meu filho pudesse ser atropelado
todos os dias da semana. (Vol. IV, pp. 102-6)
[107]o trigo refulgia, embora pouco abundante: a pobreza da agricultura francesa
em comparação com a da Inglaterra era uma observação bastante comum no
século dezoito. Dickens pode, entretanto, ter baseado seu comentário naquele
contido em uma de suas fontes, Travels in France and Italy (1792-94), de Arthur
Young. Young observa em 22 de maio de 1787: Pobreza e pobres colheitas em
Amiens; mulheres lavrando com uma parelha de cavalos para semear cevada.
[108]não desacreditava sua fina educação: inspirado na frase do senhor
Malaprop: Eu confesso a pequena falta — perdoe meu rubor, na peça The Rivals,
de Sheridan.
[109]Sinais visíveis ... consumido por tão vorazes impostos: Dickens deriva este
quadro do explorado campesinato francês, sobre o qual se abatia a principal
carga de impostos, tanto de Carlyle quanto de Arthur Young. Carlyle aponta a
condição da pobreza rural no primeiro livro de The French Revolution:
Eles são trazidos para prestar o trabalho regulamentar, para pagar as taxas
regulamentares, para cevar campos de batalha... com seus corpos, em disputas
que não são suas... Ignorantes, constrangidos, desnutridos; para definhar,
estagnados numa densa obscuridade, em miserável penúria e obstrução: esse é o
quinhão de milhões; “peuple taillable et corvéable à merci et miséricorde”.
Em seus comentários suplementares acerca do progresso inicial da Revolução(1791), Arthur Young faz um retrospecto da opressão do ancién régime:
Os abusos atinentes à arrecadação de impostos eram opressivos e generalizados...
Mas... qual seria o estado dos pobres, pagando pesadas taxas, das quais a nobreza
e o clero eram isentos? Agravava-lhes cruelmente a miséria ver aqueles que
tinham melhores condições de pagar serem isentados exatamente por isso.
[110]como se ele viesse acompanhado das Fúrias: na mitologia romana, as Fúrias
eram representadas como mulheres aladas com serpentes entrelaçadas nos
cabelos.
[111]a magreza dos franceses tornar-se uma crença na Inglaterra:
esta “crença” era corrente durante as guerras revolucionárias nas caricaturas de
Gillray. Isto recebera antes alguma justificação visual na pintura Calais Gate, de
Hogarth. Em seu Hogarth Illustrated (179198), John Ireland observou: o enxame
de figuras grotescas que desfilavam pelas ruas [de Calais] deixava-o indignado...
ele as comparava com Lázaro em seu sudário, como retratado por Callot Beggars,
com o Filho Pródigo, ou com qualquer outra coisa que pudesse expressar um
extremo menosprezo.
[112]monsieur Gabelle: Gabelle deriva seu nome de uma das mais odiadas taxas
impostas sob o ancien régime. O Estado reservava para si o monopólio do
comércio de sal, e também estabelecia a aquisição de uma quantidade mínima
para cada pessoa. A imposição desse imposto do sal (gabelle) estimulou, como
era de esperar, os esforços em contrabandeá-lo, embora se tratasse de crime
severamente punido.
[113]como a chuva quando cai, imparcialmente: do Evangelho segundo S.
Mateus, 5:45: Para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus: porque faz que
o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos.
[114]a cabeça de Medusa: a Górgona, Medusa, cuja cabeça era coberta de
serpentes se retorcendo, foi morta por Perseu. A visão da Medusa transformava
suas vítimas em pedra, mas Perseu evitou esse destino ao refletir sua imagem no
escudo brilhante que lhe foi dado por Atena. A cabeça cortada de Medusa
aparece freqüentemente como um elemento decorativo na arte romana, tanto
nas armas quanto na arquitetura. Tal decoração era freqüentemente adotada na
arquitetura da Europa renascentista, daí sua pertinência em relação ao castelo.
[115]torres encimadas por coberturas coniformes (extinguisher-topped towers, no
original): telhados em forma de cone, semelhantes a um apagador de velas, ou
apagador cônico para tochas. Estes telhados são comuns na arquitetura civil
francesa da Idade Média tardia até o século dezesseis. A frase extinguisher-
topped deriva da descrição de Carlyle do Temple em Paris: Essas velhas torres
pontiagudas, como um pontudo “Extinguisher” ou “Bonsoir”.
[116]algumas insinuações impertinentes sobre a filha dele: a referência do
marquês a um antigo droit de seigneur deriva provavelmente do tratamento
satírico que Caron de Beaumarchais dá ao Conde Almaviva, em sua La folle
Journée ou le mariage de Figaro, o qual fez sua primeira apresentação em Paris
em 1784. As supostas impertinências da peça criaram problemas oficiais. As
dificuldades que envolveram suas primeiras apresentações foram brevemente
descritas por Carlyle. Dickens pode ter também se valido do ensaio de MercierTrès haut & très puissant Seigneur (IX, DCXC), o qual contém as linhas: O que é
um grande senhor? É um homem que tem castelos e dívidas, e que gosta de
considerar todos os homens a ele submetidos como bestas de carga para servi-lo,
ou como macacos para diverti-lo.
[117]Uma nova filosofia: em sua carta a Bulwer-Lytton em 5 de junho de l860,
Dickens justifica esta aproximação do marquês e seu sobrinho como a
personificação de filosofias contrastantes:
Com o jargão da nova filosofia de um lado, não era certamente pouco razoável ou
inadmissível, no outro, supor um nobre esposando as cruéis idéias antigas, e
representando o período que já findava, enquanto o sobrinho representa o tempo
que vinha se aproximando.
A “nova filosofia” de Darnay combina a anglofilia da última fase do pensamento
liberal pré-revolucionário (com sua ênfase na liberdade do cidadão) com os
ensinamentos de Diderot, Voltaire e Rousseau, do período anterior. Darnay
partilha com todos estes filósofos a repugnância pelos privilégios e a consciência
de um novo tipo de obrigações compartilhadas pelos cidadãos, pela submissão a
um emergente “contrato social”.
[118]aquelas sinistras, carbonizadas e saqueadas ruínas: uma referência precoce
à deflagração da jacquerie em 1789. Carlyle comenta sobre as cinzas negras do
Châteaux no ápice do verão desse ano, e Arthur Young registra, para 27 de julho:
Muitos castelos foram incendiados, outros saqueados, os senhores sendo caçados
como bestas selvagens.
[119]atingidos pelo próprio chumbo: durante as batalhas do período
revolucionário, a escassez de metal fez com que o chumbo dos telhados dos
castelos e igrejas fosse derretido e transformado em balas. O bronze dos sinos
das igrejas foi igualmente reutilizado para a fabricação de canhões.
[120]da balada alemã de Leonora: a outrora famosa balada do poeta Gottfried
August Berger. O poema conta a história de Leonora (ou Lenora), cujo amante
parte para a guerra e não retorna. A inconsolável Leonora suplica pela morte; ela
é visitada à noite pela figura espectral de seu amante, que a convida a cavalgar
com ele para longe, em direção ao seu leito nupcial. Esta jornada de pesadelo
termina com a morte de Leonora.
[121]ele teria sido um professor: o ensino das línguas modernas era um das
diferenças significativas entre os programas de estudos da nova Universidade de
Londres e aqueles das antigas universidades de Oxford e Cambridge. Um notável
refugiado da época de Dickens, Gabriele Rossetti, foi indicado como professor de
italiano no King’s College de Londres, em 1831. Em l857, Dickens entregou seu
filho, Walter, a Charles Rieu, para o aprendizado de idiomas orientais. Rieu, um
assistente do Departamento de Manuscritos Orientais do Museu Britânico, foi
também professor de árabe e persa no University College.
[122]Antigos príncipes e futuros reis: uma referência a Luís Felipe (1773-1850),
rei da França de 1830 a 1848. Luís Felipe era o filho de Felipe, duque d’Orléans
(que teve seu nome mudado para Philippe Égalité, durante a revolução). Ele se
refugiou na Suíça depois da execução de seu pai em 1793. Como Carlyle
observa: Bravo jovem Orléans Égalité, que privado de tudo, com exceção de si
mesmo, foi a Coire, nos Grisons, usando o nome de Corby, para ensinarmatemática.
Nota do tradutor: Os Grisons, ou Grisões (graubünden, em alemão), são um
cantão suíço, tendo ingressado na Confederação em 1803, e onde se encontram
atualmente grandes centros turísticos, como Saint-Moritz e Davos. Coire fica no
extremo noroeste.
[123]nenhum nobre arruinado: os franceses émigrés, a primeira leva dos quais
chegou à Inglaterra no verão de 1789.
[124]caminhar sobre calçadas de ouro: uma referência à bastante conhecida
história de Dick Whittington, um pobre aprendiz que veio a ser Sir Richard
Whittington, por três vezes o lorde prefeito de Londres. Segundo as narrativas, o
rapaz, quando chegou a Londres, acreditava que suas ruas fossem pavimentadas
com ouro.
[125]comércio escuso de línguas européias ... através da alfândega: os idiomas
modernos estavam excluídos dos exames oficiais em Cambridge, os quais eram
dominados pela literatura clássica, filosofia e matemática.
[126]do longo recesso forense: as férias forenses entre o termo legal Trinity (que
finda em 12 de junho) e o termo legal Michaelmas (que inicia em 2 de
novembro).
[127]perturbações atmosféricas e legais: uma remissão ao “tempo implacável de
novembro” e à confusão (fog) legal centrada no lorde chanceler e na corte de
Chancelaria no início de Bleak House (1851-52).
[128]as curtas férias de natal: O período Michaelmas terminou em 25 de
novembro. O período Hilary começaria em 11 de janeiro.
[129]Jardins Vauxhall ... a Ranelagh: Os Jardins Vauxhall foram criados em 1661
e situavam-se originalmente na margem sul do Tâmisa. Mantiveram sua
popularidade através do século dezoito e aparecem de maneiras diversas no
Spectator, de Addison (383), em Amelia, de Fielding, e em Evelina e Cecilia, de
Fanny Burney. Vauxhall estava no auge da prosperidade na época em que
Stryver convidou Lucie para visitá-lo. Em 1841, entrou em acentuado declínio,
embora os Jardins sobrevivessem em condições precárias até 25 de julho de
1859. O preço do ingresso era de um xelim até 1792.
Os Jardins Ranelagh foram inaugurados a leste do Hospital Chelsea, em 1742, e
eram patrocinados por pessoas das mais representativas da aristocracia, incluindo
lorde Chesterfield (por quem Dickens alimentava uma especial antipatia). O
ingresso também custava um xelim, embora ridottos, com ceia e música,
custassem um guinéu. A popularidade dos Jardins entrou em declínio mais
depressa do que Vauxhall. Os prédios, incluindo o famoso Rotunda, foram
demolidos em 1804.
[130]Temple Bar, do lado da igreja de Saint Dunstan: a igreja de Saint Dunstan-in-
the-West fica na rua Fleet, a leste de Temple Bar. A igreja, que foi reconstruída
em 1833, aparece com destaque em The Chimes.
[131]Tribunal Superior de Justiça: (No original: King’s Bench bar) a corte do rei
(King’s) ou da rainha (Queen’s) é uma das três cortes superiores de direito
consuetudinário. King’s Bench, que antes era instalada em Westminster Hall, tinha
jurisdição exclusiva nos casos criminais em que a coroa fosse uma das partes.
[132]como o camponês pagão: parece provável que Dickens aqui estivessepensando em Caronte, o barqueiro do Rio Styx. Caronte, contudo, não era um
camponês, por isso é possível também que a referência se relacione a uma
estátua de um deus fluvial tal como a famosa Marforio, no Capitólio, em Roma.
[133]um poeta que se sentava ... à vista dos homens: uma referência a “sasso di
Dante”, na Piazza del Duomo, em Florença. Dickens comenta essa praça em
Pictures from Italy: E eis aqui ... “a pedra de DANTE”, para onde (assim conta a
história) ele costumava trazer seu tamborete e sentar-se em contemplação. Em
Little Dorrit, Dickens se refere novamente ao poeta a fim de ressaltar a pobreza
da cultura do senhor Sparkler: Dante, que aquele cavalheiro conhecia como sendo
um homem excêntrico da espécie de um Velho Finório, que costumava colocar
folhas ao redor da cabeça e sentar-se num tamborete com algum propósito
indescritível, em frente à catedral de Florença.
[134]auxiliado por seu ministro de gabinete: Dickens faz aqui uma brincadeira
com um termo essencialmente político para sugerir um assessor profissional ou
um adjunto.
[135]Um domador de ursos: alguém que, para se sustentar, exibia um urso
domado pelas ruas. Como Mayhew demonstra, essa era uma visão ainda muito
comum em Londres nos anos 1850.
[136]a velha igreja de São Pancrácio: a antiga igreja paroquial situada no norte
da estrada que ligava King’s Cross a Kentish Town. A igreja era comumente
conhecida como São Pancrácio dos Campos nos séculos dezoito e dezenove,
devido à sua localização isolada dos principais centros populacionais. Em 1745,
havia apenas três casas perto da igreja e a população da paróquia mal chegava
aos 600 habitantes em 1775. O extenso cemitério era, contudo, muito utilizado
pelos londrinos.
[137]Izaak Walton: autor de The Compleat Angler, or the Contemplative Man’s
Recreation (1653). (Angler: pescador de caniço — N.T.)
[138]manso ofício: descrição de Walton acerca da pescaria de caniço.
[139]o que é um ressurreicionista: o termo “ressurreicionista” tornouse corrente
no final do século dezoito, designando as pessoas engajadas no comércio ilegal de
cadáveres. Corpos desenterrados eram fornecidos aos profissionais da medicina,
que os utilizavam para dissecação, e o escândalo da remoção ilegal de cadáveres
estendeu-se até os anos 1820. Em 1828, um Comitê Especial do Parlamento
admitiu que o problema se tornara endêmico, mas foi apenas sob os dispositivos
do Ato sobre Anatomia de 1831 que um suprimento adequado de corpos passou a
ser oficialmente disponível aos médicos e estudantes de medicina. Os cadáveres
roubados dos cemitérios de Londres pertenciam quase sempre aos pobres. Os
cidadãos ricos ou eram enterrados em covas mais profundas ou dispunham de
guardas para evitar os ressurreicionistas. Dickens decerto observou os casos de
roubo de cadáveres registrados no Annual Register de 1776. Em 6 de março, o
cocheiro de uma carruagem de aluguel foi levado perante o lorde Prefeito,
acusado de ter sido apanhado carregando em seu coche os cadáveres de dois
indigentes que haviam sido desenterrados. Quatro dias mais tarde, os restos de
mais de cem corpos foram encontrados num telheiro na estrada de Tottenham
Court, “supostamente colocados ali por comerciantes e destinados aos
cirurgiões”.[140]do verão corrente ... o sol se deitava: equivalente ao francês l’été courant...
à soleil couché.
[141]isso fora feito ... Luís XV: em 5 de janeiro de 1757, Robert François Damiens
tentou apunhalar Luís XV quando o rei entrava na carruagem. Damiens só
conseguiu ferir o rei e não procurou escapar. Foi preso, julgado e condenado à
execução, sendo puxado por cavalos até seu corpo ser esquartejado. A execução
teve lugar na Place de Grève, em Paris, em seguida às torturas que Dickens
descreveu. A sentença de Damiens também incluía a demolição de sua casa, o
banimento da França de seu pai, da esposa e da filha, e a obrigação de seus
irmãos e irmãs de trocarem de sobrenome. As torturas de Damiens e o
espetáculo de sua execução (que escandalizou muitos) são o tema de um dos
indignados ensaios de Mercier (Cinq Janvier 1757 (IX, DCCXII)).
[142]Versalhes: O palácio de Luís XIV fica a 23 quilômetros de Paris. Domingo
era o dia em que o rei e a rainha eram vistos publicamente. Eles também
jantavam à vista do público, na salle de L’Oeil de Boeuf.
[143]resplandecente “Olho de Boi” de sua corte: essa referência ao círculo
interno da corte de Versalhes deriva de uma brincadeira de Carlyle sobre o nome
da grande antecâmara dos aposentos do Estado em Versalhes. Essa antecâmara,
a salle de L’Oeil de Boeuf, recebeu esse nome graças à sua janela oval (uma
janela oeil-de-boeuf) e foi o centro da intriga palaciana, já que era ali que os
cortesãos aguardavam o ritual diário do levée real.
[144]decompor um raio de luz: uma referência a New Theory of Light and
Colours, de Newton (1672), posteriormente resumida em Optics, de 1704. Na
época de Dickens, esse “simples conhecimento humano” era provavelmente o de
um escolar atento às ciências, a quem se recomendava com freqüência a nova
experiência de Newton.
[145]portão de Paris: um dos portões erigidos para a coleta de impostos na assim
chamada “Muralha do Coletor Geral”.
[146]tambores militares: os tambores do destacamento de Paris das Gardes
Françaises nas Tulherias.
[147]fundissem-se num trovejante canhão: Carlyle comenta o édito
Revolucionário de 29 de agosto de 1792: “Todos os sinos de igreja devem ser
fundidos para a fabricação de canhões”.
[148]retumbassem para abafar uma lamentosa voz: uma referência à execução
de Luís XVI, em 21 de janeiro de 1793. Carlyle descreve o evento em um de
seus melhores trechos de The French Revolution (III, II, VII):
Os tambores estão rufando: “Taisez-vous Silêncio!” ele grita “numa voz terrível
d’une voix terrible”... Ele avança até a beira do patíbulo... e diz: “Franceses,
morro inocente: é do patíbulo e prestes a comparecer perante Deus que lhes digo:
eu perdôo a meus inimigos. Eu desejo que a França...”. Um general sobre o
cavalo, Santerre ou outro, ergue a mão com arrogância: “Tambours”. Os
tambores abafam a voz.
[149]as águas amargas do cativeiro: provavelmente um eco do Salmo 137: Junto
aos rios de Babilônia nos assentamos e choramos, lembrando-nos de Sião.
[150]o coche leve: No original, chariot, que o doutor Johnson define como umtipo de coche mais leve, sem os assentos de trás.
[151]igreja da vizinhança: provavelmente a igreja de Sant’Anna, da paróquia de
Soho, construída em 1686 e destruída durante a Segunda Guerra Mundial.
[152]caleça: No original, chaise, que o doutor Johnson define como uma
carruagem aberta, para lazer, puxada por um só cavalo. Como Lucie está
acenando através de uma janela, Dickens provavelmente quis dizer que ela se
encontrava numa carruagem fechada própria para viagens, conhecida em inglês
como post-chaise.
[153]as afeições, os sentimentos ... a própria mente: o doutor Johnson define
afeições como o estado da mente em geral e como o estado do corpo atuando sob
a influência de algum impulso. Os sentimentos são definidos como sensibilidade,
ternura e percepção. Essas definições estão, portanto, ligadas a um entendimento
anterior das atividades da mente, um entendimento em nenhuma medida afetado
pelas investigações posteriores da psicologia. Definindo mente como o poder
inteligente, Johnson acrescenta:
Esta palavra, freqüentemente empregada para designar a vivência do espírito, é
atribuída abusivamente aos loucos, quando dizemos que estes sofrem de
“distúrbios mentais”, em vez de “interrupção do raciocínio”; também utilizamos a
palavra “mente” com o sentido de opinião.
[154]Divino amigo das criancinhas: O Santo Evangelho Segundo São Mateus
19:14: Jesus, porém, disse: Deixai os meninos, e não os estorveis de vir a mim,
porque deles é o reino dos céus. Essa parece ter sido uma das citações favoritas
de Dickens, pois ele a empregou em referência à morte das criancinhas de F. H.
Deane e Mark Lemon, como um meio de oferecer-lhes conforto naquela aflição.
[155]mosquetes eram distribuídos: esses mosquetes haviam sido pi
lhados do arsenal de Invalides. Carlyle observa: Os mosquetes do rei pertencem
à nação... e vinte e oito mil arcabuzes estão nos ombros de outros tantos homens
da Guarda Nacional, trazidas desse modo das trevas para a luz feroz.
[156]Fossos profundos: Dickens extraiu essas imagens das descrições da Bastilha
feitas por Carlyle (The French Revolution, I, V, VI).
[157]Uma bandeira branca... e uma conferência: também derivado das
descrições de Carlyle:
Os pobres “Invalides” haviam submergido sob suas ameias, ou ergueram-se
apenas com os mosquetes invertidos: improvisaram uma bandeira branca com
guardanapos, bateram a “chamade”, ou pareceram bater, pois não se podia ouvir
coisa alguma... Termos da rendição: “Perdão, imunidade para todos! Os termos
são aceitos?” — Foi d’officier, sob a palavra de um oficial, responde o meio-soldo
Hulin —, ou meiosoldo Elie, pois os homens não concordavam com os termos,
“Sim. Eles são!” Desçam a ponte levadiça —, O guardião Maillard fixou-a quando
abaixada; o dilúvio vivo se precipita pela ponte: a Bastilha caiu! “Victoire! La
Bastile est prise”.
[158]ao Palácio de Ville para julgamento: o último governador da Bastilha foi
Bernard-René-Jourdan de Launay (1740-89). Novamente, Dickens extraiu os
detalhes de Carlyle.
[159]velho e cruel oficial ... decepou-lhe a cabeça: a interferência de madameDefarge nesse ponto é fictícia, embora os detalhes do assassinato de Launay
sejam verídicos.
Desafortunado velho cavalheiro militar ... o antigo marquês de Launay ...
“encontrado com sua túnica cinza e a fita cor de papoula”... Infeliz de Launay!
Jamais entrará no Palácio de Ville: apenas seu “ensangüentado rabicho, preso
numa ensangüentada mão: entrará como um símbolo”. O tronco ensangüentado
jaz ali nos degraus; a cabeça rolou pelas ruas; foi fincada, horripilante, numa
estaca. (I, V, VII.)
[160]Sete faces de prisioneiros: os sete últimos prisioneiros confinados na Bastilha
eram quatro falsários, dois lunáticos e uma jeune noble debauche, uma discípula
do Marquês de Sade.
[161]“A Vingança”: o uso de conceitos políticos ou morais como nomes pessoais
não era incomum durante a Revolução. O exemplo mais notório é o do outrora
duque de Orleans, que escolheu o nome de Philippe Égalité (N.T.: “Felipe
Igualdade”).
[162]o barrete vermelho da cabeça: um barrete vermelho de lã, modelado no
estilo chamado de “barrete frígio”, símbolo da liberdade. Tornou-se um
emblema muito difundido da Revolução, usado comumente pelos sans-culottes, e
colocado em Luís XVI em seguida ao ataque às Tulherias, em 20 de junho de
1792. Um barrete frígio também decorava as Mais ou Árvores da Liberdade.
[163]do velho Foulon: Joseph-François Foulon (1715-89), nomeado Conselheiro
de Estado no reinado de Luís XVI, em 1784. De acordo com o relato de Carlyle,
no qual Dickens se baseia aqui, Foulon certa vez respondeu precipitadamente à
pergunta: O que o povo fará? com as palavras: O povo comerá capim. Em 22 de
julho de 1789, lembraram que esse mesmo Foulon estava vivo e morava perto de
Paris. Descobriram-no em Vitry e levaram-no para a capital com um fardo de
capim nas costas e guirlanda de urtiga em volta do pescoço. Ele foi conduzido ao
Palácio de Ville para julgamento sumário, mas, como o processo se demorasse,
um cidadão proclamou: Para que julgar esse homem? Ele já não foi julgado ao
longo dos últimos trinta anos? Foulon foi capturado pela multidão e enforcado no
lugar de um lampião numa esquina da rue de la Vannerie. A cabeça foi decepada
e exibida através das ruas com capim na boca. Mais uma vez, Dickens insere a
intervenção de madame Defarge numa ocorrência histórica.
[164]as quarenta Fúrias: As Fúrias, ou Emênides, eram as Deusas clássicas da
vingança. Tradicionalmente são três, e não quarenta.
[165]o genro do executado: Louis-Benigné-François de Betier de Sauvigny
(1737-89), genro de Foulon, foi Intendente de Paris. Dickens novamente baseia-
se no relato de Carlyle (The French Revolution, I, V, IX).
[166]monseigneur começou a fugir: trata-se da “Primeira Emigração”, de julho
de 1789.
[167]do pó viera e ao pó retornaria: Gênese 3:19.
[168]O castelo ... tornando luminoso: a difundida jacquerie de 1789 muitas vezes
se expressou sob a forma de incêndios em castelos. Tan-to Carlyle quanto Arthur
Young observam:
Setenta e dois castelos arderam em chamas só em Maconnais e Beaujolais ...Ferocidade, atrocidade; fome e vingança. (The French Revolution, I, VI, III.)
Muitos castelos foram incendiados, outros, saqueados, os senhores feudais foram
perseguidos como animais selvagens, violentaram suas esposas e filhas,
queimaram seus documentos e títulos, e destruíram suas propriedades; e essas
abominações não eram apenas infligidas àquelas pessoas cuja conduta anterior ou
cujos princípios as haviam tornado odiosas, mas sim numa fúria cega e
indiscriminada e pelo prazer de saquear. (Young, 27 de julho de 1789.)
[169]Atraído pelo Abismo: para esse título inspirou-se em “A História do Terceiro
Calendário”, das Arabian Nights. Nesse conto, Agib, o filho do rei Cassib, vê seu
navio ser irresistivelmente atraído por uma montanha negra de pedra-ímã.
[170]sob uma bandeira vermelha: esse é o símbolo da lei marcial, introduzida em
julho de 1791.
[171]declarava a pátria em perigo: em 22 de julho de 1792, em razão da ameaça
à França representada pelos exércitos do duque de Brunswick, foi feita uma
proclamação declarando “la Patrie en Danger”. Carlyle descreveu o “Festival da
Federação” celebrado naquele dia no Champ de Mars, durante a qual uma
enorme bandeira anunciou a mensagem à nação. Carlyle não mencionou a cor
da bandeira.
[172]Monseigneur... como classe ... também gostaria de expulsá-lo deste mundo:
muitos nobres emigrados se haviam juntado aos exércitos do duque de Brunswick
no Reno, agora dispostos a invadir a França. Assim que Luís XVI foi privado do
seu direito de veto, em agosto de 1792, foram introduzidas leis que confiscavam a
propriedade de todos os émigrés, embora ainda não lhes impusessem a pena de
morte.
[173]camponês da fábula ... invocar o demônio: uma provável referência à
fábula de Esopo sobre o Velho e a Morte. Dickens possivelmente estava
familiarizado com a versão de La Fontaine dessa fábula, La Mort et le Bûcheron.
[174]depois de ter lido ... livro de orações de trás para a frente: supostamente,
uma forma de invocar o demônio.
[175]arrogância de Lúcifer ... cegueira de uma toupeira: Consta que Lúcifer foi
expulso do paraíso em virtude de sua arrogância. Sardanapalus (Assur-bani-pal)
foi o último rei da Assíria, no século 7 a.C. Era um homem infame por sua
luxúria e sensualidade, e acreditava-se que ele havia construído uma grande pira
funerária para si mesmo, amontoando nela seus tesouros, e rodeando-se por seu
harém. Ele é o protagonista de uma tragédia de Byron (1821) e de uma tela de
Delacroix (1827). A idéia comumente aceita de que a toupeira seja cega foi
questionada por Goldsmith em seu livro Animated Nature, um volume que
Dickens parece ter conhecido e usado.
[176]A realeza já não existia ... “suspensa”: Luís XVI e sua família foram
sitiados nas Tulherias em 10 de agosto de 1792, um evento vividamente descrito
em The French Revolution (II, VI, VII, VIII). O rei foi removido para o Temple
em 13 de agosto e o direito real de veto foi suspenso. A República só foi
declarada em 21 de setembro de 1792.
No MS do romance, Dickens inicialmente menciona o julgamento do rei neste
trecho, mas apagou a referência quando antecipou a data da partida de Darnay
para a França para o outono de 1792.[177]Era o mês de agosto: originalmente, Dickens escreveu: “Era o natal...”,
mas, novamente, efetuou a alteração quando antecipou a data da partida de
Darnay.
[178]o frio do inverno: Dickens parecer ter esquecido de alterar essa referência,
embora houvesse mudado comentários anteriores sobre “dezembro” e “inverno”
em seu MS.
[179]Paris não esteja em chamas ... saqueada amanhã!: em agosto de 1792, a
ameaça a Paris feita pelos exércitos do duque de Brunswick ao leste era bastante
concreta. Em 25 de julho, Brunswick, em Coblenz, declarou (para citar Carlyle):
se Paris... dirigir qualquer insulto ao rei; ou, por exemplo, tolerar que uma facção
aprisione o rei; nesse caso, Paris será atacada com tiros de canhão e “execução
militar”.
[180]como se os observadores ... registrado ... tudo o que viram: esse é o
comentário mais direto de Dickens acerca do trabalho de Arthur Young, que,
tendo circulado por entre os nobres franceses no final dos anos 1780, publicou
suas observações sobre a França em 1792. Ele incluiu em seus volumes uma
seção final, datada de 1791, sobre “A Revolução na França”, na qual comentou
com agudeza:
É impossível justificar os excessos do povo ao pegar em armas... Mas é realmente
o povo a quem devemos imputar tudo, ou a seus opressores, que os mantiveram
por tanto tempo na escravidão? Aquele que escolhe ser servido por escravos, e
por escravos maltratados, deve saber que preserva tanto sua propriedade quanto
sua vida através da dominação, diferentemente de quem prefere os serviços de
homens livres e bem tratados; e aquele que ceia ao som de lamentos de dor não
deve, num momento de insurreição, reclamar que suas filhas foram violentadas e
mortas, nem que cortaram a garganta de seus filhos. Quando tais males ocorrem,
certamente são mais imputáveis à tirania dos grandes senhores do que à crueldade
dos servos.
[181]abolição das águias ... caudas de toda a espécie: uma variação jocosa da
crendice de que se pode apanhar passarinhos espargindo sal em suas caudas.
[182]marquês de St. Evrémonde: esta é a primeira menção ao nome e ao título
de Darnay. Dickens talvez se tenha inspirado no soldado e poeta francês Charles
de Saint Denis de Saint-Évremonde (1613-1703). Esse Évremonde distinguiu-se
em várias campanhas militares, mas foi obrigado a deixar a França depois que
descobriram seus ataques à política de Mazarin. Ele morou na Inglaterra (1664-
70) e retornou à França (1670-1703), e se destaca nas narrativas sobre a vida na
corte dos últimos Stuart (narrativas que Dickens provavelmente leu). Está
enterrado na ala dos poetas na Abadia de Westminster.
Em seu MS, Dickens claramente acrescentou a palavra “outrora” ao título de
Evrémonde na carta de Gabelle. Ele provavelmente verificou a data da abolição
dos títulos de nobreza em seu exemplar do livro de Carlyle. “Outrora” é o
equivalente do francês “ci-devant”.
[183]Prisão de l’Abbaye, Paris: no MS consta “Prisão da Conciergerie”. A
Conciergerie era reservada para os prisioneiros que aguardavam julgamento de
crimes capitais, como veremos mais tarde no romance. Dickens, sem dúvida,mudou a referência na época da revisão.
A prisão de Abbaye ficava na rue Ste. Marguerite, perto da Abadia de Saint
Germain-des-Prés. Só foi demolida em 1854-55, e é provável que Dickens
conhecesse a prisão por observação pessoal.
[184]agido contra seus interesses e em benefício de um emigrado: as
propriedades dos émigrés só foram confiscadas após os eventos de 10 de agosto
de 1792. A acusação contra Gabelle é um tanto desconexa, embora certamente
tenha sido usada como um recurso para obrigar Darnay a regressar à França.
[185]era 14 de agosto: essa frase não aparece no MS do romance. Dickens
acrescentou-a, a exemplo das mudanças efetuadas nas datas deste capítulo, a fim
de situar a partida de Darnay para a França no perigoso período compreendido
entre o cerco às Tulherias, ocorrido em 10 de agosto, e a derrota dos exércitos
franceses em Longwy, em 29 de agosto. Darnay teria sido evidentemente tolo se
deixasse a Inglaterra depois dos massacres nas prisões de 2 a 6 de setembro, que
decorreram das notícias dos reveses militares.
[186]Em Segredo: Forma anglicizada da expressão francesa “en secret”, em
confinamento solitário.
[187]no outono: no MS de Dickens consta o primeiro mês do ano de 1793. A
antecipação para o outono de 1792 é coerente com as mudanças efetuadas no
último capítulo da Segunda Parte.
[188]patriotas-cidadãos: o título “cidadão” (do francês “citoyen”) foi legalmente
instituído pela Constituição Municipal de Paris em 1789, mas tornou-se
gradualmente a forma de tratamento revolucionária aceita, após a abolição dos
títulos de nobreza, em 1791. Como Carlyle comenta em relação a agosto de
1792: Nenhum homem agora é tratado de “monsieur” ou de “sir”; “citoyen”
(cidadão) é mais apropriado.
O uso de patriota também adquiriu conotações importantes durante a Revolução,
enfatizando como fazia uma nova lealdade para com a pátria, a terra natal, em
vez da submissão feudal ao rei.
[189]República ... Fraternidade, ou Morte: a nova república francesa designava a
si mesma, em todos os documentos oficiais, como “República Una e Indivisível”
e acrescentava o lema revolucionário “Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou
Morte”.
[190]fita tricolor: as três cores, escolhidas em 1789, simbolizavam a nação
francesa, em oposição às fitas brancas das bandeiras dos reis da dinastia dos
Bourbon.
[191]É um traidor ... A sua maldita vida não lhe pertence: Dickens não está
correto ao afirmar aqui que a vida de Darnay seria confiscada como um
emigrante que retornou no outono de 1792. Essa lei só foi promulgada em 28 de
março de 1793, introduzindo a pena de morte para qualquer um que não provasse
residência permanente na França desde 9 de maio de 1792.
[192]ressequida árvore da Liberdade ... canção da Liberdade: as árvores da
Liberdade se tornaram um símbolo comum em toda a França revolucionária. A
primeira, medindo cerca de 18 metros de altura e encimada por um barrete
frígio, foi plantada em Champ de Mars em julho de 1790. Exibia a
assustadoramente convidativa inscrição “Ici on danse”. A “ressequida árvore” àqual Dickens se refere aqui é quase certamente uma relíquia das 83 árvores
departamentais plantadas no Festival da Federação, em 25 de julho de 1792 (The
French Revolution, II, VI, III).
Em “canção da Liberdade”, Dickens se refere à Marselhesa ou à canção popular
Ça-ira.
[193]precocemente frio e úmido: provavelmente uma reflexão sobre Assim foram
os últimos dias de agosto de 1792; dias sombrios, sinistros, repletos de maus
presságios. (The French Revolution, III, I, III.) Carlyle, contudo, estava
comentando acerca da situação política, sobre o tempo ou sobre a colheita.
[194]a prisão de La Force: essa prisão, outrora residência do duque de La Force,
foi convertida em local de confinamento em 1780. Ficava na rue du Roi de Sicile.
Só foi demolida em 1850, e é provável que, assim como a prisão de Abbaye,
Dickens a tivesse conhecido.
[195]Bastilha que não mais existe: a Bastilha foi sistematicamente demolida pela
municipalidade de Paris após sua queda, em julho de 1789.
[196]o rei estava na prisão ... haviam todos abandonado Paris: Carlyle descreve:
Para o Temple, pois! Na segunda-feira, décimo terceiro dia de agosto de 1792, na
carruagem do prefeito Petion, Louis e sua entristecida e suspensa família rumavam
para longe. Toda Paris saiu às ruas para observá-los... A realeza francesa
desvanecia-se dentro dos portões do Temple: aquelas altas torres... escondiam... os
embaixadores estrangeiros, o britânico lorde Gower tinha todos os passaportes
exigidos; e regressavam, indignados, a seus respectivos países. (The French
Revolution, II, VI, VIII.)
[197]O terrível massacre, que durou dias e noites: os famosos “Massacres de
Setembro”, que ocorreram entre os dias 2 e 6 de setembro de 1792. Um total de
1.089 prisioneiros de La Force, L’Abbaye, Châtelet e da Conciergerie foram
executados sumariamente após julgamentos simbólicos. Os sangrentos eventos
são efetivamente relatados por Carlyle em The French Revolution (III, I, IV-V).
[198]As mulheres estavam sentadas ... de um lado para o outro na cela: a
descrição origina-se de Carlyle (III, VI, V) e de um dos livros que este
recomendou a Dickens, da coleção de reminiscências do confinamento
revolucionário, Mémoires sur les Prisons (Paris, 1823).
[199]bairro de Saint-Germain, em Paris: o aristocrático bairro onde se localizava
a Abadia de Saint-Germain-des-Prés, na margem esquerda do Sena. O banco
Tellson estaria instalado numa parte de uma mansão particular, o que não era
uma situação incomum.
[200]metempsicose: um princípio da filosofia de Pitágoras. Significa a
transmigração de almas de um corpo para outro.
[201]na terceira noite ... setembro: uma segunda-feira.
[202]na Gazette: o jornal oficial do governo, publicado duas vezes por semana.
Continha notícias oficiais, incluindo os nomes das pessoas e instituições
declaradas insolventes ou falidas.
[203]rua Lombard: a rua em Londres onde se localizavam os bancos mais
importantes.
[204]Sobrancelhas falsas e bigodes falsos: não há referência a esse fenômeno nas
prováveis fontes de Dickens. Contudo, parece provável que ele tenha entendidomal a descrição de Carlyle do assassinato da princesa de Lamballe em La Force
em 3 de setembro:
Ela recuou, trêmula, ao ver os sabres ensangüentados; mas não havia como
recuar. Para a frente! A bela cabeça foi atingida pelo machado por trás e o
pescoço se partiu. Aquele belo corpo é cortado em pedaços; com indignidades e
horrores obscenos de bigode “grands lèvres”, os quais a natureza humana
consideraria inacreditáveis, e que serão lidos apenas em seu idioma original. (III,
I, IV.) Aparentemente, Dickens não leu, ou recordou, o “francês original”, que
parece ter estado disponível para ele. Em Nouveau Paris, Mercier descreve
pitorescamente a mutilação do corpo:
Tendo os assassinos dividido os pedaços sangrentos do corpo dela, um desses
monstros arrancou-lhe os pêlos pubianos e fez um bigode para si mesmo com eles.
(Massacres de Septembre, I, XVIII.)
[205]um autonomeado tribunal: conforme Carlyle:
O leitor... observará, nessa “Abadia-Prisão”, uma vez terminado o inesperado
massacre dos padres, uma estranha corte de Justiça, ou corte de Vingança e
Selvagem Justiça, velozmente moldar-se e tomar assento ao redor de uma mesa,
com os registros carcerários diante de si... Em La Force, no Châtelet, na
Conciergerie, o arremedo de corte se forma, com o arremedo de
acompanhamentos. (III, I, IV.) N.T.: Cerca de 220 padres foram detidos e mortos,
entre 2 e 6 de setembro de 1792, por não aceitarem a reorganização
revolucionária da Igreja.
[206]Com uma incongruência ... terrível pesadelo: essa “incongruência” pode
bem refletir a narrativa de Carlyle acerca da libertação de M. de Sombreuil,
graças à intervenção de sua filha, que estava preparada para beber “o sangue dos
aristocratas” a fim de provar que seu pai não era um aristocrata. Carlyle observa
que o rugido do tigre se transforma em explosões de júbilo a cada irmão salvo e
acrescenta: Não parece estranho, esse temperamento deles? (III. I, V.)
[207]A nova era começara ... contra o mundo em armas: o calendário
revolucionário francês foi introduzido em 5 de outubro de 1793, mas retroagiu a
21 de setembro de 1792, data da Declaração da República. Essa data tornou-se 1
Vendémiaire do Ano 1. O novo calendário consistia em doze meses de trinta dias
cada, com cinco dias excedentes designados como festivais (Sanscoulottides). As
novas semanas compreendiam dez dias (Decades), sendo o décimo (Décadi) um
dia de descanso. Os nomes dos novos meses, inventados por Fabre d’Eglantine,
expressavam as estações climáticas e de plantio e colheita (p.e., Vendémiaire,
Brumaire, Frimaire, Nivose, Pluviose, Ventose, Germinal, Floréal, Prairial,
Messidor, Thermidor, Fructidor).
Após a Declaração da República, Luís XVI foi levado a julgamento em 11 de
dezembro de 1792 e executado em 21 de janeiro de 1793.
[208]A bandeira negra ondulava ... trezentos mil homens: a bandeira negra,
declarando La Patrie en Danger, foi hasteada tanto em Notre-Dame como no
Palácio de Ville. Em julho de 1792, foram instalados postos de recrutamento em
Paris e, em março do ano seguinte, noventa e seis comissários de recrutamentoforam colocados nas ruas da capital e outros oitenta foram enviados por toda a
nação.
[209]como se ... por toda a parte: uma referência à lenda da fundação de Tebas
por Cadmus, que, tendo matado um dragão, foi instruído por Atena a semear os
dentes do monstro. Brotou, então, um exército que Cadmus dizimou lançando
homem contra homem. Os cinco sobreviventes tornaram-se os ancestrais da
nobreza de Tebas.
[210]Ano Um da Liberdade: de acordo com o novo calendário, período
compreendido entre 1 Vendémiaire e 30 Fructidor (21 de setembro 1792 a 20 de
setembro de 1793).
[211]o dilúvio ... fechadas: essa idéia, que reflete uma imagem reiterada de
Carlyle, deriva da descrição do dilúvio em Gêneses 7.
[212]a noite se sucedia à manhã do primeiro dia: Gêneses 1:5
[213]a cabeça do rei ... bela rainha, encanecida ... na prisão: Luís XVI foi
executado em 21 de janeiro de 1793; Maria Antonieta, em 18 de outubro de
1793.
[214]lei de Suspeitosos: a “Lei dos Suspeitosos”, promulgada pela Convenção em
19 de setembro de 1793, permitia a prisão como “suspeitos” de todos os ex-
aristocratas e de qualquer um que supostamente fosse monarquista ou
antijacobino. Carlyle comenta:
Nenhuma lei mais terrível jamais governou uma nação humana. Todas as prisões e
casas de detenção da França estão apinhadas até o teto: quarenta e quatro mil
Comitês, como outras tantas companhias de ceifeiros e respigadores, respigando a
França, estão juntando suas colheitas e estocando-as nessas Casas. (III. IV, VI.)
[215]a Navalha Nacional ... quando a cruz era negada: Carlyle cita esse “gracejo
Revolucionário” acerca da rasoir national (III, V, III), e ele também dá muita
importância à campanha contra o cristianismo organizado e à destruição de
imagens cristãs. (III, V, I.)
[216]vinte e dois amigos ... em vinte e dois minutos: esses são os deputados
girondinos, executados em 31 de outubro de 1793. Um dos vinte e dois, Valazé,
esfaqueou a si mesmo, mas seu cadáver foi decapitado junto com os
companheiros.
[217]homem forte do Velho Testamento ... destruía as colunas do templo todos os
dias: o Executor Público de Paris tinha o nome de Sansão (ou Sanson), um
descendente de uma longa linhagem de carrascos. Ele é freqüentemente
mencionado por Carlyle e é o tema de um dos ensaios de Mercier em Nouveau
Paris. (III, XCVII.) De acordo com o Livro dos Juízes (Velho Testamento), o
Sansão bíblico derrubou os portões e pilares de Gaza. Dickens também brinca
com a idéia de São Paulo acerca do corpo humano como templo de Deus (1
Coríntios 3:16, 6:19).
[218]os rios do sul ... inverno sulista: uma referência à violenta supressão da
atividade contra-revolucionária em Lyon. Carlyle comenta:
Tribunal Revolucionário aqui, e Comissão Militar, guilhotinando, fuzilando, fazendo
o que podem: as sarjetas da Place des Terreaux se tingem de rubro; cadáveresmutilados rolam em Rhône! (III, V, VIII.) A frase “os rios do sul” ecoam o Salmo
126:5.
[219]Um ano e três meses: se Darnay foi preso no final de agosto de 1792, eles
devem agora estar no final de novembro de 1793, data que marcou o começo do
chamado “Reinado do Terror”:
Chegamos agora, portanto, diante daquele negro e íngreme Abismo; para onde
todas as coisas há muito se vinham conduzindo; donde, ten-do agora chegado à
sua vertiginosa margem, eles se arremessam para baixo, em tumultuada
destruição; temerários, confusos, caindo... caindo... até o extremismo dos sans-
culotte se consumar... O Terror tem sido tenebroso por um longo tempo: mas, para
os próprios protagonistas, tornou-se agora manifesto que o rumo por eles apontado
é um dos caminhos do Terror; e eles dizem “Que seja”, “Que la Terreur soit à
l’ordre du jour”. (The French Revolution, III, V, I.)
[220]Essa fórmula de saudação ... prescrita por decreto: em seu ensaio, Citoyen,
Mercier comenta que o termo “cidadão” se havia tornado o sobrenome da
liberdade francesa (Nouveau Paris, II, LXIV). Carlyle observa: Nenhum homem
se trata agora por “monsieur”; “citoyen” (cidadão) é muito mais apropriado; ...
Assim têm sugerido os jornais, as comunas improvisadas; o que será aconselhável.
(III, I, I.)
[221]“Pequena Santa Guilhotina”: Carlyle ressalta esse uso revolucionário
bastante comum: A Sainte Guillotine, parece-me, é pior do que os velhos santos
das superstições. Um santo devorador de homens?
(III, VI, I.)
[222]Dançavam ao som de um canto popular revolucionário: trata-se da
Carmagnole, que foi freneticamente dançada na Convenção de 10 de novembro
de 1793, para ultraje de Mercier.
[223]a Conciergerie: a prisão ligada ao Palácio da Justiça em Paris, para onde os
prisioneiros eram removidos a fim de aguardar o julgamento na corte vizinha. O
Palácio da Justiça se havia tornado a sede do Tribunal Revolucionário, presidido
por Fouquier-Tinville.
[224]O temível tribunal ... reunia-se todos os dias: Dickens extraiu essa referência
diretamente de Carlyle:
Digno de nota também é o Tribunal Extraordinaire: decretado pela Montanha *...
Cinco juízes; um júri permanente, nomeado em Paris e redondezas... eles não
aceitam apelações nem praticamente nenhuma formalidade legal, mas “se
convencem” prontamente; e para segurança, são obrigados a “votar
audivelmente”; audivelmente no ouvido de um público de Paris. Esse é o Tribunal
Extraordinaire; o qual, em poucos meses, entrando vivamente em ação,
mereceria o título de Tribunal Révolutionaire; como se havia intitulado, com
efeito, desde o primeiro dia... tendo Fouquier-Tinville por Procurador Geral. (III,
III, V.) * Montanha: partido radical no período revolucionário (N.T.).
[225]Jornal da Noite: Dickens extraiu esse gracejo de humor negro das
lembranças de um prisioneiro da época, um Riouffe, reunidas em Mémoires sur
les Prisons:
Durante a noite, eles distribuíam os atos de acusação às vítimas do holocausto
através de um buraco na porta. Os distribuidores, transbordando de feroz alegria,
apelidaram esses atos de Jornal da Noite. (I, p.158.)
[226]chapéus emplumados: tais adornos eram uma característica específica da
indumentária oficial dos funcionários revolucionários (alguns dos quais foram
desenhados pelo pintor David). Carlyle descreve a Convenção de Comissários,
com seu chapéu redondo enfeitado com penachos tricolores, guarnecido com um
gracioso tafetá tricolor; túnica justa, cinturão tricolor, espada e botas de cano alto.
(III, V, V.)
[227]o grosseiro traje de Carmagnole: refere-se ao vestuário admitido pelas
multidões de Paris durante a Revolução. Carlyle o descreve mais
detalhadamente: De barrete vermelho, colete tricolor, um felpudo spencer preto,
com um bigode enorme e um enorme sabre — “carmagnole complete” (III, V,
III). Um “felpudo spencer preto” é uma jaqueta curta feita de um tecido que
tem uma felpa aveludada num dos lados.
[228]o decreto que bania ... todos os emigrantes, sob pena de morte: a “Lei dos
Suspeitosos”, de 19 de setembro de 1793.
[229]o sinal empregado no cárcere para indicar a morte — um dedo levantado:
parece que Dickens extraiu esse “sinal empregado no cárcere” de um único
gesto de madame Roland, conforme descrição de Riouffe em Mémoires sur les
Prisons:
Depois de receber sua sentença, ela transmitiu-a a toda a prisão com uma rapidez
que denotava alegria. Ela indicou através de um sinal expressivo que fora
condenada à morte. (I, p.57.)
[230]a Deusa da Liberdade: uma figura popular no panteão revolucionário. A
estátua de gesso dessa deusa foi erigida na Place de la Révolution em agosto de
1793 e foi a ela que madame Roland, no patíbulo, dirigiu suas famosas palavras:
Oh, Liberdade, que coisas estão sendo feitas em teu nome.
[231]Por ordem ... ser lidos com facilidade: Carlyle simplesmente comenta que a
inscrição “Unidade, Indivisibilidade, Fraternidade ou Morte” estava, com efeito,
impressa em todas as casas. (III, V, I.)
[232]Confunda-lhes a política ... Deus salve o Rei: uma citação de um verso hoje
raramente usado do Hino Nacional britânico (cuja letra é, por vezes, atribuída a
Henry Carey). A canção se destaca como uma afirmação política na época da
Revolução Francesa.
[233]pela Pont-Neuf (Ponte Nova): ponte que conecta a Île de la Cité à margem
norte (ou margem direita) do rio Sena por meio de sete arcos, e à margem sul
(ou margem esquerda) por meio de cinco.
(Inaugurada pelo rei Henrique IV, primeiro da dinastia Bourbon da França —
N.T.)
[234]as barcaças nas quais os ferreiros trabalhavam: Carlyle observa: Cinco
grandes barcaças ancoradas balançam no rio Sena, barulhentas em virtude das
perfurações; as grandes brocas rangem asperamente nos ouvidos e nos corações
de todos. (III, V, VI.)[235]Infeliz do homem que pregasse peças nesse exército: uma referência ao
destino do general Custine, que foi executado em agosto de 1793, acusado de
severidade, inabilidade, perfídia; acusado de muitas coisas: considerado culpado,
podemos dizer, de uma única coisa - fracasso. (The French Revolution, III, V, II.)
[236]Brutus, o Bom Republicano da Antiguidade: tanto Carlyle quanto Mercier
ressaltam a popularidade dos nomes republicanos romanos durante a Revolução.
Dickens pode ter pensado em Lucius Junius Brutus, que serviu de instrumento na
expulsão de Tarquínio de Roma, ou em Marcus Junius Brutus, o assassino de Júlio
César. Ambos teriam agradado ao gosto revolucionário.
[237]Palácio Nacional ... das Tulherias: o palácio das Tulherias foi ocupado pela
Convenção Nacional de 10 de maio de 1793, que se instalou, daí em diante, na
Salle des Machines.
[238]Pai das Mentiras: o demônio, de acordo com o Evangelho Segundo São
João (8:44).
[239]um “carneiro” das prisões: expressão derivada de Riouffe, que descreve
um informante colocado numa cela como um carneiro, o que equivale a dizer
um espião. (Mémoires sur les Prisons, I, p. 73.)
[240]casa que Jack construiu: da rima infantil:
“This is the cow with the crumpled horn/That tossed the dog/That worried the
cat/That killed the rat/That ate the malt/That lay in the house that Jack built”.
“Esta é a vaca de chifre enrolado/que derrubou o cachorro/Que incomodou o
gato/Que matou o rato/que comeu o malte/na casa que Jack construiu”.
A expressão “casa que Jack construiu” (house that Jack built) era, também, uma
gíria dos anos 1860, cujo significado era “prisão” (N.T).
[241]sobrecasaca branca ... cabelos castanhos, desguarnecidos: esta “voga” já
durava cerca de dez anos. Carlyle comenta, acerca do modo de trajar-se do
anglomaníaco Duc de Chartres nos anos 1780: Botas de cano alto e redingotes,
que nós chamamos de sobrecasaca. (I, II, VI.) O fato de Carton não usar peruca,
deixando soltos os cabelos longos, contudo, o teria feito chamar menos atenção
em Paris, onde essas modas antiaristocráticas eram populares. Suas roupas
distintivamente inglesas seriam notadas, mais tarde, pelo serrador.
[242]salvo-conduto: em francês: “Laisser-passer”.
[243]Não vai mal: um eco da reiterada frase de Carlyle: A Guillotine não vai mal,
“La Guillotine ne va pas mal”.
[244]fornada boa: essa é uma tradução das conhecidas fournées de Fouquier-
Tinville, ou “fornadas” de prisioneiros para julgamento, condenação e execução.
[245]ruas escuras e estreitas ... naqueles tempos de terror: como Carlyle observa
acerca desse período: As ruas permaneciam sem varrer, as estradas não eram
conservadas. (III, V, VII.)
[246]as conseqüências que adviriam se os misturasse: Carton parece ter
comprado substâncias químicas para produzir algum tipo de éter. Embora o éter
sulfúrico não fosse utilizado clinicamente até 1846, seu poder era conhecido no
século dezoito. O éter nítrico foi descoberto em 1681; o éter muriático e oacético, em 1759. Os perigos de empregar tanto o éter quanto o clorofórmio em
cirurgias eram bem conhecidos dos leitores vitorianos.
[247]Eu sou a ressurreição ... nunca morrerá: Evangelho Segundo São João
11:25-6. Essas palavras são proferidas ou cantadas na abertura da seqüência de
The Burial of the Dead, no Book of Common Prayer.
[248]vítimas do dia seguinte ... e as do outro ainda: um eco de Macbeth,
V. v. 19 e do comentário de Riouffe a respeito das incertezas da vida na prisão
durante o Terror:
Dia e noite, os ferrolhos das portas se abriam e fechavam. Sessenta pessoas
chegaram à noite a fim de seguir para o patíbulo. No dia seguinte, elas foram
substituídas por cem outras, e o mesmo ocorreu nos dias subseqüentes. (Mémoires
sur les Prisons, I, p. 83.)
[249]igrejas, onde nenhuma prece era rezada: A legislação anti-cristã estava em
seu auge nesse período. Em 10 de novembro de 1793, a Convenção sancionou
um culto alternativo do Deus da Razão, e uma cerimônia em homenagem a esse
deus foi solenemente celebrada em Notre-Dame, com a entronização no altar de
uma moça representando a Razão. A maioria das outras igrejas de Paris foi
usada para seminários e palestras, embora, como protesta Mercier em um de
seus ensaios, a igreja de St. Eustache se houvesse transformado numa taberna,
decorada com paisagens repletas de árvores. (Nouveau Paris, IV.)
[250]distantes cemitérios ... Sono Eterno: Os cemitérios de Paris, diferentemente
dos de Londres no final do século dezoito, localizavamse nos subúrbio da cidade.
Como parte da campanha oficial contra o cristianismo, o procurador-geral
Chaumette ordenou que se colocasse a inscrição “Aqui está o Sono Eterno” nos
portões de todos os cemitérios. (The French Revolution, III, V, I, Nouveau Paris,
VI.)
[251]os teatros estavam todos cheios: como Carlyle comenta: Nesta Paris existem
vinte e três teatros noturnos; alguns contam até sessenta locais de dança.
[252]Ilha de Paris ... confusão de casas e catedral: até as demolições de 1856-70,
a Catedral de Notre-Dame, na Île de la Cité, era circundada por uma malha de
ruas densas e estreitas.
[253]espalhou todos aos ventos: Ezequiel 17:21.
[254]Eu, Alexandre Manette: o testamento do doutor Manette baseiase, em certa
medida, num fragmento de carta de um prisioneiro real da Bastilha, Quéret-
Démery. A carta, endereçada a um nobre oficial da corte, foi encontrada durante
a demolição da prisão, em 1789. Carlyle cita o trecho como segue:
Velhos segredos são desvendados; e o desespero há muito sepultado encontra voz.
Leiam esse trecho de uma velha carta: “Se, para meu consolo, monseigneur me
prometesse, por Deus e pela Santíssima Trindade, que receberei notícias de minha
querida esposa; mesmo que fosse apenas seu nome num cartão, para mostrar-me
que ainda está viva! Esse seria o maior consolo que eu poderia receber; e eu para
sempre abençoaria a grandeza de monseigneur”. Pobre prisioneiro, que
chamavas a ti mesmo Quéret-Démery e não tinhas outra história, ela está morta,
aquela tua querida esposa, e tu estás morto! Faz cinqüenta anos desde que teucoração partido formulou essa pergunta; para ser ouvida agora pela primeira vez,
mas há muito tempo ouvida nos corações dos homens. (I, V, VII.)
[255]fragmentos ... misturados com sangue: a engenhosidade de Manette para
substituir a tinta faz lembrar a do abade Faria em O Conde de Monte Cristo, de
Alexandre Dumas (1844-5).
[256]rua da Escola de Medicina: a rue de l’École de Medicine é paralela ao atual
Boulevard St. Germain. Afora as óbvias associações com a medicina, Dickens
pode ter mencionado essa rua em particular porque foi lá que outro médico,
Marat, foi assassinado.
[257]quando acontece de termos um pedaço de carne ... levem a carne embora:
como ele admitiu em sua carta a Bulwer-Lytton, Dickens extraiu esse detalhe da
opressão aristocrática de Confessions, de Rousseau. Dickens, entretanto, de algum
modo distorceu a história para que servisse a seus propósitos. No original, o
jovem Rousseau parou para descansar na cabana de um camponês. Quando
pediu algo para comer, deram-lhe pão de cevada e leite desnatado, que ele
comeu sem nenhum entusiasmo. De súbito, o camponês, que o estivera
observando, disse que reconhecia nele um homem honesto e trouxe-lhe pão de
trigo, presunto e uma garrafa de vinho. Acrescentou uma omelete à refeição
oferecida. O camponês, que recusou-se a aceitar dinheiro em pagamento, depois
explicou que suspeitara que Rousseau fosse um coletor de impostos. Escondera o
pão e o vinho receando ter de pagar imposto sobre ambos. Rousseau declarou
que seu inextinguível ódio ... pela opressão teve início naquele dia, em 1732.
[258]minha irmã se casou: o MS do romance revela que Dickens pretendia
originalmente que a moça fosse apenas noiva, e não casada, e que ela traísse o
noivo mantendo um caso amoroso com o nobre, que lhe prometeria casamento.
Quando ela fugisse com o amante, o irmão a seguiria e os surpreenderia juntos.
Nesse momento, o rapaz seria ferido. Dickens desistiu dessa história um tanto
comprometedora e escreveu a presente versão, colando-a sobre a original, no
MS.
[259]rouleau de ouro: cartucho cilíndrico de moedas de ouro.
[260]as questionáveis virtudes públicas da Antiguidade: provavelmente uma
referência a Lucius Junius Brutus, o lendário primeiro cônsul de Roma, que
condenou seus dois filhos à morte por conspirarem para restaurar a dinastia de
Tarquínio.
[261]morte em vinte e quatro horas!: sentença costumeira do Tribunal
Revolucionário. Como Carlyle a descreve: Esta noite para a Conciergerie;
através do Palácio inadequadamente chamado da Justiça, para a Guillotine
amanhã. (III, VI, VII.)
[262]ali onde repousam os cansados: Jó 3:17.
[263]um jornal jacobino: um jornal simpatizante dos princípios professados pelo
clube jacobino, que era, por essa época, uma facção dominante na Convenção e
na direção do Comitê de Segurança Pública. Carlyle se refere severamente ao
fervor do Jacobinismo, que, internamente, enche toda a França de ódios,
suspeitas, patíbulos e culto à Razão. (III, V, VII.)
[264]Cinqüenta e duas cabeças rolariam naquela tarde: uma “fornada” mais
historicamente plausível do que as sessenta e três cabeças mencionadas na ParteIII, Capítulo 9. Carlyle cita o número cinqüenta e quatro na fournée de Fouquier-
Tinville de 17 de junho de 1794. (III, VI, IV.)
[265]Desde o rendeiro ... até a costureira de vinte anos: os antigos rendeiros
eram agora vítimas automáticas da vingança Revolucionária. A mais notável
vítima dessa lei foi o grande químico Lavoisier (The French Revolution, III, VI,
III). A menção à costureira, que desempenhará um importante papel nas últimas
páginas do romance, talvez derive do relato de Carlyle (derivado, por sua vez, de
Riouffe) sobre a vida em uma das prisões de Paris:
Seigneur e Shoeblack, Duchess e Doll-Tearsheet promoviam grandes confusões,
da seguinte maneira: nas horas em que “as `citoyennes’ se dedicavam a seus
trabalhos de agulhas”, nós lhes cedíamos nossas cadeiras, e, de pé,
empenhávamo-nos para conversar galantemente e até mesmo cantar. (III, VI, V.)
[266]Escreveu uma longa carta para Lucie: Dickens soube, através de Mémoires
sur les Prisons, que permitia-se aos prisioneiros condenados à morte escrever
cartas. Como sabemos hoje, poucas delas, se é que alguma, chegaram a seus
destinatários, sendo interceptadas e guardadas por Fouquier-Tinville.
[267]despentear-lhe os cabelos ... revoltos como os meus: Darnay tinha os
cabelos presos para trás, formando um rabicho, enquanto Carton usava os dele
soltos, seguindo a moda Revolucionária.
[268]Contudo, meu marido tem suas fraquezas: caso nós ainda não a tivéssemos
reconhecido, esta é a indicação mais clara de Dickens do quanto ele se inspirou
em lady Macbeth para criar madame Defarge. Quando o narrador, mais tarde,
refere-se ao fato de ela ser “absolutamente destituída de compaixão”, o paralelo
é reforçado.
[269]cega pela fumaça: Dickens comentou a natureza do fim de madame
Defarge em sua carta a Bulwer-Lytton datada de 5 de junho de 1860:
Eu não sou fiel, nunca o fui, ao cânon da ficção que proíbe a interposição do acaso
numa circunstância como a morte de madame Defarge. Onde
o acaso é inseparável da paixão e da ação da personagem; onde é rigorosamente
compatível com todo o esquema e surge da culminância de um procedimento
individual a que toda a história conduziu; ele me parece transformar-se num ato
da justiça divina. E quando uso a senhorita Pross... para causar essa catástrofe,
tenho a positiva intenção de tornar tal intervenção, que é um tanto cômica, em um
componente do desesperado fracasso de madame Defarge, bem como a de opor
essa morte destituída de heroísmo — em vez de uma dramática morte em combate,
com a qual ela não se importaria — à dignidade da morte de Carton.
[270]Jezebel: a perversa rainha do Rei Ahab (2º, Reis, 9), cujo nome
proverbialmente se atribui às mulheres ostentosamente vestidas e imorais. Na
abertura de The French Revolution, Carlyle emprega figurativamente esse nome
para condenar o “filosofismo” dos salões do ancien régime. É provável que
Dickens se refira aqui ao que Carlyle chamou de “Pompadourismo e
Dubarryismo”. A desafortunada madame Dubarry, que regressara de Londres a
Paris, foi guilhotinada em 1793.
[271]igrejas ... covis de ladrões: Evangelho Segundo São Marcos, 11:17.[272]Se tu assumiste ... então volta a teu aspecto anterior: no Conto do Segundo
Calendário das Arabian Nights, a sábia princesa diz a um homem que fora
transformado em macaco por meio de encantamento:
Se tu te transformaste em macaco por encantamento, muda a tua forma e retoma a
de homem que tinhas antes. A forma das palavras que a princesa utiliza propicia
ao homem assumir o seu verdadeiro aspecto.
[273]Alguns, sentados de cabeça baixa ... compaixão do povo: remete ao trecho
de Carlyle:
Os homens se adaptaram: nenhum protesto era lançado do carro fúnebre. Frágeis
mulheres e “ci-devants”, suas plumagens e refinamentos todos embaciados,
sentadas ali, com um olhar silencioso, como se contemplassem a Treva Infinita. Os
outrora coloridos lábios se retorcem num ricto de ironia, sem pronunciarem uma
palavra; e o carro fúnebre segue adiante. (III, V, VII.)
[274]pela longa rua de St. Honoré: antes da construção da rue de Rivoli, sob o
governo de Napoleão, era a principal via em direção oeste ao longo do Sena. De
acordo com Mercier, a palavra Saint foi retirada dos nomes de ruas nesse
período. (Nouveau Paris, V, CXCI.)
[275]Uma das mais notáveis vítimas: Madame Roland, que se havia empenhado
em escrever suas memórias durante os três meses que precederam sua
execução. Em 8 de novembro de 1793, chegou a pé ao patíbulo, pediu pena e
papel, “para escrever os estranhos pensamentos que lhe ocorriam”. Um pedido
notável, que foi negado. (The French Revolution, III, V, II).
[276]sendo expiado: a palavra “expiação” aqui pode ser reflexo da existência na
rue d’Anjou St. Honoré de uma Chapelle Expiatoire. Esse santuário sobre o sítio
do apressado sepultamento de tantas das vítimas da guilhotina foi construído no
começo do reinado de Luís XVIII.
[277]este lugar ... qualquer vestígio da desfiguração deste dia: entre 21 de janeiro
de 1793 e 3 de maio de 1795, mais de 2.800 pessoas foram executadas na Place
de la Révolution (hoje, Place de la Concorde). Na época em que Dickens
conheceu a praça, seu aspecto físico havia mudado em conseqüência dos
ornamentos arquitetônicos introduzidos em 1836, sob Luís Felipe. O obelisco,
presenteado pelo vicerei do Egito, foi colocado no centro e os oito pavilhões,
encimados por figuras alegóricas das principais cidades francesas, foram
construídos em seus eixos principais. As duas fontes também datam desse
período.
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